Gentrificação e falta de apoio a atletas marcam megaeventos no Brasil

4 de agosto de 2013

Pesquisadores da UFF e presidente da Fecierj apontam principais críticas à realização de Copa e Olimpíada, que vão do desrespeito às populações pobres ao desinteresse por melhorias reais no esporte brasileiro

Gabriel V. de Oliveira Sales e Lucas Farizel Leandro

Obras a custos elevados, remoção arbitrária de famílias para realização de obras, fechamento de equipamentos esportivos utilizados por atletas e, mais recentemente, protestos que mobilizaram milhões de pessoas. Assim vem sendo marcado o projeto brasileiro para a realização dos megaeventos esportivos de 2014, com a Copa do Mundo, e 2016, com os Jogos Olímpicos sediados no Rio de Janeiro. 

Muito se discute a respeito do legado esportivo que pode ser deixado com a realização destes eventos esportivos, porém, além dos debates sobre o cenário a ser deixado após a sua realização, coloca-se em pauta as ações promovidas pelo poder público para a viabilização dos jogos. Os professores da Universidade Federal Fluminense Fernanda Sánchez e Glauco Bienenstein – do grupo de pesquisa Grandes Projetos de Desenvolvimento Urbano, ligado ao laboratório de Globalização e Metrópole da Escola de Arquitetura e Urbanismo – destacaram alguns dos principais aspectos que marcam a realização da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos no Brasil.


Para Fernanda Sánchez, um dos pontos que merecem maior discussão são os impactos sociais causados pela organização desses jogos. A pesquisadora destaca que vem ocorrendo uma reestruturação dos espaços onde as operações urbanas são realizadas, seja para a construção de equipamentos esportivos, seja para obras de infraestrutura. Ela ressalta que um dos desdobramentos é a reestruturação da composição social dos locais onde as obras são executadas. “O que se pode observar nestes locais é um processo de expulsão de populações pobres, o que causa esse fenômeno de gentrificação, de enobrecimento de algumas áreas em detrimento de cultura e práticas sociais pré-existentes. Na zona portuária, por exemplo, temos bairros populares ameaçados por esse processo de intervenção urbana, que compromete tecidos sociais construídos ao longo da história do Rio de Janeiro”, disse.

A professora ainda lembrou que o programa Minha Casa, Minha Vida também tem um papel atuante na migração de algumas famílias para áreas distantes dos grandes centros do país. Um dos fatores mais criticados por Fernanda está relacionado à falta de infraestrutura básica dos novos destinos das famílias desapropriadas em função dos megaeventos esportivos. “O Minha Casa, Minha Vida vem atuando na desapropriação e remoção de populações urbanas pobres. Ao todo, 38 mil famílias integram as estatísticas de grupos já removidos ou ameaçados de remoção. Quando não recebem aluguel social, estes grupos recebem moradias em locais muito afastados dos centros econômicos. É um trabalho de realocação da pobreza para locais onde há escassa oferta de empregos e desprovidos de equipamentos sociais, como escolas e hospitais”, pontuou.

A pesquisadora também salientou a inconsistência no discurso do legado, destacando que ocorre uma pesada ação de marketing para que haja uma maior aceitação tanto da Copa do Mundo quanto dos Jogos Olímpicos. Como exemplo negativo, a professora lembrou do exemplo da Grécia, que sediou na cidade de Atenas a Olimpíada de 2004. “A Grécia é hoje um dos países mais afetados pela crise econômica mundial. Suas relações com a União Europeia são muito tensas e a população sofre com uma grave crise social, e os Jogos Olímpicos tiveram um papel agravante neste cenário vivido pelo país atualmente”, acrescentou.

Mesmo o caso de Barcelona, tido como exemplo positivo de legado olímpico, é apresentado por Fernanda com algumas críticas. Apesar de ter inserido a cidade catalã no circuito internacional, especialmente pelo viés turístico, a Olimpíada também gerou um cenário de segregação que atingiu boa parte da população local, menos integrada à cidade hoje do que antes de 1992. “Muitos cidadãos se ressentem de uma série de processos provocados pela especulação imobiliária e outros tipos de segregação causados exatamente pela realização dos Jogos Olímpicos”, destacou.

Valorização imobiliária

Fernanda Sánchez ressaltou também que, no caso do Brasil, há um alinhamento de forças sociais que se apropriam dos megaeventos esportivos priorizando, fundamentalmente, o aspecto mercadológico. Ela não considera que os projetos urbanos estejam voltados para a redução de desigualdades econômicas ou de um acesso a serviços de modo mais igualitário. “A Copa do Mundo e a Olimpíada serão benéficas para alguns grupos e estratos sociais hegemônicos, mas não se mostrarão tão significativas se o que estiver em análise for o socialmente mais justo. Os próprios projetos de mobilidade urbana beneficiarão mais os corredores de valorização imobiliária do que a população que depende do sistema de transporte coletivo.”

Para a pesquisadora da UFF, a realização dos Jogos Pan-americanos de 2007 corrobora a ideia de que o legado deixado para a população existe muito mais em discurso do que em ações efetivas, inclusive no âmbito desportivo, utilizando o caso do Engenhão como principal exemplo. Para a professora, o estádio é uma metáfora do desperdício do dinheiro público. “Se analisarmos os Jogos Rio 2007, não poderemos apontar nenhum benefício real ao povo carioca. Até mesmo o principal equipamento esportivo construído para o Pan, o estádio do Engenhão, está hoje interditado por apresentar falhas estruturais em seu projeto. Vale lembrar que, ao final das obras, o estádio custou cerca de seis vezes mais do que o orçado inicialmente”, criticou.

Estádio Olímpico João Havelange: construído para o Pan-07 com o orçamento de R$376 milhões, o Engenhão ficará fechado por 1 ano e 6 meses para reparos na cobertura (foto de Júlio Guimarães / UOL)

Para Glauco Bienenstein, mais do que a realização dos megaeventos, o que está em jogo é um novo projeto urbano, especialmente no caso do Rio de Janeiro, que receberá, além da Copa de 2014, a Olimpíada de 2016. O professor considera que as ações do poder público estão voltadas para as atividades turísticas e para uma padronização da cidade conforme os moldes observados nos países desenvolvidos. “Esse projeto pretende apresentar aos estrangeiros uma cidade vista lá fora como civilizada, seguindo padrões americanos e europeus. Serão oferecidos aos turistas serviços equivalentes aos que eles usufruem em seus países. O Rio de Janeiro não será uma cidade projetada para todos e, logicamente, sua administração também não será.”

O pesquisador da UFF ainda chama a atenção para o fato de o Maracanã não existir mais como projeto arquitetônico original, exatamente em função dessa mudança no perfil do torcedor que se pretende implementar. “O Maracanã foi construído como espaço que agregava as diversas classes econômicas brasileiras. A própria mudança de nome para Arena Maracanã já aponta para essa mudança do público frequentador.” Bienenstein alerta que será um desafio conseguir manter a maioria dos estádios construídos e reformulados para a Copa do Mundo após a realização do torneio, e destaca que a elitização é algo observável em todas as cidades-sede. “No caso do Mineirão, por exemplo, pôs-se um fim a todo o comércio popular que havia em torno do estádio para que se adotasse um padrão de comércio compatível às exigências da Fifa, o que se estenderá a todas as cidades-sede”

Bienenstein diz também que, por trás de todas as oportunidades proporcionadas pelos megaeventos, enaltecidas na publicidade da Copa e da Olimpíada, há grandes interesses relacionados à acumulação de capital por parte da iniciativa privada, beneficiada inclusive pela concessão da administração dos estádios pelo poder público. “O Estado arcou com todo o ônus da construção dos estádios, ao contrário do que se afirmou quando houve o anúncio de que o Brasil sediaria a Copa. Após a conclusão das obras nesses equipamentos, empresas privadas passam a administrá-los. A população, além de não ser consultada nessa tomada de decisão, foi completamente excluída do direito de usufruir desses equipamentos como espaços públicos”, concluiu.

Críticas à desativação do velódromo do Rio

O discurso de legado do Pan-americano de 2007, adotado para corroborar a validade da candidatura do Rio para sediar os Jogos de 2016, esbarra em alguns acontecimentos que prejudicam a preparação de atletas. Um dos exemplos emblemáticos foi o fechamento do velódromo da Barra em janeiro de 2013, que deixou, além de ciclistas, atletas da patinação de velocidade e da ginástica artística sem um local adequado para treino.

Diante desta situação, o presidente da Federação de Ciclismo do Estado do Rio de Janeiro (Fecierj), Cláudio Santos, critica a decisão tomada em conjunto pelo Comitê Rio 2016, Prefeitura do Rio e Ministério dos Esportes. Santos foi mais enfático ao se referir ao prefeito Eduardo Paes, destacando o alto número de medalhas que as diversas modalidades do ciclismo proporcionam a cada edição dos Jogos Olímpicos. “Esqueceu-se de avisar ao prefeito Eduardo Paes que haverá Olimpíada no Rio. O único velódromo do estado foi demolido, não temos pista de BMX SX, não é permitido realizar provas de MTB XCO no município do Rio e para realizar eventos de ciclismo de estrada é um calvário. Resumindo, se o prefeito não permite o ciclismo na cidade e não nos oferece locais de treinamento para esta modalidade, que contempla 54 medalhas a cada ciclo olímpico, então certamente estamos fazendo uma Olimpíada para inglês ver.”

O presidente da Fecierj revela que ficou esperançoso quando soube do anúncio do Rio como sede dos Jogos de 2016, pois acreditava em melhorias substanciais para o ciclismo. Hoje, porém, Santos afirma que a vinda da Olimpíada para a cidade trouxe apenas prejuízo para o ciclismo carioca. “Estou achando que o melhor para o ciclismo seria o Rio não ter vencido esta disputa. Perdemos o pouco que tínhamos: dois locais seguros para treinamento (velódromo e autódromo da Barra) e seis projetos realizados nestes locais. Foi uma tragédia para o nosso esporte.”

Santos ainda ressalta o despreparo do Rio de Janeiro para receber ciclistas de outros países para a próxima Olimpíada. Ele pontua que outras cidades dentro do estado do Rio propiciam melhores condições de treinamento para os atletas da modalidade. “Felizmente, existem outros municípios mais comprometidos com o ciclismo, como Rio das Ostras, Macaé, Santa Maria Madalena, São Fidélis, Resende, Volta Redonda, Campos e São João da Barra.”

A respeito do novo local e horário de treinamentos oferecidos como alternativas ao velódromo da Barra, o presidente da Fecierj classifica o tempo de preparação insuficiente e as condições de treinamento, realizado no Aterro do Flamengo, desrespeitosas e inseguras para os atletas. “Você já viu atleta de alto rendimento treinar uma hora e meia por dia? Você já viu atleta olímpico acordar às 3h da manhã para cruzar o município e treinar na madrugada? Seria cômico se não fosse trágico. A única equipe de alto rendimento do Rio (líder do ranking nacional) está alojada em Santa Maria Madalena para realizar treinamentos seguros. Eles treinam de quatro a seis horas por dia e descansam durante a noite”, enfatiza.

Treinador também demonstra indignação

Outro que descreve o drama vivido pelos ciclistas é o treinador Álvaro da Costa, responsável pela preparação dos atletas que utilizavam o velódromo da Barra. Em tom de revolta, ele denuncia o descaso das entidades responsáveis pelo esporte no Brasil. “De todos os atletas de pista que eu treinava, restaram apenas três. Treinamos numa rua próxima a um condomínio, com trânsito aberto e sem qualquer segurança. Não existe qualquer projeto para a Olimpíada. O único que existia foi boicotado pelo órgão que comanda o esporte no país”, relata.

Realista, o treinador revela o despreparo do ciclismo brasileiro para participar em nível competitivo dos Jogos Olímpicos e alerta para a possibilidade de o país sequer conseguir representantes da modalidade para o evento esportivo. “Não existe qualquer chance de medalha na Olimpíada. Não sabemos sequer se poderemos participar, pois não temos pontuação suficiente. Falta uma infraestrutura básica. Há somente projetos fictícios, que existem para justificar a verba que recebem”, conta.

Álvaro da Costa também destaca que, após o fechamento do velódromo, o sentimento de desmotivação e impotência tomou conta dos ciclistas, pois a decisão pôs fim a projetos que já começavam a apresentar resultados, privando os atletas do único local adequado para treinamento na cidade do Rio de Janeiro. Desiludido com a atual realidade, o técnico acrescenta que, sem qualquer tipo de apoio, muitos ciclistas abandonaram o esporte, enquanto os poucos que sobraram dependem do ajuda de conhecidos. “Os que estão comigo dependem de colaboração de parentes e amigos. Alguns voltaram ao mercado de trabalho e outros largaram o esporte, decepcionados com os dirigentes e com o total desmando do esporte no Brasil. A única coisa que posso afirmar é que seremos simples espectadores, coadjuvantes em nossa própria casa”, conclui Álvaro, em um relato que apresenta um drama vivido por ciclistas e atletas de diversas outras modalidades esportivas desprestigiadas no país. 

Velódromo do Rio de Janeiro: a instalação, considerada a melhor da América Latina, foi demolida por não atender aos requisitos da Federação Internacional de Ciclismo (foto de Fábio Motta / Estadão)

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