Relegados à Invisibilidade na Cidade Sorriso


15 de novembro de 2015

Por Elisa Calmon e Matheus Plastino

Luís Barbosa nasceu em Curitiba e vive nas ruas de Niterói há 32 anos. Hoje com 66 anos, o paranaense relata: “Estou nessa situação, mas não me sinto falido”. Entretanto, retrata uma realidade de preconceito, opressão e sofrimento ao falar de como a sociedade e os órgãos públicos o encaram. Segundo os dados oficiais da prefeitura, esse senhor, com mais cerca de 120 pessoas, faz parte das estatísticas sobre pessoas em situação de rua no município. Contudo, para quem circula pela cidade com um pouco mais de atenção, é fácil estipular que esses números sejam, na verdade, consideravelmente maiores.

Inaugurado em 2012, o CREPOP (Centro de Referência Especializado em Situação de Rua) é a principal proposta da Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH) para contornar esse quadro. O centro tem, teoricamente, como função abrigar e apoiar essas pessoas em situação de vulnerabilidade social. O pequeno imóvel que funciona como sede da instituição está localizado na Rua Coronel Gomes Machado, no centro de Niterói. Com condições precárias e quase nenhuma limpeza, abriga os moradores de rua sem perspectiva em algumas desconfortáveis cadeiras na entrada ou até mesmo na calçada em frente ao local.

Os que mais deveriam ter voz sobre a eficácia desse projeto dificilmente são ouvidos. Porém, suas opiniões sobre o tema são homogêneas. Luís Barbosa é incisivo e apenas descreve a instituição como um “ladrão de documentos”. Já um outro morador da mesma área estende a crítica: “O CREPOP é o braço de opressão da prefeitura aos moradores de rua, eles vêm aqui, pegam nossos documentos e nossos carrinhos, que é de onde conseguimos algum dinheiro, e tentam nos levar para abrigos que não têm estrutura nenhuma.”

CREPOP, guardas municipais e prefeitura são criticados pelos moradores de rua por atuação repressiva (Foto de Matheus Plastino)
A cidade de Niterói conta com apenas três abrigos que somam 70 vagas. Diante dessa situação, em 2013, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro determinou, por meio de uma liminar de justiça, que a prefeitura da cidade aumentasse esse número. A decisão foi tomada após denúncias de irregularidades na Casa da Cidadania Florestan Fernandes, abrigo da Secretaria de Assistência Social de Niterói. A medida da 8ª Vara Civil de Niterói determinava a reinserção social, em um prazo de 90 dias, obrigando o respeito à dignidade e aos seus pertences, que devem ser devidamente identificados e guardados em um depósito. 

Entretanto, passados dois anos as estruturas de auxílio a esses cidadãos ainda não atendem às reais demandas. Rodrigo Alves de 29 anos, morador de rua há 4, diz que é melhor morar nas ruas de Niterói do que ir para os abrigos. “La é muito ruim. Todos eles são muito longe e não dão oportunidade pra gente trabalhar. Não temos condição de pegar ônibus para vir pro centro, e ficamos sem nada pra fazer, não tem cursos, trabalho e nem escolas.” 

Além da questão geográfica e funcional, o paranaense Luís diz que não existe garantia de permanência e que a vaga pode ser perdida sem critério algum. “Você vai para o abrigo e começa a se estabilizar e de repente vem um agente “marca um x” na nossa bunda e chuta a gente de lá sem um níquel no bolso. E aí fazemos o que? Voltamos pra rua”. 

Esses cidadãos são vistos pelo poder público e pela população como um empecilho ao ideal de limpeza urbana. Sendo assim, são recorrentes os relatos de recolhimento do material reciclável coletado, por exemplo, e seus documentos. Normalmente, essas ações da prefeitura são comandadas pelos agentes do CREPOP e contam com o suporte da empresa de limpeza urbana da cidade (Clin), Guarda Municipal e a Secretaria de Ordem Pública (Seop).

Essas intervenções em muitos casos ocorrem de forma violenta e desrespeitosa. Os moradores de rua localizados na Praça Juscelino Kubitschek, no centro de Niterói, são expulsos diariamente pela manhã por agentes da Guarda Municipal. “Eles chegam por volta das sete horas todo dia, acordam e expulsam a gente na cara de pau. Batem na gente. Eles têm até arma de choque”, disse Marcelo Souza (nome fictício) enquanto mostra as marcas da violência pelo corpo. 

Contudo, as agressões não são apenas físicas. Alguns dos moradores passam dias enchendo suas “burrinhas” (carrinho de carregar lixo) com o objetivo de vender para os ferros velhos. Porém, muitas vezes têm seu material levado na ação de “limpeza”. Fábio (nome fictício) disse que os agentes levam de documento a roupas. “Faz dois meses que levaram meu ganha pão, passaram aqui, jogaram meu carrinho cheio em um caminhão de lixo e foram embora. Agora eu fico aqui contando com a ajuda dos meus amigos pra ter o que comer”. No depoimento, ele diz como o CREPOP promete comida e banho todos os dias, mas ressalta que em nenhuma vez em que foi até a casa de auxílio havia refeição, além de os banheiros estarem sempre interditados. 

Fonte de renda para os moradores de rua, as "burrinhas" são constantemente confiscadas (Foto de Matheus Plastino)
Durante a conversa com um grupo de moradores de rua, uma van parou do outro lado da calçada. “Mais Saúde na Rua” prometia o adesivo que estampava o veículo. Uma assistente social atravessa a rua, interrompendo a história de um deles e pergunta por um morador que passou mal na semana anterior. Depois de indicar onde está o amigo, um dos integrantes do grupo relatou à mulher o caso de um senhor que, com as pernas machucadas há um ano, precisava ter seu curativo refeito.

A assistente social afirmou que sempre havia uma enfermeira no veículo para realizar essa tarefa. Mas naquele dia ela não estava ali. Um dos moradores foi até a van, remédio não havia. Voltou com um pacote de gazes e outro de atadura nas mãos, assumindo mais uma vez a responsabilidade de trocar o curativo do amigo que o acompanha na rua há mais de 30 anos. Porém, as condições são as piores e um ferimento grave ficou coberto por plásticos. 

Um de seus companheiros relatou o esforço em conseguir algum auxílio médico, mesmo com a van passando regularmente pela região. “Eles têm nojo de encostar na gente”, afirmou. Dessa forma, acusam ainda a iniciativa de ser apenas estratégia de propaganda política. 

Esse distanciamento da sociedade faz com que os grupos se tornem famílias. Com as dificuldades de atingir alguma dignidade social, apoiam-se um nos outros para resistir à opressão. Luís Barbosa acredita que ninguém sobrevive sozinho: “Enquanto ele estiver vivo nós vamos estar juntos, afinal se a gente não brigar unido quem vai brigar pela gente?” 

No entanto, nas ações dos órgãos públicos esses elos familiares constituídos pelos moradores não são respeitados, uma vez que famílias são dissipadas. Como relata um amigo de Luís: “Eles vêm aqui, levam um pra cada lado e a gente acaba sozinho nos abrigos. Sem trabalho, sem amigos e num lugar horrível, é preferível voltar para a rua.”

Infraestrutura precária dos abrigos faz com que a maioria dos moradores prefiram voltar às ruas (Foto de Matheus Plastino)
O SILÊNCIO DOS ÓRGÃOS MUNICIPAIS

A prefeitura foi procurada quatro vezes para responder sobre a situação, duas delas pessoalmente e duas por e-mail. Os órgãos procurados pessoalmente no dia 25 de março foram a Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos, o Centro de Referência Especializado em Situação de Rua (CREPOP) e Assessoria de Comunicação da prefeitura de Niterói (Ascom). 

A subsecretária de Assistência Social e Direitos Humanos justificou a falta de acesso aos números sobre os moradores de rua da cidade com a troca de gestão. A nova secretária, Verônica Lima, assumiu o cargo no dia 20 de março. Já o CREPOP informou apenas que não podia oferecer qualquer tipo de dados e orientaram o contato com a assessoria de comunicação.

Cinquenta dias após a primeira visita à assessoria de comunicação e nenhuma resposta ao e-mail enviado, esses mesmos órgãos foram procurados mais uma vez. No dia 15 de maio, a Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos reforçou o sigilo dos números e das informações, afirmando não ser possível fornecer qualquer referência sobre o assunto sem uma autorização superior, encaminhando a situação de novo para a Ascom, que manteve a posição e prometeu contato por e-mail. Repetidamente, nenhuma resposta foi obtida.

Na segunda visita ao CREPOP, apesar de não estarem autorizados a fornecer qualquer dado oficial, os funcionários do local contaram um pouco sobre o centro de referência. Disseram que todos os dias são oferecidas duas refeições diárias, local para banho e apoio psicológico. Mas, reconhecem que nem sempre existe quantidade suficiente de alimento para todos que vão até lá buscando uma refeição. 

Ao ouvirem sobre os depoimentos dos moradores de rua, com uma postura defensiva, os funcionários disseram que fazem o que podem com as estruturas existentes. Ressaltaram também que existe um grande número de pessoas em situação de rua que não são nascidas em Niterói e que quando isso ocorre eles tentam encaminhar o cidadão para o CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) da sua cidade de origem. Contam, entretanto, que não existe prioridade de atendimento em relação aos que são de Niterói e os provenientes de outras localidades. 

Além disso, falaram sobre as ações de rua que o CREPOP realiza em conjunto com a Guarda Municipal. Dizem que a ação policial acontece junto com a de agentes do órgão com o intuito de levar os moradores aos abrigos e aos centros de assistência. Eles se queixaram sobre a relação com os moradores de rua: “É muito difícil se relacionar com eles, não dá pra entender. Eles não querem ir pros abrigos, reclamam do CREPOP e de qualquer tipo de ajuda.”

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