A música como um instrumento de luta feminista


10 de novembro de 2015

Por Leon Lucius de Holanda

Recentemente, a palavra “feminismo” e o próprio movimento “bombaram”. Durante o último ano, por exemplo, o site do jornal Folha de S. Paulo o citou 137 vezes, entre artigos e notícias. Já o G1, um dos maiores portais de notícias do país, noticiou 12 eventos da Marcha das Vadias, que pede o fim de políticas e atos relacionados ao machismo. No Google, o “feminismo” é citado mais de 5 milhões de vezes. A música também não ficou de fora: no Brasil, a funkeira Valesca Popozuda abraçou o movimento e disse “eu sou feminista” e, lá fora, a cantora Beyoncé usou o telão de LED de suaperformance para estampar a palavra “feminista” (em inglês) no palco de uma grande premiação. Só nos Estados Unidos, essa performance foi vista em tempo real por mais de 8 milhões de pessoas.

No entanto, o que significa esse termo? O que significa esse movimento? Segundo Luciana Bittencourt, supervisora do projeto UFF Mulher e mestranda em Serviço Social na mesma instituição, a primeira coisa a se pensar em feminismo é pensá-lo no plural: “feminismos”. Além da questão da temporalidade, há também o fato de haver diferentes revindicações de diferentes grupos dentro do movimento. 

"A cada momento vão surgindo novas correntes e isso também vai reinventando o próprio feminismo" declarou Luciana. 

Segundo ela, as mulheres transsexuais e as mulheres negras são um exemplo da diversidade desse movimento. Essas vertentes específicas nascem, muitas vezes, de uma abordagem não eficaz nas necessidades destes diferentes grupos ou até mesmo da não inclusão deles. 

“Havia, por exemplo, o feminismo, que era das brancas de classe média que lutavam por mais direitos, mas que permaneciam com as suas domésticas, geralmente negras ou nordestinas, na mesma situação (que criticavam)”, explica a supervisora sobre uma das perspectivas do feminismo voltado para a questão racial. 

No entanto, apesar das diversidades sociais e temporais na história desse movimento, pode ser traçada uma definição mais genérica do que é feminismo. Segundo a doutouranda em Comunicação Social, Júlia Silveira, “o feminismo é a luta do ponto de vista pedagógico, simbólico e político de transformação dos papéis atribuídos na sociedade. É uma luta em que as mulheres são protagonistas, uma luta de emancipação para que estas possam ser quem realmente quem são”. Toda essa definição permeia os mais diferentes campos da representatividade política, social, econômica e midiática: o do direito da mulher decidir sobre o próprio corpo, a quebra de padrões sexualizados como nas propagandas de cerveja, a igualdade de salários e até mesmo a segurança de andar na rua vestindo o que quiser. 

Segundo Júlia, apesar das inúmeras modificações na nossa sociedade como resultado de um avanço democrático, as realidades de opressão, violência e machismo ainda são parte do nosso cotidiano. Os números comprovam isso: segundo relatório produzido pela FLACSO Brasil, mais de 92 mil mulheres foram assassinadas nos últimos 20 anos e 45% dos casos analisados pelo Mapa da Violência de 2012 ocorreram em âmbito doméstico e familiar; as mulheres ainda tem um rendimento mensal médio 21,7% menor que o dos homens, segundo o IBGE; e 76% dos jovens do país criticam as mulheres que tem vários “ficantes”, em pesquisa feita pelo Instituto Avon em parceria com o Data Popular. No Google, a palavra “machismo” tem quase 1,5 milhões de resultados a mais que “feminismo”.

Para a doutouranda, o feminismo, no entanto, não é uma luta restrita às liberdades das mulheres. Apesar de um inegável protagonismo feminino, “é uma luta que está ligada à pressão que os homens também sofrem por esse excesso de virilidade [imposta e cobrada pelo machismo]. ‘Homem não chora’, ‘tem que pegar todo mundo’, ‘tem que ser hétero’...”.

A percepção de que o homem também é afetado pelo machismo e de que a luta feminista também diz respeito a este “fugitivo dos padrões de imposição” são fruto dessa pluralidade atual do movimento (às vezes conflitante), que caminha junto das evoluções democráticas e tecnológicas.

MÚSICA E EMPODERAMENTO DA MULHER

Os campos formadores da cultura (a literatura, a música, o cinema) acompanham essa evolução e refletem os valores da nossa sociedade. Segundo Júlia Silveira, que, como parte do estágio docência do Doutourado na Universidade Federal Fluminense, leciona em disciplina cujo tema é Música e Sexualidade, “a música reflete a sociedade, os valores que são colocados, e, ao mesmo tempo, ela pauta e condiciona. [...] Pensar a cultura da música é pensar a sociedade no que tem de mais contraditório, confuso e complexo.” 

Essa complexidade, segundo ela, se coloca em músicas machistas, que “coisificam” (ou seja, tratam a mulher como objeto), assim como em músicas que questionam esses posicionamentos, ambas consumidas socialmente. 

Essa posição questionadora dentro da própria indústria fonográfica assume formas e corpos totalmente diferentes. Rita Lee, com sua “Pagu”, já fazia esses questionamentos 15 anos atrás. Hoje, as vozes da mulheres têm assumido percepções e questionamentos múltiplos e mais variados, como no caso de muitas funkeiras, que se reivindicam feministas e que propõem um empoderamento através da música.

 

Muito evidente no funk, mas também possível em qualquer outro estilo, algumas mulheres têm dado uma perspectiva à força feminina a partir da submissão do homem como resposta a muitas músicas que a subjugaram. Segundo Júlia, ao propor musicalmente, independentemente do estilo, esse tipo de inversão de valores, não há uma proposta do fim da relação de dominação.

“Você vai estar propondo uma relação de vingança e não de justiça”, explica Júlia, que também entende, por conta da violência corporal e simbólica sofrida pela mulher, a vontade de virar o jogo. Para ela, apesar disso, essas vozes não podem e não devem ser silenciadas, pois, ainda assim, pautam questões muito importantes para o movimento. Segundo ela, os feminismos não podem ser vistos como se pudessem ser feitos somente por mulheres que estão no campo acadêmico, por exemplo. 

A mesma visão vale para a relação de “recalcadas”, “invejosas” e “inimigas” promovida por muitas cantoras, como Valesca Popozuda e Anitta, que se empoderam através de suas músicas. Segundo Luciana, supervisora do UFF Mulher, também cabe uma crítica a esse tipo relação: 

“Entre as mulheres existe essa submissão de umas às outras, que é muito incentivada o tempo todo”, diz, citando construções sociais que afirmam, por exemplo, que as mulheres são fofoqueiras. “Além de pisar no homem pra se reafirmar como mulher, elas precisam pisar nas outras para mostrar que elas são melhores. No final, isso tudo acaba fortalecendo o estereótipo da mulher: ‘ela é fofoqueira, é invejosa, tem inveja da outra…’. Eu acho que, nesse sentido, acaba prejudicando [o movimento]”, conclui. 

Mas Júlia também reforça que “a música, assim como a nossa sociedade, abarca de tudo e é bem complexa”. Ela completa dizendo que, pessoalmente, por ser branca, universitária, de classe média, cis (pessoa que se identifica com o gênero que lhe é atribuído socialmente) e hétero, ela se sente parcialmente representada na indústria fonográfica, mas tem várias críticas: 

"Estou um pouco mais próxima de um padrão hegemônico de mulher. Minha única parte minoritária é ser mulher. De resto, eu estou em um segmento que tem mais espaço na sociedade. Então, por isso, acho que consigo encontrar “ecos” de mim na mídia e na indústria musical, mas também percebo muito uma cultura de desvalorização da mulher, da mulher como um ser que é menos capaz intelectualmente ou menos apto para realizar determinadas tarefas. Mas percebo uma série de intervenções artísticas de músicas, poetisas e escritoras que conseguem colocar em pauta suas questões", opina a doutoranda, dizendo também que alguns de seus extremos opostos são muito mais afetados pelo machismo de certas músicas, que vai desde a desvalorização da mulher até a sua hipersexualização

AMOR AO PRIMEIRO RAP

Mabu traz o feminismo ao Rap (Foto de Divulgação)
Ana Maria, de 36 anos, não é um extremo oposto de Júlia, no entanto, ela se distancia mais dos padrões hegemônicos da sociedade. Mulher, negra e mãe de três filhos, ela não se sente representada por esta indústria e tenta com a sua própria música criticar o mundo à sua volta. A partir da própria realidade, ela, que hoje é conhecida por seu nome artístico Mabu, compõe e canta raps que falam, entre outros temas, do cotidiano da mulher negra, do seu cotidiano. 

Para ela, a mulher, principalmente negra, sofre muito com a estereotipização feita pelos veículos de cultura, que vão desde a hipersexualização do seu corpo até o embranquecimento visual (pele mais clara e cabelos mais lisos). 

A Mabu, o lado artista da Ana, surgiu a partir do seu caráter crítico. Em 1991, ela começou a fazer parte do movimento feminista e também conheceu o hip hop. A vocação, então, surgiu da união do encantamento pelo estilo musical e pela voracidade das críticas em suas redações de escola. Para ela, foi “amor ao primeiro rap”. No entanto, a sua trajetória dentro do ramo musical só começou a se consolidar 19 anos depois. 

“Para a mulher, era muito difícil. Para a mulher negra e mãe solteira, era ainda mais difícil. Então, eu parei. Só em 2010, um leque foi se abrindo. Hoje, o rap é ainda um meio muito machista, mas já foi mais. Não se tinham ‘minas’ cantando rap”, ela conta. 

Crítica, a rapper diz que sua música não é para se ouvir e dançar, mas para se pensar sobre o que ela canta. Cantando sobre violência à mulher, sobre racismo e até mesmo sobre educação, ela diz que “são temas da Mabu”.

“Eu não trabalho com mentiras. O artista de rap não interpreta a música de outra pessoa. Ele vive aquilo ali (que ele canta). Eu abordo esses temas porque a Mabu (os) presenciou”, diz a cantora. 

Ela também conta que desde o início sofreu por abordar esses temas, principalmente por falar sobre a mulher e por ser mulher. Esse sofrimento foi desde de ser tachada de mal amada até ser impedida de cantar nas festas de hip hop por criticar os valores machistas da sociedade. 

Hoje, essas críticas têm mais ouvintes. Mabu participa, além de festas de hip hop, de eventos feministas, saraus e até oficinas em escolas e a mensagem que ela passa nas suas músicas causam uma mudança, mesmo que pequena. Ela narra casos, contanto histórias de homens que viram na sua realidade feminina e negra a realidade das mulheres que os criaram, de suas mães, avós e tias. 

"Um menino uma vez chegou para mim e falou: 'hoje eu vou dizer algo que eu nunca disse à minha mãe, vou dizer que eu amo ela.'" 

São essas pequenas mudanças que, para ela, condicionam o rap de mensagem, como ocorre na música "Desistir não tá com nada" (ouça). Ele nasce da necessidade de mostrar uma realidade e de criticá-la. No entanto, essa crítica tem um preço. Mabu conta que ainda sente medo: de voltar para casa depois de um evento à noite, de uma possível incompreensão do marido, do futuro que cabe aos seus filhos negros e até de ser mal interpretada. 

“Talvez eles nem existiriam se eu não fosse mulher e negra”, assume. No entanto, como diz uma de suas músicas, ela tem “a força do medo” e, paradoxalmente, o medo que também vem do grito é o que lhe dá mais vontade de gritar.

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