Enem: avanços e limitações para democratizar o ensino superior

19 de fevereiro de 2014

Laura da Silva Alonso e Leonardo Moura Rodrigues

Não há como escapar. Queiram ou não, os estudantes que almejam uma cadeira na universidade precisam prestar o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Anteriormente usado como instrumento de avaliação do ensino médio brasileiro, o Enem tornou-se, desde 2009, o principal processo seletivo para ingressar nas universidades públicas federais do país. O aluno que quer pleitear uma vaga nessas instituições deve se preparar para apenas uma prova à medida que os tradicionais vestibulares de cada universidade são extintos. E não é só essa a finalidade do exame: os centros de ensino privados são filiados ao Programa Universidade para Todos (ProUni), e concedem bolsas de estudos aos alunos de acordo com suas notas no Enem. Em 2013 foi criado o Sistema de Seleção Unificada para Cursos Técnicos (Sisutec), que disponibilizou 239.792 vagas em cursos técnicos e profissionalizantes para aqueles que fizeram a edição 2012 do exame. A disputa de bolsas de intercâmbio no programa Ciência sem Fronteiras (CsF) exigirá também uma nota mínima no Exame.

Fazer as provas do Enem é, então, quase um pré-requisito para se investir em uma formação educacional de qualidade. No entanto, muito se contesta sobre a eficácia da prova enquanto porta de entrada para todas as oportunidades enumeradas. O Ministério da Educação (MEC) e o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) têm de lidar anualmente com as denúncias de erro e fraudes nas provas. Certos aspectos do Enem, como seu caráter unificador, estão cercados de muita polêmica, pois é questionado se, por exemplo, todas as escolas do Brasil, públicas e privadas, preparam os seus alunos de forma equivalente para que prestem a mesma prova. Estando as universidades federais submetidas ao Exame, entra em cena também a discussão a respeito da Lei n° 12.711/2012, que "garante a reserva de 50% das matrículas por curso e turno nas universidades e institutos federais a alunos oriundos integralmente do ensino médio público, em cursos regulares ou da educação de jovens e adultos". O Enem e a lei de cotas estão, nesse contexto, de mãos dadas.

A realidade do ensino público

A defasagem no currículo e no corpo docente são elementos que podem atrapalhar os alunos da rede pública em qualquer âmbito, seja em sua formação intelectual como um todo ou, de fato, na hora de realizar o vestibular. Com a consolidação do Enem, a expectativa é de que esse novo modelo de seleção beneficie, de alguma forma, aqueles que são historicamente excluídos de usufruir das mesmas oportunidades que os mais favorecidos, majoritariamente matriculados em colégios particulares. Milena Eich, professora de Língua Portuguesa, Literatura e Redação, conheceu os dois lados da moeda por já ter trabalhado nas redes pública e privada. Ela apoia a lei de cotas como medida para minimizar o problema. "O acesso ao ensino superior dá aos estudantes da rede pública a possibilidade de romper com o ciclo de pobreza que muitas vezes se perpetua por gerações em suas famílias. Conheço vários que, através desse acesso, conseguiram melhorar a qualidade de vida em que se encontravam e seguem ampliando suas perspectivas no mercado de trabalho", relata.

Milena sugere que o investimento em longo prazo na educação de base seria a solução para que todos fossem equiparados em qualquer competição, não havendo, então, a necessidade de criar mecanismos de compensação. "Há que se melhorar profundamente a qualidade do ensino em todos os níveis, tendo isso como um projeto de país, não apenas de um governo", declara. Para a docente, a discussão não é centrada apenas na questão das cotas. Mesmo com todos os problemas, como a falta de investimento por parte do governo, havendo esforço, tanto da parte dos alunos como dos professores, o resultado no Enem será positivo.

A redação, etapa tão importante do exame por ter um grande peso na nota final, recebeu atenção especial de Milena na hora de preparar seus alunos. "Acessávamos matérias da atualidade no laboratório de informática, discutíamos o assunto, fazíamos comparações, estudávamos a estrutura dos textos, seu conteúdo e objetivos. Depois, eles faziam reescritura dos mesmos. Houve grandes progressos e eles tiraram boas notas", lembra.

Para a educadora Milena Eich, a qualidade de ensino deve ser um projeto de país e não apenas de um governo (crédito: divulgação)

Andréa Antunes, socióloga graduada na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e também professora do Estado, confirma essa tese. "Mais importante do que reservar vagas é investir para que a qualidade melhore e a reserva não se faça necessária. Acredito que os alunos dedicados alcançam seus objetivos. Hoje, na rede pública, devido a tantas facilidades, os alunos não precisam se esforçar tanto, o que, a meu ver, é prejudicial para a formação", pondera.

Um incentivo, mas com limites

Jacyntha Bastos, diretora geral da Escola Estadual Joaquim Távora, localizada em Niterói, região metropolitana do Rio de Janeiro, conta que as cotas foram um motivador para seus alunos desejarem um futuro melhor. "A lei veio dar uma autoestima para o aluno que não conseguia competir com o do colégio particular que passou três anos se preparando. Ele se vê como um vencedor e pensa 'eu posso, eu vou conseguir'. Desde o início do ano coloco na cabeça deles que eles são os melhores. A diferença entre os estudantes das escolas públicas e particulares está no 'querer', e agora eles querem", conta. 

Marcio da Costa, professor de Sociologia da Educação da UFRJ, faz uma ressalva no que diz respeito às cotas raciais, também previstas em lei. “Faço uma pesquisa em escolas e, quando pergunto para as crianças qual é a cor delas, elas não sabem responder. Isso é um ótimo resultado. Significa que a cor da pele não é uma identidade relevante para elas”, exemplifica. “Um mecanismo de compensação baseado na cor da pele é, para mim, retrógrado, um erro”.

A busca pela preparação igualitária 


Organizar um exame como o Enem é, nas palavras de Marcio da Costa, “uma operação de guerra”. A logística para dois dias de prova, com 180 questões e uma redação, é um desafio desde o momento em que a prova é montada até sua distribuição por todo o país. No entanto, refletir se os cerca de cinco milhões de participantes – dados do Exame em 2013 – estão preparados para esse grande momento, segundo o especialista, deve ser a discussão prioritária. 

À medida que o Enem se consolida como o maior vestibular do país, o nível de dificuldade da prova só cresce. Para Augusto Neto, professor de Geografia do colégio e curso pH, com bacharel e licenciatura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), a edição 2013, aplicada nos dias 26 e 27 de outubro, foi a mais difícil até hoje. "Ser mais difícil simboliza uma prova mais meritocrática, mas também mais segregadora do ponto de vista social. A prova democratizou o acesso à universidade por ser um vestibular menos técnico-conteudista e mais empírico-reflexivo. A prova de Ciências Humanas e suas Tecnologias atingiu uma maturidade boa em 2013, pois conseguiu exigir raciocínio do conteúdo. Precisamos observar os próximos anos", analisa Neto, indicando que o Enem tenta criar uma balança cada vez mais equilibrada e não necessariamente tão ligada à lógica dos cursinhos pré-vestibular.

Estabelecer uma dicotomia entre "capital” e “interior" pode ajudar a entender a dimensão da diferença que separa os inscritos na prova. Alan Felix, professor de História da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), diz que os colégios do interior possuem dinâmicas diferentes dos das capitais, e elementos como a indicação de gestores educacionais atrelados ao grupo político que ascendeu ao poder, a evasão dos educandos da zona rural, que desde muito cedo são inseridos em questões trabalhistas, e, principalmente, o acesso à informação, que é mais rápido nas capitais, fazem diferença na hora da prova. 

Concorrência desigual

"O Enem é um programa que possui falhas no processo de avaliação cognitivo do jovem. Primeiramente, existe uma disparidade entre alunos da rede privada e da pública, e, dentro desse percentual de estudantes da rede pública, existe um diferencial entre alunos provenientes das escolas federais, estaduais e municipais. Logo, notamos que existe uma falha no processo educacional das redes públicas estaduais e municipais. O MEC deveria utilizar os percentuais de aprovados e traçar um perfil dos que conseguem acesso à universidade pública e promover um diagnóstico da educação brasileira", sugere.

“Não podemos dizer que necessariamente as escolas das pequenas cidades vão ter muita desvantagem com o Exame" (Marcio da Costa, professor de Sociologia da Educação da UFRJ) 

Marcio da Costa exemplifica: “meu filho estuda no Colégio de Aplicação da UFRJ (CapUFRJ), e a lei de cotas inclui os colégios federais na reserva de vagas. É injusto que ele concorra com alunos de escolas estaduais, já que o CapUFRJ é muito mais preparatório”, reconhece.

Alan Félix explica que o Brasil pode não estar preparado para o movimento migratório gerado pelo Enem, que permite ao estudante se inscrever em uma universidade de qualquer lugar do país com sua nota. "O Enem não promoveu o acesso aos alunos do interior às universidades federais. A política de interiorização do ensino superior é recente no Brasil, portanto, as universidades federais estão localizadas nos grandes centros urbanos. Ter acesso a essas universidades requer recurso por parte do estudante, já que a política de moradia não alcança a todos que precisam", avalia Félix. 

Marcio da Costa é mais otimista em relação a essa questão. "Acho que os alunos do interior se adaptam melhor ao Enem do que os das capitais. As escolas públicas do interior costumam se sair melhor na Prova Brasil do que as dos grandes centros, por exemplo, provavelmente por serem colégios com uma rotina mais tranquila, relaxada. O aprendizado torna-se melhor. As crianças de classe média vão para a escola pública, no interior, porque não há escola privada, o que aumenta ainda mais a média deles. Não podemos dizer que necessariamente as escolas das pequenas cidades vão ter muita desvantagem com o Exame". 

Os erros técnicos 

Em 2009, cadernos de prova foram furtados e divulgados para a imprensa, e a prova, que seria aplicada no começo de outubro, aconteceu só em dezembro daquele ano. Muitas universidades, com o ocorrido, alteraram a forma de usar as notas, o que causou muita confusão entre os inscritos. Em 2010, no caderno amarelo, houve questões repetidas e espaços em branco, e no cartão-resposta, os cabeçalhos estavam incorretos. A Justiça determinou a suspensão da prova, mas o TRF5 (Tribuna Regional Federal da 5ª Região) cassou a liminar e o Exame foi validado. Em 2011, nove questões do pré-teste teriam sido usadas no material de estudo do Colégio Christus, em Fortaleza. Esses foram os maiores problemas que o Exame Nacional do Ensino Médio enfrentou até hoje, mas ainda há outros. 

Gabriel Verinaud, aluno do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (UFF), afirma ter sido um dos prejudicados. "Prestei o Enem em 2009, 2010 e 2011. O problema maior se repetiu todos os anos: notas injustas. Meu esforço e dedicação progrediram muito no decorrer dos três anos, o que fica evidente quando comparamos meu número de acertos em cada uma das provas, mas as notas finais mudaram praticamente nada. A correção da redação piorou, muitas delas realmente não devem ser lidas, recebendo notas aleatórias", desabafa. 

“Ter acesso a essas universidades requer recurso por parte do estudante, já que a política de moradia não alcança a todos que precisam" (Alan Félix, professor de História da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia)

Marcio da Costa reconhece todos esses problemas, mas acredita na proposta do Enem e defende que qualquer projeto precisa passar por testes. "A prova tinha caráter de avaliação, e agora tem também de seleção e de certificação. Sobretudo para efeitos de avaliação, é preciso passar por pré-testes, e esses pré-testes precisam ser feitos com pessoas reais. O ideal para uma prova de seleção é que ela seja toda secreta, mas para a avaliação é preciso calibrar os itens. O problema do Enem é essa mistura das três coisas", define.

O melhor modelo

Segundo o docente, mesmo com todos os impasses, o Enem ainda é uma prova melhor que os vestibulares tradicionais. "É bom abolir aquele sistema de avaliação de cada universidade, que era uma máquina de arrecadação. O vestibular anterior da UFRJ, por exemplo, só tinha questões discursivas, o que viola qualquer princípio minimamente legal de um concurso público: uma prova com nenhum critério público de correção. Havia pessoas que tiravam nota três, interpunham recurso e a nota virava seis. Isso não é concurso público, mas uma máquina de favorecimento e outras coisas bem complicadas. Qualquer prova no lugar disso é melhor, até mesmo o Enem, com todos os seus problemas", opina.


Milena Eich afirma que é preciso atentar para questões mais profundas, que, se forem atendidas, tornarão qualquer modelo de vestibular eficaz. “Havendo professores preparados e valorizados, material de qualidade, espaço adequado, regularidade no calendário, alimentação suficiente, o Enem será bom e justo. Ele deverá apenas ser coerente ao projeto de país que se quer construir, cuja base deverá sempre ser a educação”, conclui.

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