Moinhos do esquecimento

15 de dezembro de 2013


João Batista de Abreu

Avenida Wenceslau Brás. Salão nobre do Botafogo de Futebol e Regatas. O momento de tristeza serve de pretexto para confraternização e colocar a conversa em dia entre pessoas que não se viam há bastante tempo. Num canto, oito coroas de flores com frases que simbolizavam admiração e saudades. Afinal, era a despedida de Nilton Santos, a enciclopédia do futebol, assim conhecido  pela classe, desenvoltura e ousadia demonstradas dentro de campo, pelo exemplo de atleta e a dedicação à camisa, comprovados dentro e fora dele.

Sentado numa cadeira perto do caixão, um senhor passava despercebido. Altura de zagueiro ou goleiro, mantinha o olhar fixo no infinito. Calça e casaco cinzas, a cor da roupa parecia combinar com o semblante do personagem anônimo, alguém que acabara de perder, mais do que um ídolo, um amigo. O corpo esguio e o jeito triste faziam lembrar um personagem medieval eternizado no livro de Miguel de Cervantes. Sim, eu estava ali diante de Dom Quixote.

Afinal, quem era aquele homem, de porte altivo, cabelos brancos, que parecia haver parado no tempo? Que histórias teria para contar? Por que estava ali esquecido entre tantos ex-jogadores e dirigentes? Por que repórteres e cinegrafistas não esboçavam nenhum movimento para colher seu depoimento sobre o ídolo que jazia a poucos metros?
A curiosidade me obrigou a arriscar um contato, quem sabe pelo vício de repórter do qual nunca me curei.

– Com licença, o senhor foi jogador do Botafogo?

A pergunta estimulou um sorriso ao mesmo tempo de confirmação e alegria por quebrar o anonimato. Ele fora goleiro do Botafogo nos anos 50, mais precisamente em 1953, quando assumiu a posição de titular no lugar de Oswaldo Baliza, que se havia transferido para o Vasco. Seu nome: Gilson Mussi, companheiro de Nilton Santos e também do zagueiro Gerson, de Arati, Juvenal, Carlyle e, claro, Garrincha, que acabara de chegar ao clube justamente naquele ano.
Gilson foi testemunha do famoso drible do ponta genial sobre Nilton Santos no primeiro treino em General Severiano. Drible, aliás, tão desconcertante que justificou a recomendação do lateral aos dirigentes para contratar aquelas pernas tortas que esbanjavam ousadia. 

– O campo ficava aqui atrás do salão nobre. Eu estava no treino no gol do time titular e lembro bem dessa história, confirma o goleiro, que chegou ao Botafogo em 1947 para jogar nos juvenil, subiu para os aspirantes e chegou à equipe titular, mas encerrou cedo a carreira.
A conversa sobre curiosidades do futebol, o goleiro já de pé, termina com fotos dele comigo e com meus filhos, para guardar o momento. As fotos despertaram a atenção de outros torcedores, que se aproximam para puxar conversa.
Gilson, 83 anos, saía do anonimato e desfrutava de seus 15 minutos de glória. Os repórteres se achegam para a entrevista. Afinal, o goleiro era uma testemunha viva do famoso drible de Garrincha sobre o maior lateral-esquerdo do mundo e de outras histórias de bastidores do futebol dos anos 50. Um tempo em que o camisa 1 era chamado pelos locutores de rádio de arqueiro ou guarda-valas.

Naquela despedida do amigo, Gilson teve um momento de felicidade. Saiu por instantes do anonimato e recuperou o reconhecimento, como um Dom Quixote que empunha sua lança contra os moinhos de vento do esquecimento.

 De pé, Gérson dos Santos, Gílson Mussi, Nílton dos Santos, Arati Pedro Viana, Robert (Bob) James Neil e Juvenal Francisco Dias; agachados, Manoel (Garrincha) Francisco dos Santos, Ephigenio (Geninho) de Freitas Bahiense, Dino da Costa, Carlyle Guimarães Cardoso e Luiz Vinícius de Menezes. 

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