Você não tá me ouvindo?

Uma pesquisa sobre o ensino destinado aos deficientes auditivos
21 de fevereiro de 2014

Foto: inclusaodossurdos.blogspot.com
Juliana Pimenta
Os debates sobre a educação no Rio de Janeiro não se esgotam. Manifestações recentes estouraram nos principais pontos da cidade. No entanto, pouco se fala sobre a educação especial. Só a rede municipal de ensino do Rio de Janeiro abriga 11.840 alunos com deficiência, segundo análise divulgada pela Prefeitura em outubro do ano passado. 

Os surdos/deficientes auditivos estão incluídos nessa parcela. A surdez ou hipoacusia é um termo que serve para definir a perda auditiva. Essa deficiência pode vir desde o nascimento, ou pode ser desenvolvida ao longo dos anos. 

No Brasil, segundo censo realizado pelo IBGE em 2012, existem 9,7 milhões de surdos. Já a OMS (Organização Mundial de Saúde) divulgou em março que há uma estimativa de que, no mundo, 360 milhões de pessoas sofram com perda auditiva incapacitante. 

As desigualdades que envolvem o aprendizado dos deficientes auditivos são retratadas nos números do Censo Demográfico de 2000, o qual revelou que apenas 3% dos surdos completam o ensino médio no país e aproximadamente 800 mil estão excluídos do sistema escolar. Diante desses dados, como proceder? 

Educação básica

Jaqueline Melo, de 25 anos, é surda desde o nascimento e frequentou uma escola de surdos em São Paulo, onde aprendeu a Libras e se formou no Ensino Médio. Ela diz que os principais problemas encontrados no dia-a-dia são causados pela dificuldade de se comunicar.  

– Para mim, é muito complexa a leitura do português, já que poucas coisas são sinalizadas em Libras. As relações sociais também são mais complicadas, já que pouca gente consegue conversar pela língua de sinais – afirma. 

Denise Gonçalves, de 44 anos, também nasceu surda e quando chegou à idade escolar seus pais a colocaram em um Ciep (Centro Integrado de Educação Pública), colégio da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro. Ela tinha aula com crianças ouvintes e, por ser uma escola regular, Denise apresentava muitas dificuldades em entender o conteúdo repassado. 

– Quando entrei para quarta série, saí do colégio porque eu não estava conseguindo aprender nada, nem o português.

Até os 19 anos, Denise continuava sem saber português e não conhecia a língua de sinais. Durante esse intervalo de tempo, ela ficara com sua comunicação comprometida e suas relações se davam, basicamente, através de mímicas. 

Língua de Sinais

O caso dela é muito comum, como aponta a Federação Mundial de Surdos (WFD). Apenas cerca de 1% a 2% dos surdos obtêm a educação em língua de sinais que, especialmente para os surdos de nascença, é a principal forma de comunicação. 

Márcia Cirlene é professora de Libras e Ensino Bíblico no Ministério Apascentar de Nova Iguaçu e decidiu dar aula de Libras para facilitar a comunicação dos surdos com os ouvintes e para que eles pudessem aprender sobre a Bíblia. Márcia atribui à má divulgação o pouco conhecimento que a sociedade tem da Libras. 

– Tanto o governo quanto os cursos e escolas de Libras falham na divulgação das aulas e até mesmo na divulgação da língua, o que intensifica a exclusão dos surdos – critica Márcia.
 
A importância da Língua de Sinais para os surdos é descrita no artigo 2 do Capítulo 1 do Decreto nº 5.626 da Constituição: “considera-se pessoa surda aquela que, por ter perda auditiva, compreende e interage com o mundo por meio de experiências visuais, manifestando sua cultura principalmente pelo uso da Língua Brasileira de Sinais - Libras”.

O idioma pode variar de país para país. No Brasil, o sistema é a Libras (Língua Brasileira de Sinais), que surgiu da mistura da Língua de Sinais Francesa – trazida por Huet, fundador da primeira escola de surdos no Brasil, hoje Ines (Instituto Nacional da Educação de Surdos) – com a língua de sinais brasileira antiga, já usada pelos surdos das várias regiões do país. Cada língua de sinais faz parte do patrimônio cultural de um país. Para preservar esse patrimônio são necessários o respeito e o reconhecimento da língua. 

Foto: silveiraroccha.blogspot.com
Em 24 de abril de 2002, foi promulgada a Lei 10.436, que estabelece a Libras como segunda língua oficial do Brasil. Doze anos depois da promulgação e da regulamentação da profissão de Intérprete de Libras, não há profissionais suficientes no mercado e pouco vem sendo feito para a divulgação da língua em âmbito nacional.

Libras nas escolas

Renata Monsanto é professora há 32 anos e dá aulas no Colégio Cruzeiro Centro e na Escola Municipal São Tomás de Aquino. Renata não tem conhecimento da Libras e nem do decreto que prevê a obrigatoriedade do conhecimento da língua de sinais para professores da rede pública. O artigo 3 do decreto nº 5.626 afirma que “a Libras deve ser inserida como disciplina curricular obrigatória nos cursos de formação de professores para o exercício do magistério, em nível médio e superior, e nos cursos de Fonoaudiologia, de instituições de ensino, públicas e privadas, do sistema federal de ensino e dos sistemas de ensino dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.

– Os alunos com comprometimento auditivo já são normalmente direcionados para escolas especiais. Nas escolas onde trabalho, não há a necessidade do uso dessa linguagem – explica Renata.

Ela comenta a experiência com uma aluna alfabetizada em português e com apenas parte da audição comprometida. 

– Nunca tive aluno surdo. A única vez em que presenciei comprometimento auditivo na sala de aula foi de uma aluna que tem perda de parte da audição. A menina leva uma espécie de aparelho sem fio, preso na minha blusa e um receptor, que fica preso nos óculos dela. O aparelho é uma espécie de microfone que amplifica a minha voz para a aluna. 

Alexandre Xavier, especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, faz parte da direção geral do Ines. Ele destaca que, nesse mesmo decreto, existe a prioridade de ter professores surdos ensinando Libras, inclusive nos cursos de formação de professores. Como no Brasil existem poucas pessoas surdas com formação superior, ainda há  dificuldades de encontrar pessoas habilitadas para isso.

– A legislação prevê que a Libras seja disciplina em cursos superiores, em especial na formação de profissionais de educação. Mas ela poderia ser ofertada, assim como existem experiências positivas de oferta, em algumas redes estaduais e municipais, de cursos gratuitos de idiomas (inglês, espanhol) para alunos da educação básica.

Outro agravante, segundo o especialista, é que os cursos de Libras para professores em exercício ainda não existem em todos os municípios brasileiros. Mas ele afirma que o Ines colabora para a solução do problema produzindo vídeos, em Libras, que são encaminhados às escolas brasileiras e mantendo uma web TV em Libras (no endereço www.tvines.com.br). Além disso, todo semestre, o Ines oferta cerca de 500 vagas em curso presencial de Libras, realizado em sua sede, no bairro de Laranjeiras, na Zona Sul do Rio de Janeiro.

– O reconhecimento dessa língua gestual promove a maior participação das pessoas surdas na sociedade. As principais barreiras residem na falta de informação acessível e na falta de intérpretes. Além disso, é necessária a existência de órgãos que ensinem essa língua aos deficientes auditivos – diz o especialista.

As dificuldades do dia a dia

Denise Gonçalves começou a aprender o básico da linguagem de sinais aos 19 anos. E, um tempo depois, começou a frequentar um curso para surdos. Sobre esse período, tem uma reclamação: 

– Nas aulas e nos cursos para surdos, a única disciplina que se aprende é a Libras. Eu não tive a oportunidade de aprender matemática, português ou história.

Por um lado, ela não conseguia acompanhar as aulas nas escolas regulares e, por outro, as aulas para alunos surdos não tinham nenhum conteúdo além da Libras. 

– O que falta na educação de surdos são professores que saibam a linguagem de sinais. Assim eles poderiam passar um conteúdo relevante de modo que os surdos pudessem compreender – enfatiza Denise. 
Ela ainda comenta que as avaliações para os surdos deveriam ser feitas de modo diferente. 

– As provas que eu fazia na escola de surdos vinham com o enunciado em português e não em Libras, mas, em português, eu sou analfabeta. 

Os surdos alfabetizados somente em Libras costumam apresentar dificuldades para entender o português. Sendo assim, tarefas diárias como pegar ônibus, ir ao supermercado ou ao banco são atividades que exigem muito empenho. Talvez por isso, poucas empresas privadas mantêm programas de contratação de surdos para o mercado de trabalho. Jaqueline afirma que uma solução para esse problema é investir em escolas mais inclusivas:

– Estudei em uma escola só de surdos onde não tive integração com ouvintes. 

Mas também ressaltou que, nas escolas regulares, não há a preocupação com a integração dos surdos. Amiga de pessoas ouvintes, ela pondera que os amigos têm que estar juntos na sala de aula para o aprendizado tanto da Libras quanto do português.

Foto: Juliana Pimenta
Alexandre Xavier afirma que quanto mais gente aprender a Libras, mais chance os surdos terão de ser compreendidos, respeitados e bem atendidos nos serviços públicos. A convivência com quem fala línguas diferentes, destaca ele, é positiva para todos, surdos e ouvintes.

Classes mistas

Quanto às aulas, a professora Márcia Cirlene considera impossível para um professor dar uma aula de qualquer disciplina para uma turma mesclada com ouvintes e surdos. Ela diz que o ideal seria promover aulas em dois turnos. 

– No primeiro turno, os alunos surdos e ouvintes assistiriam à aula com um professor e um intérprete para traduzir do português para Libras. No segundo momento, os surdos teriam um tempo para assimilar o que aprenderam e tirar dúvidas com o professor. 

A sugestão dada por Márcia já está prevista no artigo 22 do decreto nº5.626: “Os alunos têm o direito à escolarização em um turno diferenciado ao do atendimento educacional especializado para o desenvolvimento de complementação curricular, com utilização de equipamentos e tecnologias de informação”.

Márcia exemplifica essa impossibilidade falando que também não há como um professor dar uma aula de geografia, por exemplo, em português e em inglês ao mesmo tempo. 

– Pensa-se em uma língua de cada vez – explica. 

Sendo assim, os alunos surdos precisam de um intérprete, já que a compreensão que eles têm da Libras é muito maior do que a do português. É a língua na qual eles foram alfabetizados. 

Em relação às instituições inclusivas, a professora Renata diz que, na escola do município em que trabalha, existem as classes especiais, com número menor de alunos. 

– No caso lá da escola são seis alunos por turma, e o ensino é individualizado.

Na classe, estão presentes alunos com síndrome de down, autismo e outras deficiências. 

– Se na escola tivesse algum aluno surdo, ele seria dirigido para essa classe.

Ela acrescenta que o deficiente auditivo só seria encaminhado para essa turma se, na escola, encontrasse alguém que soubesse a linguagem de sinais. Caso contrário, o aluno seria transferido para outro colégio.

A professora ressalta que, em uma turma regular com 28 alunos, por exemplo, cada um apresenta dificuldades e níveis de compreensão diversificados. Incluir surdos nessas classes aumentaria ainda mais a disparidade, segundo ela, mesmo com a presença de intérprete. Ainda a esse respeito, Renata diz que, durante as aulas, a interpretação do português para a Libras pode até funcionar, mas o fato de os intérpretes não poderem passar o resto do dia com o aluno pode representar um problema. 

– Os alunos ficariam todos juntos na aula, mas na hora do recreio e em momentos de lazer eles não teriam integração com o resto da turma – argumenta.

Inclusão cuidadosa 

Alexandre Xavier diz que, em todos os modelos de ensino, é importante ter atenção à singularidade do surdo e à desejável convivência intercultural. 

– Um surdo numa classe de ouvintes em que apenas o intérprete sabe sua língua não está de fato incluído. Um surdo que se fecha em sua língua apenas com outros surdos também terá dificuldades de se socializar e de ser um cidadão pleno – explica.

Ele afirma que o ideal é disseminar a língua de sinais para surdos e ouvintes, fazer com que os professores em geral aprendam língua de sinais em sua formação e criar espaços de convivência de surdos e ouvintes.

Xavier também destaca que o Ines colabora muito na educação dos surdos. Ele ressalta que a antiga Escola de Surdos, “a partir de 1996, como órgão do Ministério da Educação, passou a ser considerada ‘centro de referência nacional na área da surdez’”. O Ines oferece desde escolarização básica (ensino infantil, fundamental e médio) até o ensino superior para surdos e ouvintes. Além disso, o instituto realiza atendimento em Audiologia (diagnóstico de perda auditiva) aberto à comunidade, explica Xavier.

Na opinião dele, as políticas educacionais do Brasil deixam claro que a educação deve ser aberta a diferentes condições associadas à perda auditiva. Para ele, as escolas comuns devem ser abertas e acessíveis, com intérpretes, apoio pedagógico, professores capacitados na linguagem para deficientes auditivos e conscientes sobre a singularidade dos surdos. 

Ele acredita que essas escolas regulares estão aptas a receber bem alunos com aparelho auditivo e também surdos usuários de Libras que prefiram nelas estudar. No entanto, ele ressalta a importância da escola bilíngue, na qual Libras seja a língua de instrução para alunos com surdez severa e profunda.

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