24 de maio de 2016
Por Larissa Ramos Regis
José Silvestre é atualmente licenciado em Pedagogia e em Letras pela Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos (FAFIDAM), da Universidade Estadual do Ceará (UECE), e possui pós-graduação em Metodologia do Ensino pela UECE e em Planejamento Educacional pela Universidade Salgado de Oliveira. Possui quatro livros publicados e um no prelo, além de uma série de histórias para contar àqueles que se prontificam a ouvir seu jeito sério, porém sereno e paciente de proferir suas narrativas.
A casa de seu José tem
um tradicional alpendre onde fica uma pequena mesa de madeira e uma cadeira de
plástico. Os que passam à sua frente a qualquer hora do dia dizem sempre vê-lo
cercado de livros milimetricamente organizados, enquanto imerge por horas a fio
em seus conteúdos e escreve à mão pilhas de papeis que ele guarda em pastas
separadas por assunto. Protagonista de uma história cheia de percalços e
privações, porém de realizações e reviravoltas, José é uma personalidade
singular em sua comunidade pelo exemplo de vida que traz consigo nos seus 79
anos de idade.
Nascido
na zona rural da cidade de Limoeiro do Norte, no interior do Ceará, ele teve
uma infância carente de recursos básicos de qualidade de vida. Nenhuma
perspectiva havia para além dos limites de sua comunidade, que economicamente é
estruturada pela agricultura submetida às intempéries do semiárido. Sequer rede
elétrica existia naquela região durante a década de 30, período em que nasceu.
Muitos anos depois a eletricidade se instaurou. Rádio de pilha era artigo de
luxo e a noite era sempre um breu silencioso sob o céu do sertão que forçava as
crianças a dormirem muito cedo.
Carne
era um alimento que só se consumia nos fins de semana de maior fartura. José
nos conta que até mesmo a água usada para lavar o arroz era alimento na época.
A base de sua alimentação era rica em farinha e feijão, produtos que eram
cultivados na lavoura local. A fome assolava o povo, que se desdobrava no
trabalho árduo para vender seus produtos artesanais e cultivados na feira de
Limoeiro.
Aos
32 anos, decidiu fazer o supletivo para tentar vestibular. Ia à cidade todas as
noites. Dizem seus filhos que, em tempos de chuvas torrenciais, a comunidade
onde ele residia, separada da cidade por um rio chamado Poço dos Paus, ficava sem
conexão com ela em função do volume de água que encobria e até desestruturava
as pontes de acesso à estrada que conduzia à zona urbana. Mesmo diante dessa dificuldade,
o pai o atravessava a nado para não desistir de concluir o Ensino Médio.
Deixava sua bicicleta às margens, levava roupas extras e um caderno dentro de
uma grande sacola preta em uma mão e nadava com o auxílio do outro braço. Após
a travessia, caminhava mais 4km até a escola Lauro Rebouças.
– É a saída. O ensino
pra papai sempre foi a solução para fugir de uma vida de pobreza. Ele sempre
disse isso a todos nós – contou seu filho Herman, que foi incentivado pelo pai
e também se graduou em Letras.
Por
vezes desacreditado até por sua família e amigos, José teve dificuldades financeiras
de efetuar sua inscrição no vestibular tamanha a carência de recursos. Mas a
humildade e a vontade de alcançar seus objetivos chamaram a atenção do Padre
Pitombeira que, em vez de emprestar, deu o dinheiro para que pudesse se
candidatar.
–
O padre Pitombeira foi um dos únicos que disse acreditar na capacidade de Zé. O
padre e Jurandir, um amigo que sempre ia até a casa dele deixar frutas e
verduras em tempos de aperreio. Todo mundo o chamava de louco e preguiçoso por
deixar mulher e filhos passando fome em casa para ir atrás de faculdade –
lembra Eliete, sua nora.
Apesar
das condições e das probabilidades contra ele, a aprovação logo se concretizou
e ele se tornou o primeiro em sua comunidade a ingressar em uma universidade. A
escolha por Pedagogia enfatiza o apreço que ele tem pelo conhecimento, mas
também torna notável o desejo de transmiti-lo a outras pessoas. Assim, iniciou
o seu legado com um exemplo que sua família seguiu na posteridade.
José
tem 11 filhos, 18 netos e 5 bisnetos, que se reúnem semestralmente em sua casa
atual. A maioria deles atua no magistério, fator que facilita encontros e deixa
a casa repleta de gente de todas as idades. Sua prole com dona Suzana é
animada, festeira e está sempre rindo e fazendo algazarra ao redor de sua mesa
de estudos, principalmente as crianças. Todos priorizam os encontros e a coesão
familiar.
Por
defender a educação como forma de enriquecimento humano e instigar seus filhos
e parentes à busca pelo conhecimento, ele levou essa paixão pelos livros
adiante: tornou-se professor de escolas públicas e logo depois coordenador e
diretor dessas escolas, inclusive do Arsênio Ferreira Maia, unidade a qual seus
filhos frequentaram.
De acordo com ele, as
dificuldades em exercer seu trabalho eram acentuadas com a presença dos
garotos, pois desde pequenos são astutos e engenhosos entre si e com os
professores. Henrique, o filho mais novo, conta saudoso sobre o tempo de
criança nessa época de colégio com seu pai e revela que causou grande alvoroço
numa tentativa frustrada de fuga: ao pular o muro do Arsênio, foi flagrado pelo
pai que, furioso, o obrigou a pular de volta para dentro.
Isso
revela muito da personalidade bastante peculiar de José, homem de marcantes
atributos, mas de atitudes tão curiosas. Apesar de seu corpo franzino e rosto
sereno, a língua é afiada para responder perguntas mal formuladas ou de
respostas óbvias.
– Andando de bicicleta
na rua, caí, cortei um joelho e passei no hospital para fazer um curativo e a
enfermeira perguntou: “Zé, você andou caindo?” e eu disse: “Não, caí andando”.
E isso tudo sem pensar mesmo sabe, sem maldade – conta.
Para toda pergunta
dirigida a ele, sempre há uma resposta pronta, o que mostra um homem destemido
e até mesmo valente. Dizem a família e os amigos mais próximos que até alma ele
já ameaçou. Tristes as pessoas que tentaram, alguma vez na vida, enganá-lo ou
desafiá-lo. Por vezes, foi abrutalhado com alguns para que se fizesse justiça.
Mas quem conhece apenas
essa versão de sua personalidade, jamais poderia acreditar no homem afetuoso
que ele pode ser com seus entes queridos, especialmente seus netos.
– Lembro-me de quando
Dante era bebezinho e papai deitou-se com ele na rede e cantou a música “Boi da
Cara Preta” e não teve jeito que fizesse o menino dormir. Tenho até o vídeo
dessa cena – contou Emília, sua filha, ao relembrar do primeiro ano do seu
filho Dante e as experiências que teve com o avô.
O amor dedicado aos
netos se expressou até mesmo em poesia, quando ele, em sua obra “A Lira e a
Viola”, publicou “A boneca de Cândida”, referindo-se a uma de suas netas
primogênitas, que já concebeu ao avô três dos seus bisnetos. Além disso, em sua
casa mora outra neta, Vivian, de quem ele cuidou desde os dois anos de idade
após a separação dos pais. Sob seus cuidados e os da avó, a menina foi criada
com esmero. Atualmente com 16 anos, ela já ingressou na universidade e emplacou
mais uma vitória ao nome da família, mas deixará a sua casa para residir em
outra cidade por conta da recente aprovação.
José é casado com
Suzana de Freitas há 55 anos. O casal se mostra realizado com todas as
conquistas. Embora com personalidades diferentes, ambos se tratam com carinho e
conseguem resolver as suas diferenças, feito decorrente de tantos anos de convivência.
Apesar de, na época em que desposaram, fosse comum na região fazer casamentos de
caráter contratual, a união se deu por motivos espontâneos e o apoio mútuo
favoreceu esse legado.
– O exemplo que ele nos
deu foi decisivo na busca pelo nosso sucesso. Pio, quando a situação demanda;
austero, quando a circunstância é propícia. No entanto, austeridade nunca se
concretizou no seu discurso paternal. O enfrentamento às dificuldades era
silencioso, sofrido, mas discretíssimo. As privações pareciam não angustiá-lo,
como se no fundo ele profetizasse a vinda de dias melhores – comenta Hildo,
relembrando dos aspectos mais marcantes de sua relação com o pai.
E esse legado é sempre
recordado nas reuniões em família. Contam as netas adolescentes que, atualmente,
o momento mais animado do dia é quando todos estão reunidos para o almoço.
Verdadeiros caldeirões com boa variedade são servidos todos os dias para tanta
gente em tempos de férias, quando todos viajam até Limoeiro para concretizar o
encontro.
– É a hora mais
movimentada, que todo mundo se junta pra conversar besteira e rir até cair. A
gente gosta de todo esse barulho e pessoas passando em todas as direções.
Panelas batendo, crianças chamando suas mães e a vovó fazendo suco de limão –
conta Isabele, sua neta.
A boa aventurança se
estabeleceu à luz do conhecimento e da peleja de José. Hoje, ele possui várias
propriedades e uma casa em Limoeiro, reconhecimento e uma despensa farta. Com a
aposentadoria, ele pôde realizar um sonho antigo: publicar livros. Depois de
fazer outra graduação, desta vez em Letras, aos 71 anos, ele escreveu “Iracema:
ficção, história e intertextualidade”, “A lira e a viola” e “O sertão do
futebol”, dentre outros livros que deram a ele espaço na Academia Limoeirense
de Letras.
Ele não mora mais na
comunidade onde nasceu, mas nunca esqueceu as origens e nem os que lhe ajudaram
no tempo das dificuldades. Apoia causas importantes e até mesmo ajuda a
financiar projetos sociais. Durante os tempos de seca que se estenderam desde
2012 até o início desse ano, ele compareceu a inúmeras reuniões na capital
Fortaleza para aprovar a construção de um reservatório de água na comunidade da
Faceira.
Além disso, ele se
dedica ao financiamento e gerenciamento de um time de futebol carente, o 13 da
Gangorra, e faz disso seu principal hobby. Também é sócio de um grupo de
estímulo à cultura, chamado Casa do Cantador, no qual frequenta assiduamente,
chegando a compor alguns versos e oferece-los aos cantadores.
Condecorado
por sua história e feitos, José Silvestre publicará ainda esse ano o livro “As
histórias que a história não contou”. A obra vai tratar de pequenas narrativas
contadas tradicionalmente em sua comunidade, sejam elas verídicas ou
ficcionais. O objetivo é criar um acervo da memória popular e cultural de
Limoeiro, lugar de um povo tão bom contador de histórias por tradição.
Comente
Atenção: Após a publicação, seu comentário estará visível na próxima aba: (x) Comentário(s)
Informamos que os comentários podem ser excluídos caso sejam considerados ofensivos, discriminatórios ou não tenham relação com o conteúdo das matérias.