12 de abril de 2013
Reportagem de Douglas Nascimento e Filipe Galvão

Em alguns casos a esperança de se conseguir uma oportunidade se carrega na mochila. Ao lado dela vai um meião, um short preto e uma camisa branca, além da chuteira surrada e com arranhões que só um campinho de terra batida poderia ter causado. Assim acontece com Lucas Souza, de 16 anos, que mora entre Duque de Caxias e São João de Meriti, na Baixada Fluminense. Lucas, que vive com a avó, faz parte de um grupo não tão seleto de garotos que sonham em se tornar, um dia, jogador de futebol. Em sua última noite de sono, ansioso pelo dia seguinte, quase não dormiu. Uma peneira no Aterro do Flamengo o aguardava. Ele é um dos inúmeros jovens que ainda sonham em virar estrela, e a porta de entrada dessa vez seria o Projeto Joga Fácil 2012, realizado nos campos da Zona Sul carioca.

Foto: Douglas Nascimento

Lucas cresceu jogando futebol na rua, descalço e com a bola que ele ou algum conhecido arrumasse. Logo despontou entre as crianças do bairro. Ganhou o apelido de Robinho nos anos áureos do jogador, mas hoje é comparado a Neymar – e não é pela aparência, o garoto realmente sabe o que fazer com a bola. Líder do time da escola, Lucas se destacou nos últimos Intercolegiais da cidade e, perto de casa, conseguiu uma vaga num time de várzea onde disputa competições em meio a marmanjos de 30 anos de idade. Ele realmente é diferenciado.

Ao chegar ao Aterro, Lucas enfrenta uma longa fila até marcar sua presença na peneira, para a qual já tinha feito uma pré-inscrição online. Em meio aos mais de 400 garotos entre 15 e 25 anos, Lucas não é nem Robinho nem Neymar, é só mais um. E depois de uma pequena reunião entre os organizadores, jogadores e pais presentes, a primeira dificuldade aparece: a peneira que a princípio seria gratuita agora teria uma taxa – 40 reais a serem pagos no segundo encontro, no próprio Aterro do Flamengo, de onde os garotos pegariam um ônibus para ir a São Gonçalo jogar em outra etapa dos testes. “Falam que o teste é de graça e depois que a gente tem que pagar. Tem que ver isso aí!”, reclamou Rafael Cruz, 19 anos, que saiu do Cantagalo e, acompanhado da mãe, abandonou a peneira antes mesmo de jogar.

Foto: Douglas Nascimento

Acompanhado de cinco amigos, que também disputariam uma vaga, Lucas não desistiu. Entrou no campo de grama sintética e na escolha de atletas acabou sendo selecionado para o primeiro jogo das séries. Como o esperado, não decepcionou na atuação: Se movimentou, se apresentou, finalizou sem sucesso uma vez ao gol e de todos os jogadores em campo mostrou ser o que mais tinha habilidade. Driblou muito e até esqueceu que futebol era um esporte coletivo. Exatos 15 minutos após o apito inicial acontecia o rodízio de todas as posições dos dois times em campo. Assim terminava a participação de Lucas no primeiro dia de peneira. Se realmente havia algum garoto talentoso naquela primeira partida, este não foi descoberto. Se realmente havia um bom olheiro orquestrando aquilo tudo, este não descobriria ninguém. Não em 15 minutos de futebol.

Depois das primeiras partidas a impaciência com os métodos aplicados parecia se alastrar entre todos os presentes. Augusto Santos, de 61 anos, levou o neto para jogar, o goleiro Cesar – “Realmente se não tiver um pistolão tudo fica mais difícil. Hoje em dia é assim. A gente sai lá de Nilópolis para vir aqui ver meu neto não jogar nem meio tempo e ir embora. A bola nem chegou ao gol dele direito”. Lucas, por outro lado, parece preferir abstrair os fatos. Sai de campo sorridente, falando que “deu para brincar”, reclamando do lateral direito de seu time, que era muito ruim, e lamentando que seu pai não iria pagar mais um dia de passagem e 40 reais para ele continuar a seletiva. Assim como Rafael Cruz, que foi embora antes de jogar, Lucas agora fazia parte dos garotos que tiveram, pelo menos por um dia, o sonho destruído.

Foto: Douglas Nascimento

Portões fechados, ingressos caros

Se destruir sonhos não é o objetivo de ninguém, certamente se aproveitar deles é uma opção. O Projeto Joga Fácil 2012, que organizou as peneiras contando com a ajuda de ex-árbitros sem expressão e técnicos de futebol de base, se apresenta em seu site convocando jovens a participarem gratuitamente dos testes, de onde sairiam cinco jogadores para fazer testes no Botafogo, em General Severiano – uma peneira que levaria a outra peneira –, e outros 60 atletas fariam uma excursão a Marília, em São Paulo, onde disputariam a Copa Nacional de Futebol com o Clube Atlético Carioca. 

A necessidade de uma porta de entrada antes mesmo de um clube bem estruturado é justificável. As dificuldades de ir diretamente a um clube da primeira divisão ou segundo escalão do RJ são muitas. Além da acentuada concorrência – as divisões de base do Fluminense, por exemplo, recebe em seu CT de Xerém até estrangeiros, além dos garotos que chegam de todas as regiões do país para tentar a sorte no Clube –, existe também a dificuldade financeira. Essa última se desdobra em duas vertentes. A primeira é com relação à carga de testes, pois geralmente um jogador não passa para um grande clube na primeira tentativa. Contudo, nem todos têm a capacidade de fazer um investimento em vários testes, que em média custam entre 30 e 80 reais cada. A segunda diz respeito à impulsão financeira ao acesso e visibilidade do jogador – mais conhecida como empresário.

Pedro Ortega, 22 anos, é um desses casos. O jogador não deu certo no futebol mesmo com todo seu talento – e incentivos. Ele começou no Barcelona do RJ, clube financiado por empresários para promover talentos. De lá, sempre ajudado por agentes –já aos 15 anos o jogador de classe média de Duque de Caxias tinha três deles –, Ortega passou pelas equipes de base do Fluminense, Portuguesa/RJ, pelo futsal do Flamengo e chegou a fazer um tour pela Europa, onde fez testes na Itália e Espanha. Ele tinha até um DVD com lances e jogadas incríveis. Nada deu certo. Contudo, a experiência de Ortega revela uma estrutura montada à margem das grandes competições, em que clubes de menor ou quase nenhuma expressão semeiam sonhos e oportunidades para todos os tipos de jovens, independente de classe social – nem todo empresário é pago, porém, nesse caso, em que o jogador não tem poder aquisitivo, o “investidor” se torna dono de praticamente todo o passe de sua promessa.

Foto: Douglas Nascimento

Da oportunidade ao engodo: Os especuladores de sonhos

Em visita ao site do Atlético Carioca, que buscava futuros talentos no Aterro do Flamengo através do Projeto Joga Fácil, é possível perceber que o clube realmente está recrutando jovens para ir a Marília, onde acontece a Copa Nacional de Futebol. O evento, que acontece anualmente, tem instalações próprias e conta com alimentação, traslado e hospedagem para os atletas – tudo pago, no final das contas, pelos próprios atletas. Por 299 reais mais a taxa de inscrição, que custa 50, qualquer atleta sem clube ou experiência em qualquer divisão de base pode participar da Copa Nacional. A vitrine, vendida a altos preços, se sustenta com a promessa de que olheiros de grandes clubes estarão presentes e acaba pescando muitos jogadores que sonham ser descobertos lá. 

Da peneira no Aterro do Flamengo à Copa Nacional de Futebol, em Marília, há uma linha tênue entre o que é oportunidade e o que é engodo – e até poderia ser classificado como estelionato. Afinal esses vendedores de esperança têm demanda e encontram campo fértil entre pessoas como Carmem, 53 anos, que já no Aterro do Flamengo ponderava os sacrifícios que fez para tentar algo para seu filho – e para si própria. “Quando ele me falou que o teste seria hoje eu não pensei duas vezes, respondi que ele não iria perder essa chance. Faltei ao serviço só para trazer ele aqui. Amanhã eu levo um atestado para justificar. Nós temos que acreditar sempre, até porque, quem sabe eu não fico rica?” – declarou a moradora de Vigário Geral, que enxerga no futebol do filho sua chance de ganhar dinheiro. Mal sabe ela que cerca de 60% dos jogadores em todo o país recebem um salário mínimo como profissional federado, uma realidade ofuscada pelo status da profissão que ostenta salários astronômicos em alguns clubes da primeira divisão nacional.

Gente como Carmem pode estar sendo vítima de slogans chamativos que se aproveitam desse tipo de sonho. Para se justificar antes mesmo da acusação, o Projeto Joga Fácil estampou em seu site uma frase em negrito, na cor vermelha e em caixa alta – “Não caia em falsas promessas, somos os únicos com CNPJ”. No Atlético Carioca, uma linha sublinhada e com letras gordas traz a frase “Já pensou em ser jogador profissional?”, seguido por um texto descritivo de um evento “respeitado e conceituado no mundo do futebol”, a Copa Nacional de Marília. De maneira um pouco mais engenhosa que os golpes telefônicos, os especuladores de sonhos atraem jovens oferecendo a oportunidade de saltar nas cifras do mundo do futebol. Talvez um ou outro consiga passar numa peneira, talvez até ser descoberto por um olheiro – daí a “ficar rico” é outra história. Todos os outros só vão engordar ainda mais o exército de promessas que ficaram pelo caminho.

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