Ser ou não ser literatura, eis a questão

3 de dezembro de 2013


 Com o crescimento dos blogs, surgiria um novo e espontâneo nicho na literatura nacional ou, apenas, uma alternativa de expressão?

Luciana Maline

A vida sexual de uma garota de programa de 17 anos, filha da classe média paulistana, diariamente exposta em sua webpage. Em um espaço de quatro paredes, um tempo imediato e os personagens divididos entre seus clientes e sua narradora em primeira pessoa, surge Bruna Surfistinha. O ano era 2005 e o interesse constante pelas crônicas do alter ego de Raquel Pacheco saiu do computador para ganhar as estantes das livrarias com o nome de O doce veneno do escorpião. Quente nas prateleiras e nos elevados números de vendas, a crítica também aumentava a temperatura em sua polêmica opinião: os relatos da jovem seriam ou não categorizados como uma obra de literatura nacional?

“Questionei se o trabalho feito por Raquel Pacheco poderia ser considerado uma obra vinculada ao conceito de autor, descrito por Foucault e Barthes, como aquele a quem se pode atribuir o que foi dito ou escrito e como o indivíduo percebido como o criador, a origem, que por meio de suas motivações inscreve intencionalmente dentro de uma obra. Defendi o argumento de que o fenômeno pode ser explicado pelo fato da escritora constituir-se como o próprio significante de seu texto. Para tanto, recorri aos conceitos de literatura, obra, texto, e autor, encontrados nos referidos autores, levando em consideração o veículo pelo qual essa voz se faz ouvir”, escreveu Cynthia de Lima Campos, em sua tese O dia em que Raquel Pacheco saiu do anominato: Bruna Surfistinha e a morte do autor.

Do virtual para o real 

Para o professor de Língua Portuguesa e Literatura do Colégio pH Filipe Couto, a diferença entre o blog e a mídia impressa se dá, unicamente, na possibilidade de interação imediata entre o autor e seu leitor.  “O diferencial do blog é a interação e a possibilidade de divulgação. Se o autor estiver interessado em crescer e absorver bem críticas, ele cresce muito. Antes dessa ferramenta, a vida de autores iniciantes era muito mais difícil”, disse Couto, que, em cima de seu blog de poesias chamado Outras Palavras lançou, em 2009, o livro Breve cantares de nós dois. A troca com o leitor, em seu caso, foi o elemento principal para compor o seu enredo literário e o livro veio apenas como registro. 

“Ainda no início de vida desse blog, publiquei um poema chamado ‘Sobre o Futuro’, que fala sobre uma separação peculiar. A moça se separa do rapaz e tem uma grande dificuldade de lidar com todos os elementos da casa que ainda o identificam. Um leitor do blogue, ao ler esse texto, comentou-me o seguinte: ‘Quando você escreveu o poema, você também pensou por que esse cara largou a mulher?’. Resolvi, então, escrever um poema sobre o motivo da separação e, desde então, passei a construir textos que dialogassem entre si, construindo uma história”, contou o professor.

Caminho semelhante ocorreu com a também professora de Física do Cefet-RJ e doutoranda de Filosofia, Elika Takimoto. De um blog com essência epistolar, pela estrutura de publicações datadas, a essência livre das crônicas ganhou espaço no mercado editorial e, em 2009, Minha vida é um blog aberto saiu das telas para virar História da Física na sala de aula, pela editora Livraria da Física. Para compor seu estilo de expressão, a professora utilizou suas fontes de inspiração. “Sou completamente influenciada pelo que leio no momento e isso mexe no estilo narrativo. Se leio coisas leves, os textos saem mais leves. Se leio algo ousado (como o último livro que estou lendo de Jennifer Egan), me dá vontade de ousar também. Se leio Clarice Lispector, me dá vontade de ‘lispectorar’”, disse Elika. 

Ser livro? 


Influenciada pela série de TV americana Sexy and the city, na qual a personagem principal vivida pela atriz Sarah Jessica Parker reflete sobre sua vida amorosa em sua coluna para uma revista feminina, a assessora de imprensa Luísa Mattos, em 2009, resolveu fazer um blog com teor de diário de seus relacionamentos e conflitos. O blog teve sua última atualização em 2010. “Na época, estava vivendo um momento muito intenso em termos de paixões e situações que envolviam relacionamentos amorosos e temas femininos. E, diante de alguns acontecimentos, vinha-me a vontade de narrá-los de forma divertida e leve”, lembrou a assessora. Com o fim de preservação de sua vida pessoal, Luísa construiu uma personagem ficcional de si mesma, tendo elementos da realidade mesclados a fatos idealizados para compor uma nova narrativa. Diferente dos demais, no entanto, o destino das histórias de Luísa não foram as páginas de papel. 

“Com meus posts, minha preocupação era construir uma personagem com a qual as pessoas também se identificassem e não apenas falar de mim e acredito que até hoje as pessoas podem se identificar com aquele momento em que eu vivia, com as situações narradas e ver ali certa inspiração”, disse. Luísa atribui a essa causa a fim de seu blog. “Vi que muita gente passou a acompanhar minha vida como se fosse novela, esperavam finais felizes, porque também queriam os mesmos finais para elas mesmas. Então, vi que era responsabilidade demais acabar ou alimentar sonhos que poderiam ser infundados”, disse. 

Mesmo sem a publicação impressa, Luísa não nega a força literária presente em seus textos que, assim como os da protagonista de Sexy and the city, tinham o vocativo e o diálogo constante com o leitor como recursos. Porém, em alguns, a pretensão da mensagem transmitida era superior à função literária. “Algumas postagens no meu blog foram feitas com intuito realmente literário, mas outras, não: a ideia foi realmente fazer crônicas sobre meu próprio cotidiano enquanto mulher em fase de ‘experimentação’ amorosa. Outras postagens foram apenas meros relatos. Mas, não posso negar algumas influências, como Machado de Assis, por exemplo, na forma de me expressar, por sua ironia e constante uso de vocativos, o que, ao meu ver, torna a narrativa mais direcionada e divertida”, explicou.

Especialista em Literatura Brasileira, o professor Alfredo Bosi afirma que a definição de literatura admite o caráter universal construído por Luísa, sendo essa a grande chave para fazer de seus textos uma colaboração para a cultura nacional. Bosi define: "A atividade literária, assim como toda obra de arte, ultrapassa toda especificidade individual e se torna um instrumento de enorme importância para a formação e a caracterização da cultura de um povo”. 

Seja no romantismo brasileiro dos folhetins, no modernismo antropofágico ou na identidade tropicalista, o que há de mais constante na arte nacional é a sua capacidade de reinvenção. Se, atualmente, vive-se na era do compartilhamento de informação, das gavetas abertas e de imediato, por que não aceitar o blog como mais uma plataforma para expressão literária? Eis aí a grande questão. 

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