Preconceito sem fronteiras

15 de maio de 2014

A homossexualidade, a violência homotransfóbica e a luta por direitos no peculiar contexto interiorano

Natacha Dominicci

Didier Eribon, escritor e filósofo homossexual francês, viveu no interior da França na década de 60. Ele fala sobre um movimento da sua geração de fuga para a cidade grande na busca por pessoas com experiências próximas e para ser valorizado naquilo que o desqualificava na cidade pequena. Meio século depois, esse movimento persiste. A diferença é que não apenas o interior continua sendo local de opressão homossexual, mas os grandes centros vêm perdendo a condição de refúgio devido à violência homotransfóbica.

“Eu frequento São Paulo há mais de 20 anos porque desisti de ter uma vida social aqui.” Silvano Leite Tolentino, 43, mora há 40 anos em Bragança Paulista, a 86 km da capital São Paulo. Ele morava na periferia e sofreu muito preconceito na escola e na vizinhança em que morava. “Isso foi traumatizante. A culpa e o sentido de pecado eram muito presentes em mim.”

Outros moradores confirmam a maior discriminação contra a homossexualidade no interior. Erika Thaís Gonçalves da Silva, 23, mora em Jundiaí, a 60 km da capital paulista. Casada há oito meses com Michelle Lazarento Vários, 23, ela conta que o preconceito é disfarçado. “As pessoas têm medo de serem taxadas como preconceituosas.” 

Segundo Erika e Tolentino, um fator que contribui para uma maior homofobia no interior é a forte presença da religião. “Bragança Paulista é uma cidade extremamente religiosa. Por mais que as pessoas aqui fossem moderninhas, gay nunca tinha chance”, fala Tolentino.

Marcos Paulo de Oliveira da Silva, 23, veio do Recife e mora há sete anos em Extrema (MG), divisa com São Paulo. Ele é evangélico e afirma que a religião dificulta o respeito e a aceitação. “Querem sempre contestar o fato de eu ter vindo da igreja evangélica e hoje ser homossexual.”

Contraponto

Cristopher Magnum Valencio, 23, também morador de Extrema, tem uma perspectiva diferente. Ele viveu em São Paulo durante algum tempo e considera o interior mais tranquilo por tornar possível que os homossexuais sejam avaliados por sua personalidade e não por sua orientação sexual. “Em São Paulo as pessoas te olham torto porque não te conhecem”.

Valencio acredita que o preconceito seja menor em cidades pequenas

O fato de morar no interior influenciou de diferentes formas no processo de algumas pessoas se assumirem homossexuais. Michelle assumiu sua orientação sexual quando morou por um ano em São Paulo. Embora tenha sofrido preconceito por parte da família quando voltou para Jundiaí, sentiu-se mais livre. "Estava no meu lugar, conhecia mais pessoas e me sentia mais protegida."

Eva Marques Moretto, 16, morava em Extrema quando decidiu assumir sua orientação sexual, o que tornou o processo mais difícil. “Geralmente todo mundo conhece todo mundo. Então, de certa forma, acaba ficando uma situação constrangedora. As pessoas te olham diferente.”

Tolentino sofreu sua primeira discriminação ainda aos 4 anos, quando um amigo foi proibido pelo pai de ter amizade com ele. “Sempre fui delicado. Na infância, eu era andrógeno. As pessoas confundiam se eu era menino ou menina e isso me incomodava, porque eu sabia já o que eu era, e falava que era menino. Minha consciência gay se construiu com a homofobia.”

Invisibilidade da metrópole

Marcelo Santana Ferreira, professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), diz que o ambiente interiorano pode contribuir para que a pessoa não assuma sua orientação sexual. “Na cidade grande tem-se a impressão de que estamos invisibilizados, mas isso pode ser positivo para quem está fugindo de um contexto de muita opressão e injúria.” Ferreira também aponta a dificuldade de muitos homossexuais de expressar o que sentem para pais e amigos. 

Eva diz que muitas vezes os pais sentem vergonha pelos filhos. “Causa um transtorno nas pessoas que conheciam uma menina que a mãe arrumava bonitinha, do nada passarem a vê-la como menino. Isso afeta a família também.”

Erika sente mais dificuldade de se mostrar homossexual no interior. “É mais difícil em Jundiaí. Respeito as pessoas e suas opiniões, sei que ainda é estranho ver um casal gay de mãos dadas.”

Marcos Souza, 16 anos, que também mora em Extrema, não se sente livre. Ele evita tornar pública sua homossexualidade para preservar o casal. O medo não é apenas da violência, mas também das fofocas, que podem atrapalhar a vida profissional dele e a do parceiro.

Abrangência da violência

A violência vem inibindo homossexuais também em cidades grandes. Erika e Michelle têm medo de andar juntas em São Paulo. Elas se sentem mais seguras em Jundiaí, onde cresceram.

Marcelo Ferreira aponta a gravidade de perceber os afetos das minorias como possíveis apenas em contextos privados. “Isso é decisivo na forma como as relações se dão e na busca de guetos, lugares onde supostamente estariam mais protegidos. É um problema político muito sério.”

“Os afetos das minorias são colocados como se pudessem existir só de maneira privada” (Marcelo Santana Ferreira, professor de Psicologia da UFF)

Marcos Paulo morava em Pernambuco. Lá muitos homens associavam produtos, como o xampu, ou cuidados pessoais, como limpar as unhas, com o universo feminino. Como saiu de um contexto de maior preconceito, ainda não sente tanto medo em Extrema. 

Mas a violência homotransfóbica está alcançando o interior. Uma conhecida de Erika foi agredida em Jundiaí recentemente. Marcos Souza, que decidiu voltar para Extrema após um amigo homossexual ser agredido em uma boate em São Paulo, presenciou uma cena de violência em Extrema também. “O casal estava em uma esquina. Chegou um grupo de pessoas e começou a zoar. Depois alguém começou a agredir um dos rapazes, e então todos foram para cima dos dois.”

Em Bragança Paulista também houve casos de violência a homossexuais. No final do ano passado, uma das vítimas foi internada com fraturas no rosto. “O discurso aqui, até mesmo entre os homossexuais, é de saber o que ele fez para merecer ser agredido”, conta Tolentino. 

O professor da UFF aponta a existência de uma homofobia internalizada. “É muito sério, muito estranho existir certo modelo de homossexual tolerado. O mundo não é apenas dos que se adéquam ao que está estabelecido.” Ele acrescenta ainda que o aumento da violência pode ser atribuído à naturalização da violência homofóbica, à impunidade e ao silenciamento do poder público.

“O discurso em Bragança, inclusive entre os homossexuais, é de saber o que ele fez para merecer ser agredido” (Silvano Leite Tolentino)

Tolentino estava hospedado próximo ao local em que Kaique Augusto Batista dos Santos, 17, homossexual, foi encontrado morto, sem os dentes e com uma barra de ferro atravessada em uma das pernas, em 11 de janeiro desse ano, no centro de São Paulo. O caso foi registrado pela polícia como suicídio, embora a família de Kaique e grupos LGBT tenham questionado essa versão, alegando se tratar de homicídio. “A paranoia está solta. Está muito perigoso. Perdemos totalmente a liberdade e a segurança. O mesmo medo que sinto em São Paulo, eu sinto aqui”, conta Tolentino.

Avanço versus retrocesso

A possível diminuição da discriminação aos homossexuais no interior ao longo do tempo gera discussão. Marcos Paulo e Valencio são otimistas, afirmando que as pessoas estão com a mente mais aberta quanto às relações homoafetivas. Já Eva e Erika acham que o preconceito vem sendo apenas disfarçado. “Hoje em dia muitos falam que aceitam, mas continuam com o mesmo pensamento preconceituoso. Não tem problema com os outros, mas se meu filho virar homossexual é o fim do mundo”, afirma Eva. Ela associa tal relutância na mudança de pensamento ao conservadorismo da população mais velha.

Tolentino acha que se tornou senso comum a ideia de que as coisas estão melhorando. Para ele, toda a abertura dos anos 90, quando teve início o debate sobre a identidade de gênero e a orientação sexual, regrediu nos anos 2000, com a ascensão das igrejas pentecostais.


Tolentino critica o retrocesso na discussão atual sobre o preconceito homofóbico  

O professor Marcelo Ferreira aponta também o perigo de algumas figuras públicas realizarem discursos desqualificando as minorias. “É como se, no jogo democrático, a liberdade de expressão fosse apenas você falar o que bem entende. Isso tem contribuído de maneira muito radical na naturalização da violência homofóbica.” Na opinião dele, a homofobia não diminuiu, foi apenas invisibilizada.

Conscientização da luta LGBT

Bragança Paulista e Jundiaí contam com grupos em defesa do movimento LGBT e sediam Paradas Gays – já aconteceram oito em Jundiaí e sete em Bragança. “As paradas são muito importantes, mesmo que muitas pessoas tenham a impressão de que é só uma festa. Que seja uma festa, que permita uma visibilidade de afetos, de corporeidades outras. É uma das únicas oportunidades no ano em que as minorias podem se sentir mais à vontade na cidade, sem serem recriminadas pelo seu comportamento”, afirma Ferreira. Ele destaca que é muito positivo o fato de eventos como estes aparecerem no interior, lugar improvável até algum tempo atrás.   



Marcos Paulo esteve em três paradas em São Paulo e afirma que, embora eles digam que estão lutando pela garantia de direitos, não vê isso acontecer na prática. Ele participa do evento pela festa.

Já Tolentino destaca a importância das paradas em todas as cidades do Brasil. “Elas dão visibilidade à causa e ao orgulho gay. Existem certos abusos, como em todas as festas, mas não representam a parada. Ela representa o não silêncio; mostra que você tem orgulho de ser o que você é, não de ser sem vergonha, mas de não ter vontade de morrer e de se matar dentro de uma sociedade heterossexista”.

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