Órfã de cinema

21 de maio de 2014

Apesar de Niterói ter 11 salas de cinema, sete delas são do mesmo distribuidor. E não há nenhum cinema de rua

Rafael Trovó

Niterói, a cidade-sorriso, possui 490 mil habitantes e o sétimo melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil. Seu Produto Interno Bruto (PIB) per capita chega a R$ 29.738, acima da média brasileira. Fica a 14 km do Rio de Janeiro, cidade que receberá os principais eventos esportivos da década. Por essas e outras, Niterói é primeiro lugar em qualidade de vida no estado fluminense. 

No entanto, quando o assunto é cinema, a cidade não tem motivos para se orgulhar. Há 11 salas de exibição no município (número considerado razoável). Porém, todas estão concentradas na mão de apenas dois exibidores: Cinemark (no Plaza Shopping, com sete salas) e Severiano Ribeiro (no Shopping Bay Market, com quatro). No total, há na cidade 2.416 poltronas. Cada cadeira corresponde a 201 habitantes. Nenhum cinema de rua. O que aconteceu com Niterói e sua tradicional história cinematográfica?

As ruas da cidade guardam as lembranças de um passado de ouro. A partir do final do século XIX, Niterói já exibia sessões esporadicamente, trazidas por exibidores do Rio aos teatros niteroienses. Espalhadas por bairros como Barreto, Santa Rosa, Centro, Itaipu e Icaraí, mais de 25 salas de cinema de rua foram esquecidas e fechadas quando o perfil do espectador mudou e os cinemas de shopping ganharam espaço na cidade. A década de 50 presenciou o alastramento das exibições por toda Niterói. Exibindo clássicos de pornochanchada a filmes aclamados pela crítica, os cinemas atingiram o ápice naquela década e permaneceram no topo até meados dos anos 80.


Em 1987, o Niterói Shopping (considerado o primeiro da cidade) inaugura duas salas de exibição. O Plaza abre duas salas (Art Plaza 1 e 2) ao lançar nova expansão em 1992. Em trecho do livro Cinematographo em Nictheroy, que reúne uma pesquisa sobre a história dos cinemas em Niterói, o autor Rafael de Luna Freire, professor de História do Cinema Brasileiro na Universidade Federal Fluminense (UFF), explica que as salas de cinema em shopping serviam como “âncora” ao empreendimento, atraindo mais pessoas, diferentemente dos cinemas de galeria, que apenas alugavam uma sala que poderia ser ocupada por qualquer outra clientela, desde salão de beleza até lojas de departamento. As quatro primeiras salas de exibição em shoppings de Niterói não foram duradouras: fecharam suas portas na mesma década em que abriram.

A grande mudança do circuito exibidor em Niterói (e no Brasil) acontece com a chegada do modelo multiplex de exibição, em 1997. O novo estilo prioriza maior variedade de horários, mas não de filmes. São conglomerados de salas no mesmo local. O Cinemark Plaza Shopping, atualmente o principal cinema de Niterói, é exemplo de multiplex bem sucedido. Tetê Mattos, cineasta, professora do curso de Produção Cultural da UFF e organizadora do Festival Arariboia Cine, explica que o modelo de sustento desses cinemas não se baseia apenas no valor do ingresso: “A bomboniere é essencial aos multiplex. Claro, eles lucram com o ingresso. Porém, a maior parte do faturamento vem do que é comprado pelo espectador”, conta a professora.

Tetê Mattos se define como “niteroiense, até demais”. Cresceu indo a cinemas de rua e, por isso, tem uma conexão bastante profunda com eles. Quando criança, chegou a frequentar o Cine São Bento, clássico exibidor em Icaraí que ficava em frente ao Parque de mesmo nome. Faliu na década de 70. Tetê frequentava o Cine Icaraí na juventude e, bastava atravessar a Praça Getúlio Vargas, para chegar ao Cine Arte UFF, sua escola de cinema, berço de grandes amizades, local no qual Tetê guarda muitas histórias. Apesar de sua paixão pelas terras de Arariboia, mudou-se para o Rio de Janeiro quando a gama de cinemas de rua em Niterói saiu do circuito.

“Cinema no shopping tem outro ritual. Mas acredito que a violência nas cidades, a televisão, o vídeo cassete, o DVD... tudo isso prejudicou a manutenção dos cinemas de rua em Niterói” (Tetê Mattos, cineasta, professora e organizadora do Festival Arariboia Cine)

Em 2005, por problemas financeiros, o Estação Icaraí (Rua Moreira César, esquina com a Rua Lopes Trovão) fechou. Em 2006, foi a vez do Cine Icaraí (esquina da Praia com a Rua Álvares de Azevedo). Em 2009, para reformas, o Cine Arte UFF (em frente ao mar, na Rua Miguel de Frias), também suspendeu as atividades. Os únicos sobreviventes da época de ouro se renderam aos multiplex. “Cinema no shopping tem outro ritual. Mas acredito que a violência nas cidades, a televisão, o vídeo cassete, o DVD... tudo isso prejudicou a manutenção dos cinemas de rua em Niterói”, conta a  professora e produtora cultural.



Uma luz na sala escura?

O Cine Arte UFF destacava-se pela sua programação ampla: dava espaço a blockbusters, mas também exibia filmes independentes de pouca visibilidade, além das produções universitárias. Aos cinéfilos, o Cine Arte UFF era uma segunda casa. Mostras-maratona de diretores consagrados, como Ingmar Bergman ou Akira Kurosawa, eram rotineiras. A retrospectiva de filmes que já haviam saído do circuito também era diferencial do cinema mantido pela UFF. Leonardo Guelman, diretor do Instituto de Arte e Comunicação Social da UFF que acompanhou de perto a história do Cine Arte UFF, afirma que “o cinema era e é espaço fundamental para a vida cultural de Niterói”.

No entanto, depois da virada do século XXI, os problemas da sala de 500 lugares acumulavam-se. Segundo relatos de frequentadores assíduos, os projetores pifavam no meio das sessões. Além disso, a acústica e o som da sala eram de péssima qualidade. “Filmes brasileiros precisavam de legenda. Não entendíamos o que era falado”, explica Tetê, fã do espaço.

Por isso, o Cine Arte também foi incluído na reforma geral do prédio da Reitoria da UFF, iniciada em 2009. A repaginada no ambiente corrigiria os problemas recorrentes da sala. Mas ninguém sabia que a obra levaria tanto tempo.

A estrutura do prédio teve que ser refeita para sustentar as novas instalações. A obra, que levaria menos de um ano, ficou com uma previsão de entrega somente para abril desse ano. O prédio passou cinco anos fechado para reparos. No entanto, o novo Centro de Artes UFF não será inaugurado de pronto. Paulo Máttar, coordenador de arte do Centro, diz que a abertura depende da chegada de equipamentos importados, como o novo projetor digital. “A demanda pelo equipamento no mundo todo está enorme. Isso está atrasando a entrega. Ainda não temos previsão de inauguração, mas certamente será em breve”, explica o cineasta de formação.

O “nicho” de filmes exibidos continuará o mesmo do passado e vai dar prioridade a distribuidores independentes, cinematografias diversificadas, pré-estreias, mostras, cineclubes e festivais. A venda de ingressos visará apenas à manutenção do local, e não ao lucro. O Curso de Cinema da UFF, até então órfão de um local oficial de exibição, voltará a ter espaço assim que o Cine Arte reabrir suas portas.

Para deixar os problemas técnicos no passado, os equipamentos adquiridos para a nova sala são bastante versáteis: poderão ser projetados filmes de 35 mm (analógicos, convencionais), Digital DCP (nova tecnologia que dificulta a pirataria e preserva a qualidade do material, independente do número de exibições), Digital-Cinema e também o inovador 3-D. Produções audiovisuais alternativas também terão espaço, já que a sala é compatível ao DVD, BLU-RAY e HD.

A acústica foi corrigida e agora será reversível. O novo projeto de sala também foi pensado como local de apresentação da Orquestra Sinfônica Nacional da UFF. Portanto, a reverberação dos sons não poderia ser a mesma de um longa-metragem.

Uma das mudanças mais drásticas teve que ser feita para atender às novas leis de segurança da prefeitura. Dos 500 lugares existentes até 2009, sobraram apenas 300. “Desenvolvemos corredores mais largos, reconfiguramos o espaço para recebermos cadeirantes, pessoas de mobilidade restrita e também reservamos assentos para obesos”, explica Máttar.



A Concrejato, empreiteira responsável pela reforma dos prédios da Reitoria, do Centro de Artes e do Departamento de Difusão Cultural da UFF, calculou o valor total da obra. Portanto, é impossível saber o montante dedicado apenas à reforma do Centro. Segundo a Superintendência de Arquitetura e Engenharia da UFF, R$ 36.994.501,26 foram gastos. O contrato entre a Concrejato e a UFF terminou no ultimo dia 4 de maio. Paulo Máttar informou que os equipamentos de projeção, à parte do contrato da reforma, custaram R$ 1 milhão.

Patrimônio histórico preservado

Outro cinema de rua com grandes chances de renascer das cinzas é o Cine Icaraí, fechado em 2006 por problemas financeiros. A Empresa Kopex, antiga responsável pelo espaço, manteve o prédio em seu nome até 2012. Naquele ano, o edifício tombado pela Prefeitura Municipal e pelo Governo do Estado do Rio passou aos cuidados da UFF, que pretende transformar o local em um Centro Cultural e casa oficial da sua Orquestra Sinfônica Nacional.

Em 2013, foi lançado um concurso de ideias a jovens universitários do curso de Arquitetura interessados no processo de revitalização do cinema. O edital previa uma série de mudanças obrigatórias aos projetos propostos. No entanto, por ser apenas um concurso de ideias, também abria brecha a inovações pertinentes ao prédio.

Raissa Gerheim e Natália Asfora, ambas com 23 anos, estudantes do 7º período da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FAU/UFRJ), fazem parte da equipe vencedora do Concurso. As duas dividiram o prêmio com mais três amigos: Lívia Romariz e David Mendonça, também da UFRJ, e Bruno Amadei Machado, estudante da Escola de Arquitetura e Urbanismo da UFF (EAU/UFF).  As duas futuras arquitetas souberam do concurso através de Bruno Machado. A princípio, os editais foram divulgados aos alunos da Federal Fluminense, mas nenhuma cláusula proibia a participação de estudantes de outras universidades.

A equipe sempre esteve próxima em trabalhos da faculdade e, quando soube da iniciativa, não hesitou em criar um projeto. “A área de restauro interessava a todo grupo. Duas de nós, inclusive, pretendem investigar e desenvolver o projeto final da faculdade sobre isso”, conta Natália.

O projeto vencedor, na opinião de Raissa e Natália, teve dois grandes diferenciais que lhes renderam o prêmio de R$ 5 mil: a pesquisa massiva das cartas e regras de restauração estabelecidas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e a ousadia em algumas mudanças propostas. “Construir um prédio do zero também tem suas regras: afastamento, altura máxima etc. Mas as regras de restauro são muito mais complexas e rígidas”, conta Natália.

O projeto vencedor utilizava argumentos racionais e emocionais, seja de mudança ou manutenção de elementos. “A construção do Cinema Icaraí remete a uma época de ouro da cidade de Niterói. Portanto, mantivemos os traços de art deco do prédio e valorizamos a memória do local na hora de construir o projeto”, explica Raissa, natural de Juiz de Fora, Minas Gerais. “A Lívia (Romariz), uma das integrantes do grupo, cresceu em Icaraí. Ela se lembrava bem do cinema na sua infância. Entrevistamos os familiares dela para descobrirmos os traços mais importantes do hall, do foyeur... Não queríamos esquecer de nenhum detalhe”.

O Departamento de Restauro da UFRJ, apesar de ser um dos mais bem avaliados cursos do Brasil, é bastante reduzido. Tal fato, segundo Raissa, representa a falta de incentivo a essa área. Recém-chegadas de um intercâmbio na Europa, Natália e Raissa contam que a história é outra no exterior. Segundo elas, outros países valorizam mais a memória arquitetônica, enquanto prefeituras e governos embargam muitas obras no Brasil.

A pesquisa inicial foi primordial para a construção do projeto, que levou dois meses. A visita ao Cinema Icaraí, prevista em edital, foi acompanhada pela professora Rosina Trevisan Ribeiro e co-orientadas por Andrés Martín Pássaro, Maria Lygia Alves de Niemeyer e Patrizia Di Trapano, todos docentes da FAU. 

A mudança mais radical do grupo foi a repaginação completa do terceiro andar e do espaço construído como residência, que ocupava parte dos três pisos. Segundo as vencedoras, vários compartimentos desnecessários (quarto, sala, cozinha, escritório) a um centro cultural foram desprezados no projeto. O grupo sentiu que poderia alterar tal parte porque não havia conexão do público àquele espaço. As mudanças feitas ali não alterariam a essência do prédio.

A “casca” do Cine Icaraí foi completamente mantida: essa é uma das principais reivindicações do Iphan. As fachadas não podem ser alteradas. Também foram inseridos espaços para salões de ballet, livraria, bomboniere e exposições. O grupo também sugeriu, no projeto, a ocupação do terceiro andar por escritórios de arquitetura, design e arte para auxiliar na manutenção do local. “Não quisemos separar a sala de cinema grandiosa em várias compartimentadas. Hoje em dia, manter-se com apenas uma sala é inviável. Não existe mais. Por isso, foi importante otimizar os outros espaços para abrigar outros atrativos”, opina Raissa. Um palco também foi inserido no projeto, já que a UFF pretende usar o local para apresentação da Orquestra Sinfônica Nacional. “O palco multiuso pode ser recolhido para aumentar a capacidade de lotação em sessões de cinema”, completa.



A inovação também se encontra no terceiro andar: o telhado inutilizado do Cine Icaraí se transformaria num cinema a céu aberto com um terraço amplo e uma parede para projeção de produções audiovisuais. “Foi uma de nossas ideias ousadas. Apesar do Iphan proibir alterações em fachadas (e o telhado também é considerado uma fachada), achamos a ideia legal, porque se apropriaria de um espaço antes inutilizado”, explica Natália.


O projeto fez parte de um Congresso Internacional sobre Restauração em Santander, na Espanha. No dia 4 de abril, Lívia Romariz representou o grupo na apresentação e na publicação de um artigo em revista da área.

“A UFF nos deu a oportunidade de conhecer de perto o legado de um prédio tão importante para a história de Niterói. Já valeu a pena. Até porque somos nós que desfrutaremos dessa reforma. Nós e nossos filhos” (Raissa Gerheim, estudante de Arquitetura)

O projeto não será seguido à risca pela UFF. O objetivo era reunir ideias para a licitação oficial, que será disputada por arquitetos já formados. No entanto, as meninas acharam a oportunidade de participar efetivamente da restauração de um prédio histórico maravilhosa. “A UFF nos deu a oportunidade de conhecer de perto o legado de um prédio tão importante para a história de Niterói. Já valeu a pena. Até porque somos nós que desfrutaremos dessa reforma. Nós e nossos filhos”, conclui Raissa.


Ainda não há previsão para o início das obras. A licitação ainda não foi aberta. A assessoria de imprensa da UFF informou, em nota, que no último dia 27 de março o então reitor Roberto Salles esteve reunido com o Ministro da Educação, José Henrique Paim, e pediu verbas para licitação do Cinema Icaraí. O encontro foi tido como “produtivo”, mas nenhuma decisão concreta foi tomada até o fechamento da reportagem.

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