Regulamentação da prostituição: um debate sobre mulheres marginalizadas


03 de maio de 2015

A discussão sobre o assunto divide opiniões, mas todos entendem a necessidade de garantia de direitos às prostitutas 


Por Tatiana de Carvalho Oliveira



A 76ª Delegacia Policial (DP) e a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam) de Niterói invadiram um prédio no Centro da cidade, no dia 23 de maio de 2014. No “Prédio da Caixa”, como é conhecido o edifício, trabalhavam cerca de 400 prostitutas. A ação terminou na retirada de 300 delas do local e na interdição dos quatro andares em que trabalhavam. A ação foi determinada pela juíza Rose Marie, da 1ª Vara Criminal, e teve o auxílio de 13 delegacias do Estado do Rio de Janeiro.

Uma das prostitutas que estava presente na invasão policial participou de uma audiência pública, no começo de junho, e denunciou as ações da polícia no caso. Isabel (nome fictício) disse que as prostitutas foram ameaçadas, agredidas, humilhadas e roubadas pelos policiais. Segundo ela, houve também casos de estupros.
Na invasão ao “Prédio da Caixa”, cerca de 100 prostitutas foram encaminhadas à Deam, mas Isabel também denunciou ações ilegais cometidas na delegacia. Na audiência, ela relatou que a delegacia se negou a fazer as ocorrências das denúncias das prostitutas. A alegação foi de que a Deam não poderia interferir na ação da 76ª DP. Isabel ainda revelou que um advogado foi impedido por um policial de acompanhar o interrogatório das prostitutas. 

Única garota de programa que decidiu vir a público denunciar o caso, Isabel sofreu com as consequências dessa escolha. No dia 21 de junho, foi sequestrada por quatro homens, que a intimidaram caso ela não parasse de falar sobre o caso, ameaçando também a vida do filho. Isabel está agora sob a proteção de ativistas e sobrevivendo de doações online.

Os quatro andares do “Prédio da Caixa” onde as prostitutas trabalhavam – e, parte delas, morava – estão interditados sob a alegação de que o prédio está em “péssimo estado de conservação das instalações”. Os apartamentos dos outros seis andares do mesmo edifício, entretanto, não foram interditados.

O caso do “Prédio da Caixa” é mais um de violação de direitos humanos contra as prostitutas. Foi uma entre várias ações de “higienização” das cidades brasileiras no período que antecedeu a Copa do Mundo. Segundo o professor de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF) Éder Fernandes, a culpa não é da Federação Internacional de Futebol (Fifa). “A própria Fifa, indiretamente, exige dos países a regulamentação da prostituição. Isso aconteceu na Alemanha e na África do Sul. Eles já têm uma política de buscar essa regulamentação, porque sabem que um dos fatores que vai se destacar nesse tipo de turismo é o turismo sexual”, comentou o professor. Ele ainda acrescentou que o debate sobre regulamentação da prostituição ganhou visibilidade este ano justamente por causa da exigência e da pressão da entidade esportiva.

Durante a Copa do Mundo, fluxo de clientes da prostituição caiu na maioria dos bairros da cidade do Rio, segundo pesquisa do Laboratório de Etnografia do IFCS/UFRJ
O coordenador Renato Almada, da Coordenadoria de Defesa dos Direitos Difusos e de Enfrentamento à Intolerância Religiosa (Codir) da Prefeitura de Niterói, disse que o Estado não atende a esse segmento. “O que existe são ações pontuais, como, por exemplo, prevenção e redução de danos. O que deveria existir é uma política clara, debatendo o direito ao corpo, a saúde dessas pessoas, independentemente de sua identidade sexual, a segurança pública de forma ampla e o respeito à diversidade”, frisou. Almada ainda defendeu a regulamentação da prostituição. Ele destaca que essa medida tiraria as prostitutas de uma condição de vulnerabilidade e forçaria um debate social.

Atualmente, tramita no Congresso Nacional um Projeto de Lei que regulamenta a prostituição. Trata-se do PL 4211/2012, do deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ). Porém, a presença de uma bancada conservadora forte na Câmara dos Deputados é um empecilho à aprovação do projeto.

Éder Fernandes explicou que a opinião de quem será afetado pela regulamentação é a que deve ser a mais considerada. “O que os outros acham ou deixam de achar sobre a situação da prostituição se resolve a partir da seguinte pergunta: você se prostitui? Se não, então você, consequentemente, já é um ator secundário da discussão”, comentou.

Fernandes acredita que qualquer opinião sobre a regulamentação da prostituição com base nas próprias crenças e opiniões não resolve o problema social dessas mulheres, pelo contrário, apenas as estigmatiza ainda mais. Ele defende que haja discussão sobre a regulamentação da prostituição, porém ela deve conter mais do que ‘sim ou não’. A principal questão é se a regulamentação trará mudanças positivas para as prostitutas.

Projeto de Lei do deputado federal Jean Wyllys defende, entre outras pautas, a legalização das casas de prosituição, da cafetinagem e aposentadoria especial às prostitutas
Feminismo

A preocupação com as prostitutas faz parte da pauta feminista. Coletivos do movimento se posicionam sobre a regulamentação de acordo com suas experiências com essas mulheres e com a corrente que mais se identificam no feminismo. O debate feminista sobre a prostituição constrói-se, principalmente, na dicotomia dignidade da mulher x autonomia da mulher.

O coletivo feminista Marcha Mundial das Mulheres (MMM), criado em 2000 como uma manifestação contra a pobreza e a violência, é contra a regulamentação da prostituição. A integrante do grupo Maria Fernanda Marcelino disse que a prostituição mantém um padrão de sexualidade que coloca as mulheres a serviço do prazer masculino. “Além da pobreza, que empurra as mulheres (para a prostituição), nós temos esse pensamento fortemente enraizado na sociedade de que existem mulheres que são pra casar e mulheres que são pra transar. E as que são pra transar são as prostitutas”, completou.

A Marcha acredita que a prostituição trata a sexualidade das mulheres como mercadoria. Para Maria Fernanda, a regulamentação reforçará esse estigma. “Você vai consolidando uma ideia de que o corpo e a sexualidade das mulheres podem se tornar uma mercadoria legalizada”, comentou.

Para o coletivo, a prostituição não deveria existir. “Nós queremos um mundo sem prostituição”, disse Maria Fernanda Marcelino. A integrante defende que é necessário um conjunto de ações do Estado para que se conquiste o mundo idealizado pelo grupo. “É necessário um conjunto de ações de políticas públicas que garantam isso (o fim da prostituição). Entre essas ações, ter uma atenção especial no SUS para as mulheres que são prostitutas, oferecer capacitação para que elas tenham outras possibilidades de trabalho”, acrescentou. Ela também discorreu sobre outras políticas públicas que atinjam não só as prostitutas, mas as mulheres em geral, como creches, casas populares e geração de renda, “para que a gente não tenha mulheres donas de casa, dependentes economicamente de homens, e que, quando esses homens vão embora, elas ficam com os filhos e têm que se virar para dar conta deles”, disse.

O coletivo feminista Marcha das Vadias do Rio de Janeiro, uma manifestação contra violência sexual e de gênero e a favor da autonomia dos corpos, defende a regulamentação da prostituição. A integrante do grupo Indianara Siqueira acredita que regulamentar permite que responsabilidades sejam cobradas. “A regulamentação daria direitos às prostitutas. Poderemos exigir que os prostíbulos sigam regras sanitárias, por exemplo. Responsabilizar os donos (das casas de prostituição) em caso de agressão física”, comentou.

A Marcha das Vadias acredita que, com a prostituição na ilegalidade, as mulheres ficam sujeitas à violência e exploração dos clientes. Indianara argumenta que a regulamentação também ajudará em caso de o cliente não pagar pelo serviço.

A prostituição é, habitualmente, associada à exploração sexual de menores de idade. Esse é um argumento usado por quem é contra a regulamentação. Indianara, contudo, rebate essa posição. “A exploração sexual de menores não é culpa da prostituição”, afirmou. Para ela, regulamentar não é permitir a exploração de crianças e adolescentes, pois acredita que a responsabilidade de combater esse problema social é do Estado. “A regulamentação não impediria e nem diminuiria a exploração de menores. O governo é quem devia atuar melhor no combate (à exploração sexual de crianças e adolescentes)”, declarou. 

Na Europa, a não regulamentação da prostituição é realidade na maioria dos países. Nações que regulamentaram a atividade ainda são minoria
Debate sobre o PL 4211/2012

Enquanto a Marcha das Vadias do Rio de Janeiro acredita que o Projeto de Lei trabalha inúmeras questões que dão autonomia às prostitutas, a Marcha Mundial das Mulheres diz que o PL não melhorará a vida das garotas de programa. 

O primeiro ponto do Projeto de Lei em que as opiniões dos dois movimentos divergem é a diferenciação entre exploração sexual e prostituição. Enquanto que, para a Marcha das Vadias do Rio de Janeiro, a diferenciação é importante para garantir direitos às prostitutas, para a Marcha Mundial das Mulheres não há diferença entre os dois termos. “No projeto, ele (Jean Wyllys) separa o que é prostituição de exploração sexual. Para nós, essa diferença não existe. Essa suposta liberdade que as mulheres têm de escolher entre ser prostituta ou ser outra coisa, não existe. Você vai ali na Luz, por exemplo, uma região de São Paulo onde ficam mulheres pobres se prostituindo, e ela não pôde escolher ser médica. ‘Ah, vou ser médica. Não, não. Vou ser prostituta’”, indagou Maria Fernanda Marcelino.

Outra questão em debate entre as feministas é justamente a questão de liberdade trazida pela regulamentação. A Marcha Mundial das Mulheres defende que a pobreza empurra as mulheres para a prostituição. Indianara, da Marcha das Vadias, argumenta que isso não é motivo para não regulamentar a prostituição. “Existem outras profissões nas quais se entra nelas por conta da pobreza, como, por exemplo, doméstica ou gari. Nem por isso se privam essas pessoas de direitos”, pontuou. 

Um terceiro aspecto que gera debate entre grupos feministas recai sobre o fato de a prostituição ser uma forma de mercantilização do corpo. Maria Fernanda acredita nisso e diz que o fato de a sexualidade das mulheres se converter em uma mercadoria constitui uma opressão legal. Já Indianara afirma que a prostituição não é a culpada pela mercantilização do corpo. “O corpo da mulher é mercantilizado de outras maneiras. As manicures também têm as mãos exploradas”, ressaltou.

Há também uma discordância quanto ao projeto de supostamente legalizar a cafetinagem. Indianara Siqueira defende que não existe cafetão ou cafetina, mas sim prestadores de serviço. Para ela, esse é um dos principais pontos no projeto de lei para que as prostitutas conquistem autonomia. Já para Maria Fernanda Marcelino, o cafetão não é um intermediário, mas sim um explorador. “Significa, além de um padrão de sexualidade a serviço do prazer masculino, outros homens explorando a sexualidade de mulheres”. Questionada sobre qual seria a melhor forma de intermediar o contato entre a prostituta e o cliente, Maria Fernanda reforçou sua aversão à prática da prostituição, com ou sem a figura do cafetão. “Nós não queremos outra forma de intermédio, de coordenação ou sindicato. Nós queremos um mundo sem prostituição”.

Uma das defesas do posicionamento contrário à regulamentação da Marcha Mundial das Mulheres é que não há no Projeto de Lei 4211/2012 políticas públicas para as prostitutas. “O projeto de lei não tem uma linha sequer de melhoria de condições de vida, de políticas públicas ou de coisas que venham a garantir melhores condições às mulheres”, declarou Maria Fernanda. Para a Marcha das Vadias do Rio de Janeiro, entretanto, a legalização do associativismo ajudará nessa questão. “Reunidas em associações, as prostitutas poderão discutir melhorias para elas próprias, principalmente na questão da segurança e da saúde”, disse Indianara.

A última divergência entre os coletivos é sobre a determinação de que exploração sexual pelo cafetão se dá quando ele retira da prostituta 50% ou mais do valor ganho. Maria Fernanda Marcelino acredita que a percentagem já se trata de uma exploração. “Do seu trabalho, da sua renda quanto fica pro seu patrão? Não é 50%. E por que de uma prostituta deveria ser de 50%?”, questiona. Indianara, por sua vez, garante que quem determinou esse valor foram as próprias prostitutas. “O Jean Wyllys é apenas quem vai brigar pelo PL (dentro da Câmara), mas não foi quem construiu o projeto. Isso partiu da Rede Brasileira de Prostitutas”, enfatizou.

Regulamentar ou não?

O professor Éder Fernandes garante que regulamentar a prostituição é necessário, mesmo que ela não resolva todas as questões em torno da dicotomia autonomia da mulher versus dignidade da mulher. “A regulamentação, mesmo dando continuidade à prostituição, é um instrumento que causaria uma melhoria nessa situação”. Ele também falou do projeto de lei que tramita na Câmara. “O estado atual do projeto é entender que a regulamentação é interessante. Mesmo que ela não venha a resolver o problema do patriarcado ou da reedificação do uso da mulher como um objeto sexual”.

O coordenador do Codir, Renato Almada, também defende a regulamentação. “Tudo que é feito na ilegalidade é ruim por uma questão simples: temos limitações para atuar enquanto Poder Público”. Outra questão do Projeto de Lei 4211/2012 é que ele apresenta somente questões trabalhistas. Renato Almada disse que é necessário um conjunto de ações que defendam as prostitutas. “Garantia de direitos trabalhistas não são garantias de direitos sociais”, questionou. Já Éder Fernandes considera que o projeto promove debates. “Com a regulamentação, a gente tem várias consequências. A primeira delas é de que o problema vem à tona. Vindo o problema à tona, eu tenho a oportunidade de discutir tanto a questão da dignidade quanto a questão da liberdade”, comentou.

O professor de Direito também defende que a regulamentação viabiliza críticas a posturas moralistas que estão em torno da prostituição. “(A regulamentação) É uma ressignificação da sexualidade. É também tirá-la de um âmbito privado e inquestionável, e entender que o corpo também é construído a partir de pronúncias públicas”, ressaltou. 

Questionar a regulamentação da prostituição é importante para entender que consequências isso trará para a vida das prostitutas. A preocupação com essa categoria, segundo eles, também deve estar presente em estabelecer um diálogo com elas. “Temos que ter diálogo aberto com o segmento e saber qual é a demanda da política pública a ser desenvolvida. Não podemos continuar construindo essas políticas por conta própria. Deve existir um diálogo com o movimento social”, declarou Renato Almada.

Éder Fernandes valoriza a importância não só de um diálogo com as prostitutas, mas a existência de um diálogo entre elas. “Ao chamar esse problema (falta de políticas públicas) para um debate, seria interessante se os próprios afetados começassem a constituir as regras da sua relação”. Ele acredita que um associativismo é uma solução para as prostitutas mais pobres resolverem questões trabalhistas, como segurança, ambiente de trabalho e o percentual que deve ser passado para os intermediadores dos programas.

Busca Cadernos

Loading

Quem somos

Minha foto
Cadernos de Reportagem é um projeto editorial do Curso de Comunicação Social da UFF lançado em 3 de outubro de 2010.
 
▲ TOPO ▲
© 2014 | Cadernos de Reportagem | IACS