16 de abril de 2013
O dia em que uma pequena índia encarou a justiça dos homens
Wesley Prado
Presenciei o dia em que um índio sentou na cadeira da Justiça da Federação brasileira. Nesse dia histórico, a desigualdade e o massacre dessa minoria poderiam ter sido amenizados com o proferir de algumas palavras. Palavras geralmente presentes em discursos diretos e assertivos. Não aquelas frases que percorrem caminhos cíclicos que nem o infinito quer. Nesse dia, eu vi olhos em brasa e carnes trêmulas. Eu vi o desabafo de um povo que clama por justiça, palavra tão usada e pouco entendida.
Correndo por todos os cantos, ela deixa sua marca e confere ao espaço denso e frio o calor de seus movimentos. Com olhos brilhantes, a pequena menina fugiu dos braços da mãe a caminho do inalcançável. Muitos dos seus já ficaram para trás, seja num terreno distante e alagado, seja a sete palmos da terra. “Volta aqui, volta pequena”, gritava um dos seus. Ela nada. Cabelos ao vento e pernas inquietas a levavam por todos os cantos, explorando o desconhecido como há tempos os homens brancos fizeram. Olhos nos olhos, ela encara a pessoa mais poderosa da sala. Uma das poucas que o fez de tão perto.
Passando pelo portão de entrada, a expressão de um semelhante nos recebe com um olhar desconfiado, como quem não entende o que se passa. Dá bom dia e nos convida a entrar. “Que índios são esses?”, murmurou um segurança para o outro. Pareciam não estar acostumados a receber tantos visitantes de uma só vez. Pequenos grupos espalham-se lentamente pelo lugar. Vazio de corpo e espírito, o lugar foi inchando e tomando fôlego com a entrada de pequenos grupos. Ninguém entendia o porquê dessa chegada repentina e incomum, nem os seguranças nem os visitantes.
Até que tudo fez sentido. O Museu do Índio de Botafogo estava sendo ocupado... por índios. Não aqueles estampados nas janelas e portas do espaço, mas aqueles de coração batente e lágrimas nos olhos. Em visita guiada, enquanto passávamos pelas exposições, ouvi da boca viva dos índios suas significações e pontos de vista sobre seu próprio povo.
As etnias que ocuparam o lugar o fizeram por não aceitarem a condição imposta pelo constante estado de exceção, por não abaixarem a cabeça diante da humilhação pública da desocupação do dia anterior (22 de março de 2013) num velho casarão localizado no cobiçado terreno no entorno do Maracanã. Esse dia estará sempre marcado na memória e na pele dos que lá estavam. Sim... na pele. Muitos foram agredidos e estão com hematomas que a carne não deixa mentir.
E, já que toquei no assunto, vamos lá. O segundo manifestante preso no dia D na Aldeia Maracanã foi Francisco Motta. Ele foi atingido na perna por estilhaços produzidos pela bomba de gás lacrimogêneo, puxado pelo pescoço e arrastado até o camburão. Antes de entrar, ainda foi atacado com spray de pimenta, que o deixou sem enxergar por um tempo. Após passar algumas horas no camburão, como contou, Francisco foi liberado. Seguiu para o IML do Rio e lá fez o corpo de delito. Segundo ele, o exame não foi feito corretamente, pois a atendente não avaliou todo o corpo, somente uns ferimentos na mão. Só no dia seguinte que Francisco se deu conta que havia também ferimentos no peito, nas costas e nas pernas. Foi ao IML de Niterói e lá disseram que não poderiam atendê-lo, pois ele havia sido atendido primeiramente no Rio. Voltando ao IML do Rio, apresentou-se como vítima da Aldeia e disse que queria complementar o exame. No entanto, o IML recusou-se a atendê-lo porque ele já havia feito outro corpo de delito. Após muito apelar (também ao Ministério Público, que interpelou por ele ligando para o IML), Francisco e sua mãe conseguiram o corpo de delito. Para um Estado que se diz guardião de direitos, confesso que soou como uma estratégia um tanto fascista. Eu disse soou.
A conversa com Francisco aconteceu na madrugada de domingo, horas depois do fechamento do Museu, em Botafogo, que aconteceu às 17 horas. Já se caracterizava, portanto, como uma ocupação de um espaço federal, sob controle da Funai – a Fundação Nacional do Índio – que tem como papel proteger os povos indígenas. O diretor do Museu, José Carlos Levinho, foi avisado sobre o ato, mas deixou claro ao telefone que não seria a favor do que acontecia ali. Nada como preservar a cultura indígena em arquivos, pois dentro de caixas não correm o risco de falar nada além do que o grafado em suas páginas.
O clima entre os ocupantes variava a cada hora. Risadas altas misturavam-se com nervosismo e ansiedade de ver a Aldeia Maracanã novamente viva e habitada por índios. Aos poucos, muitos se rendiam ao cansaço e forravam o chão com seus corpos cansados e feridos. Era consenso entre todos que se tratava de uma manifestação pacífica com o único fim de negociar com os órgãos que até o momento tinham se abstido de falar: o Ministério Público Federal (MPF) e a Funai.
Pouca gente dormiu nessa noite dantesca. O dia virou com a chegada da primeira viatura da PM. Com o passar do tempo, outras chegaram. O cerco (ou circo, se preferir) estava se armando. Meia hora depois da tropa de choque, a Polícia Federal, os bombeiros e o BOPE também chegaram. Pelo aparato técnico e a postura das forças policiais, pude concluir que iriam invadir com intenções não muito amistosas. Os bombeiros logo conectaram a mangueira ao hidrante mais próximo que, por estratagema do destino, estava em frente ao portão de entrada do Museu. Ao lado deles, estavam os caveiras com máscaras de gás e enfileirados, com seus adornos metálicos e brinquedos letais.
“Gente, nada de enfrentar, os caras estão prontos para o confronto,” interpelou Arão da Providência, indígena-advogado-conselheiro do grupo. Os 15 minutos dados pelo Policial Federal, que negociava com os índios no portão, já tinha acabado fazia cinco minutos. “Vamos sair, e depois?,” levantou uma voz. “Precisamos de garantias que não apanharemos,” bradou outro. “Diga que só iremos e falaremos com a imprensa presente,” sugeriu um terceiro. “Os caras estão querendo uma resposta agora,” chegou via informante. “Mais 10 minutos!!!”, soou em uníssono. Todo mundo começou a falar ao mesmo tempo. Cinco minutos se passaram. “Então, gente, fica decidido que vamos sair sem resistir, mas que nossa segurança seja garantida e que a imprensa vá conosco. E, óbvio não vamos desistir,” concluiu Arão, após consenso.
O juiz federal que acompanhou o caso estava de plantão. Desde o começo da negociação, no portão do Museu, Wilson José Witzel, mostrou-se sensível à causa. Convidou todos para uma audiência que negociaria a melhor solução para os índios. Mais tarde, revogaria a ordem de prisão, dada por crime de esbúlio processório sem violência (ocupar uma área sem autorização) a todos os ocupantes. Intimou a procuradora do Ministério Público Federal, Mary Lucy Santiago, o ouvidor da Funai, Paulo César de Oliveira, que curiosamente era indígena da etnia Pankararu, e um procurador do Estado do Rio de Janeiro. Só que o último não compareceu por não ter ninguém de plantão no momento. E nenhum representante foi enviado em seu lugar, embora o Estado estivesse ciente do que acontecia ali.
Desocupamos o Museu do Índio frente à iminente expulsão. Talvez fosse violenta, mas diante das imagens vergonhosas que rodaram o mundo na semana anterior (com a expulsão dos índios da Aldeia), acho que pensariam duas vezes antes de agir dessa forma. Por outro lado, a rua estava fechada, não tinha imprensa, e o Bope estava lá... O ar pesou nos minutos finais antes da saída. Começamos a pensar e esconder os cartões de memória caso houvesse algum tipo de retaliação. Mas, felizmente, o medo deles mostrou-se maior que o nosso. Nada foi mexido, ninguém foi tocado.
Ao perceber a pequena índia fujona, o juiz levanta de sua cadeira toda-poderosa e vai até a menina. Estávamos, nesse momento, aguardando o ouvidor da Funai chegar de Brasília. Ela, com uma câmera fotográfica em punho, registra os momentos de maneira despropositada e ingênua, mirando para a parede cinza e apertando o botão de disparo. O juiz, de maneira inesperada, pegou-a no colo e levou-a até a sua cadeira. Em seu colo, ele sorri para ela e para as câmeras águias, que logo caíram em cima. Ela o encarou de volta numa expressão tão pura, que eu não sabia se ria ou se chorava. Se ria de sua ação espontânea ou se chorava de raiva pela atitude do juiz. Estaria ele se aproveitando do momento para passar uma imagem positiva ou apenas demonstrando afeto pela criança?
A audiência começou ao meio dia no auditório da Justiça Federal do Rio de Janeiro.
Um recesso dividiu a sessão entre a ilusão e a decepção. A primeira parte foi marcada pela fala emocionante do professor Urutau Guajajara, que reivindicou a posse da Aldeia Maracanã, e a resposta de Paulo Pankararu, o índio de terno, que pediu desculpas por tanto tempo de ausência da Funai. Lamentou, mas disse que não pode responder por um terreno que é do Estado. Dividindo o terreno com a Aldeia Maracanã existe outro espaço, o Laboratório Nacional Agropecuário (Lanagro) – que funcionava como referência em pesquisa desde 1936 e foi desativado em janeiro pelo governador Sérgio Cabral para construir sabe-se lá o que para a Copa. O terreno foi doado ao Estado do Rio de Janeiro e o laboratório será alocado em outro lugar. Os índios, ao ver que talvez não houvesse negociação da Aldeia nesse momento, indicaram o Lanagro como possível espaço de moradia. Como não havia nenhum representante do Estado para responder pelo terreno da Aldeia, o juiz proferiu que permitira a entrada dos índios no antigo espaço do laboratório caso houvesse “condições de habitabilidade”.
Aí que entra a segunda parte. Saíram, o juiz, a Funai, o MPF e os índios em comboio até a Aldeia para analisar tal condição. Chegando ao solo sagrado, adivinhem: constataram que não havia condições porque havia um canteiro de obras, vidro quebrado e muito entulho no chão. E só havia isso lá pela pressa do Estado em descaracterizar o espaço, a exemplo da pintura branca no muro frontal e no prédio. As casas dos índios já haviam sido derrubadas na aldeia. O prédio, felizmente, ainda estava de pé.
Retornaram ao prédio federal para dar continuidade ao segundo ato. Aguardei no pátio da Justiça Federal com cerca de 30 pessoas. Haviam nos retirado do auditório para que pudessem limpar o local, como disseram. Ou a desculpa perfeita para desmobilizar. Quando chegaram não perderam tempo: logo disseram que seria melhor dar continuidade a audiência sem a presença dos manifestantes, somente com os índios. Aos poucos as pessoas foram saindo. Após 27 horas de mobilização, eu fui embora. Insatisfeito e decepcionado pela resposta de que o terreno não seria devolvido ali.
A justiça esteve ao alcance dos originários por alguns minutos nesse dia. Com seu gesto, a pequena índia foi a que mais se aproximou do assento que define verdades e constrói histórias. Ainda que não tenha vencido pela força política, a indiazinha ganhou todos com seu sorriso límpido e puro, ainda não corrompido pela dita Justiça dos homens.
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