Descriminalização do aborto ainda divide opiniões no Brasil

6 de novembro de 2014

Dos 46 milhões de abortos realizados no mundo, 20 milhões ocorrem clandestinamente, provocando cerca de 70 mil mortes todo ano por complicações como infecções, hemorragias e danos uterinos.

Fernanda Queiroz e Maria Clara Pestre


Com 21 anos, sem condição financeira ou um relacionamento estável, E.L., 25, engravidou e decidiu abortar. Em seu país, entretanto, o aborto é considerado crime. Sem alternativas, a estudante buscou uma clínica ilegal. O procedimento aconteceu sem deixar sequelas, e E.L. seguiu para o pós-operatório. Porém, na primeira consulta de acompanhamento ela percebeu um comportamento estranho do seu médico. “Ele ficou passando a mão no meu clitóris de um jeito que não era mais médico, e sim no intuito de me dar prazer. Fez isso também nos seios. Eu percebi, não falei nada, por medo mesmo, afinal, sentia-me uma criminosa, estava confusa”, disse. 

Esse caso, embora particular, ilustra a situação de milhares de mulheres que, ao redor do mundo, buscam o aborto ilegal. Marginalizadas pela escolha de não ter um filho, elas são silenciadas e expostas a violências físicas, mentais e muitas vezes sexuais que ficam à sombra da regulamentação. Na maioria dos casos, as grávidas são submetidas a condições insalubres, ferramentas inapropriadas e utilização de força bruta, motivos que podem causar infecções, hemorragias e até a morte. Todo ano morrem, ao redor do mundo, aproximadamente 68 mil mulheres por complicações geradas por abortos ilegais, representando 13% das mortes maternas no mundo. Esse número, na América Latina, é ainda maior, chegando a 17%, de acordo com a World Health Organization (WHO).


Número de abortos inseguros por 1000 mulheres de 15-49 anos por região (1990-2000)

Essa conta, entretanto, não esgota a quantidade de casos desse tipo, já que grande parte das mulheres que vivem em países que proíbem o aborto não busca ajuda médica quando em face de complicações. Na América Latina, esse número corresponde a 14%. “Muitos profissionais da saúde recebem com maus tratos mulheres que sofreram aborto, seja ele espontâneo ou provocado”, afirmou Paula Curi, professora de Psicologia da UFF que já trabalhou nesta atividade em maternidades públicas. Soma-se, portanto, ao medo da punição, o receio de ser agredida, física ou psicologicamente. 

De acordo com a WHO, entre 20 e 40% dos abortos ilegais realizados no mundo causam infecções ou infertilidade, e 2% da população feminina em idade reprodutiva são inférteis devido à má realização do aborto. Na África do Sul, por exemplo, após a legalização do aborto em 1996, o número de mulheres com complicações graves, como falência de órgãos, infecções e identificação de corpos estranhos, caiu de 16,5% para 9,7%, segundo a organização.

Pesquisas realizadas em países que permitem o aborto indicam uma queda no número de procedimentos. Na Holanda e no Canadá, por exemplo, os números de abortos para cada 100 mulheres em idade fértil são, respectivamente, 0,53 e 1,2. No Brasil, de acordo com a WHO, esse número é ainda de 3,65. 

Gastos Públicos

No Egito, um estudo dos registros médicos nos hospitais públicos no período de 30 dias mostrou que 20% das 22.656 admissões obstétricas e ginecológicas eram para tratamento do aborto induzido, ou espontâneo. No Brasil a curetagem, limpeza do útero, é o procedimento mais realizado nos hospitais públicos. Portanto, mesmo não sendo responsável pelos procedimentos em si, a despesa pública relacionada ao tratamento de complicações do aborto é significativa. 

Esses gastos incluem o custo da internação, do uso dos medicamentos e de recursos como bolsas de sangue e equipamentos, entre outros. Comparado com o dispêndio relacionado à realização do aborto eletivo na Uganda, por exemplo, a WHO informa que esse custo se mostrou 10 vezes maior. 

Entenda a situação no Brasil

Tendo em vista o recente caso de Jandira Magdalena dos Santos, 27 anos, desaparecida após procurar uma clínica de aborto na Zona Oeste do Rio de Janeiro, o tema da legalização do aborto voltou a ser debatido no país. Embora entre feministas, membros da Igreja e o público em geral a discussão tenha se acentuado, o Código Penal Brasileiro (1984) determina o aborto como crime contra a vida humana. A pena para mulheres que o praticam conscientemente pode chegar a até quatro anos. Para terceiros que o fazem sem o consentimento da mãe, a até 10 anos de prisão. 

Brechas na legislação vêm sendo abertas e alguns casos especiais da prática já são considerados legais, como quando há riscos de vida para a mulher, quando a gravidez é resultado de um estupro ou se o feto apresenta anencefalia (sem cérebro). A lei do aborto de anencéfalos, conquista mais recente entre os casos especiais, entrou em vigor em 2012 por decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) que descreve a prática como “parto antecipado para fim terapêutico”. Nesses casos, o governo brasileiro fornece gratuitamente o aborto legal e acompanhamento pós-operatório através do SUS (Sistema Único de Saúde).

Leis sobre o aborto presentes no Código Penal Brasileiro:

TÍTULO I: DOS CRIMES CONTRA A PESSOA
CAPÍTULO I: DOS CRIMES CONTRA A VIDA

Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento

Art. 124 – Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque
Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos.
Aborto provocado por terceiro.

Art. 125 – Provocar aborto, sem o consentimento da gestante
Pena – reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos.

Art. 126 – Provocar aborto com o consentimento da gestante
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.
Parágrafo único – Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de 14 (quatorze) anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência.
Forma qualificada.

Art. 127 – As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em consequência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém à morte.

Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico: aborto necessário
                                                                                                             
I- se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
II- se a gravidez resulta de estupro e o aborto precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal;
III- se o feto é portador de anencefalia, comprovada por laudos independentes de dois médicos.
Uma alternativa para mulheres brasileiras que desejam abortar é realizá-lo fora do território nacional, em países que permitem a prática. A pesquisa nacional do aborto da UnB (Universidade de Brasília) indica, entretanto, que cerca de cinco milhões de abortos já foram realizados no Brasil até hoje, ou seja, o número de mulheres que saem do país para fazer esse procedimento é ínfimo.

Um dos principais fatores para essa falta de procura é a baixa renda das mulheres. “Meninas ainda, dizem que não têm condições em casa para cuidar de uma criança, que já têm muitos filhos e não podem ter mais um, que o pai desapareceu. São muitos os fatores que as levam a fazer o aborto”, diz Paula Curi.

Argumentos pró e contra o aborto

A associação entre a alta mortalidade feminina e realização do aborto ilegal é um dos principais argumentos de quem defende a legalização desse procedimento. O caso de Jandira, já citado, e o de Elizângela Barbosa, 32, que morreu dia 21 de setembro desse ano, também após um aborto, ilustram esse quadro. A criminalização do aborto não impede que mulheres o façam, mas as obriga a fazê-lo em condições inseguras. Dos 46 milhões de abortos realizados no mundo, 20 milhões ocorrem clandestinamente, provocando cerca de 70 mil mortes todo ano por complicações como infecções, hemorragias e danos uterinos. Aproximadamente 220 mil crianças perdem suas mães por mortes relacionadas a problemas na realização do aborto anualmente. Todo esse sofrimento, afirmam os defensores, poderia ser facilmente evitado caso houvesse a regulamentação do aborto. Quando legalizado, o aborto seguro tem uma das menores taxas de mortalidade de todos os procedimentos cirúrgicos: apenas uma morte para 100 mil procedimentos, de acordo com a WHO.

“Senti muitas dores e três dias depois tive uma hemorragia. Minha mãe ligou para a médica, mas ela não nos atendeu”, contou V.T., 33. “Antes eu não tive nada disso [acompanhamento psicológico]. Consultei-me num dia e, dois dias depois, fiz o procedimento”, disse E.L. Mulheres que optam pelo aborto atualmente, no Brasil, estão sujeitas a esse tipo de tratamento: nenhum acompanhamento, antes ou depois do procedimento e cirurgias realizadas de maneira inapropriada. Essas condições representam um risco para a saúde e vida dessas mulheres.

Respeitar a vida, parece-me, respeitar aquelas que dão a vida, e, em primeiro lugar, a mulher, que por tempos imemoriais tem sido objeto da vontade do homem ou da razão do Estado, e respeitar a sua liberdade – singularmente – a liberdade de dar a vida – parece-me indispensável para abrir à humanidade os caminhos da verdadeira vida humana
(Jean Rostand, filósofo e historiador)

“Sim, o meu corpo me pertence. Mas se ele me pertencer, é, acima de tudo, porque sou mais do que um corpo. Sou também uma razão, um coração, uma liberdade. Sou a responsável pela mais importante das escolhas de um ser humano: dar – ou não a vida.”

(Gisã Halimi, feminista)

Outro dos principais argumentos daqueles que são a favor da legalização do aborto é a autonomia da mulher sobre seu próprio corpo. Uma gravidez causa sintomas como inchaço, alterações na cor da pele, sonolência, fadiga, náuseas, vômito, prisão de ventre, dor nas costas, surgimento de varizes, enxaqueca, falta de ar, reflexos mais lentos e em alguns casos até taquicardia. Em países em desenvolvimento, como o Brasil, 25% a 50% das mortes de mulheres acontecem por complicações relacionadas à gravidez. Segundo esse grupo, composto em sua maioria por feministas, a escolha de se submeter a todos esses efeitos deve ser da mulher.

"Ser a favor da legalização do aborto não é ser a favor da prática; é ser a favor de que cada mulher nessa situação tenha a oportunidade de ser ouvida", disse Carolina Couto, 20 anos, estudante e feminista. Sob esse ponto de vista, a proibição do aborto configura uma imposição machista, que desconsidera o direito da mulher sobre seu próprio corpo.


Contra a legalização do aborto, há os membros da Igreja e conservadores, autodenominados de Pró-Vida. “A partir da concepção já existe uma vida humana, como é atestado pela própria ciência.”, afirma William Murat, 45, administrador de sistemas e dono do blog e da página no Facebook Contraoaborto. “Os defensores do aborto têm dois caminhos a seguir: ou negam o que a ciência já afirma há anos através da Embriologia Humana e defendem que aquele ser que está no ventre da mãe não é um ser humano, ou mesmo admitindo que já se trata de uma vida humana, devem explicar por que aquele ser humano frágil, inocente e sem ter como se defender deve morrer. O aborto deve permanecer proibido, pois se trata de um crime contra a vida, como está exatamente escrito em nosso Código Penal”, continua.

De acordo com a embriologia humana, durante a fecundação, período no qual o espermatozoide penetra o óvulo fundindo-se num só e formando a primeira célula humana, há o surgimento de um ser vivo, que possui os mesmos direitos de um ser vivo, assegurados pelo Artigo 2° do Código Civil Brasileiro, que determina: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com a vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Consequentemente, de acordo com a lei brasileira, o aborto, em qualquer período da gestação, representa o assassinato de um indivíduo.

A Igreja Católica, apesar de também ser contra essa prática, apresenta argumentos distintos. Desde o século IV, a instituição condena o aborto por considerar que a alma é infundida no novo ser no momento da fecundação. Além disso, considera toda medida anticoncepcional como “um crime contra a natureza”, excluindo os métodos que estabelecem a abstinência sexual para os dias férteis, deixando os fiéis sem meios alternativos de evitar a gravidez indesejada. 












Programas de Governo

No contexto atual das eleições para presidente da República e do crescente interesse público na temática, alguns candidatos se posicionaram sobre o aborto. Em seu programa de governo, a candidata Luciana Genro (PSOL) afirmou: “O direito das mulheres a não morrerem em abortos clandestinos é um direito democrático básico. O aborto é uma realidade no Brasil e no mundo, e milhares de abortos são praticados a cada ano de forma clandestina. Enquanto as mulheres que têm dinheiro podem praticá-lo em clínicas privadas com absoluta segurança, as mulheres pobres recorrem a métodos precários que colocam em risco sua saúde e sua vida”.

Enquanto isso, o candidato do Partido Social Cristão (PSC), Pastor Everaldo, posicionou-se contra a prática do aborto, definindo-o como um “recurso paliativo de uma política inconsequente de planejamento familiar”.  

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