Fernando Molica e a arte de se indignar

8 de fevereiro de 2013

Por Thais Ximenes e Carina Lamonatto

Foi em um cantinho da redação do jornal O Dia, bem ao lado da sala de reunião, que Fernando Molica nos recebeu, um pouco depois da hora do almoço. “O dono da mesa só chega mais tarde”, observou ele, puxando as cadeiras mais próximas. Jornalista há trinta anos, Molica já teve passagem por jornais como Estadão, Folha de São Paulo, O Globo e pela TV Globo e atualmente escreve a coluna Informe do Dia.

Sem deixar o jornalismo de lado, escreveu cinco livros de ficção e ganhou um Prêmio Vladimir Herzog com o livro “O homem que morreu três vezes”, baseado em uma reportagem que fez para o Fantástico. Como diretor da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), organizou três coletâneas de reportagens que fazem parte de uma coleção sobre Jornalismo Investigativo. Esse ano publicou um livro que traz seu bisavô, Júlio Reis, como personagem principal de uma história de ficção. Contribuiu também com um conto para “O Livro Branco”, que reúne contos inspirados em músicas dos Beatles.

"O Chico Buarque disse em uma entrevista que evita ser amigo de jornalistas, porque ele não sabe se alguma coisa acontecer na casa dele, se a pessoa vai atuar como amiga ou como jornalista", contou. Os dilemas da profissão foram tema de uma conversa de mais de uma hora que passou também por assuntos como os limites do jornalismo investigativo, uso de microcâmera, seus livros de ficção, caminhos na profissão e o que é preciso numa reportagem de qualidade. Uma aula de jornalismo.


“Ruim é ser jornalista na Suécia”


Quando perguntamos se existe alguma boa técnica para iniciar uma reportagem, Molica logo discordou. Em sua opinião, cada história demanda uma abordagem diferente. O que não muda é a necessidade de manter um olhar crítico. “Muitas vezes você não precisa de uma fonte, basta um olhar diferente, um questionamento para dar início a uma reportagem. Você tem uma massa de dados cada vez mais disponível e um acesso cada vez mais simples (na internet). É o nosso papel saber trabalhar esses dados, conseguir tirar dali algo que seja relevante para a sociedade, para o seu leitor, para o seu espectador”.

“É bom ter um olhar de turista”, recomendou Molica, “olhar como se fosse a primeira vez e se deixar impressionar pelo que se vê todos os dias”. Ele complementou: “Ter tiros, milícia, polícia armada com armas de guerra não é banal. Domínio territorial pelo tráfico não é normal. Acho que a gente não tem que naturalizar essas coisas. O Brasil é bom pra caramba, ruim é ser jornalista na Suécia. Um tom de indignação sempre ajuda”.

Mas não é só o olhar crítico que gera boas reportagens. A sorte pode ajudar bastante. O jornalista contou que a série de reportagens “Pecados da arquidiocese”, finalista do Prêmio do Esso 2009, surgiu de uma conversa informal: “Fiquei sabendo que tinha um padre na reunião de condomínio de um prédio na Rua Rui Barbosa (bairro do Flamengo, Rio de Janeiro). Ele estava fazendo uma obra gigantesca em um apartamento que se tornaria a residência oficial do arcebispo do Rio”.

O jornalista estranhou, pois tinha escrito uma nota sobre a crise financeira que a arquidiocese enfrentava dias antes. Depois de pesquisar, descobriu que o padre responsável pela reforma do apartamento era também o responsável pelas demissões que estavam ocorrendo em massa na igreja. Pesquisando ainda mais, ele descobriu que doações feitas pelos fieis à arquidiocese foram usadas na compra e reforma do apartamento, com indícios de superfaturamento. “Se eu não soubesse da história das demissões, essa história nunca teria rendido”, contou.


Televisão e impresso


Molica foi repórter do Fantástico por oito anos, mas contou que se sente mais em casa em jornais impressos. O jornalista explicou que sua geração tinha o sonho de trabalhar no Jornal do Brasil, que era uma referência. Quando foi para a Rede Globo, ele já tinha uma vasta experiência em jornais impressos. A experiência na TV foi como reaprender a profissão. “No momento de gravar uma passagem você entra em crise”, contou o ex-repórter, após declarar que considera o jornalista de TV um pouco ator, pois fala para uma câmera como se estivesse falando diretamente para o espectador.

Ele prefere a autonomia que o jornal impresso oferece. “Na televisão, a reportagem envolve muita gente, tem que gravar no local, tem que ver onde vai estacionar o carro, se o tempo vai estar bom...”, contou Molica. Uma nota que é feita de um dia para outro no impresso pode demorar uma semana para ser feita na TV, devido a essas complicações. Mas a reportagem televisiva não se resume às limitações de ordem técnica. “Eu fiquei oito anos lá, também não vou só reclamar”, declarou, ressalvando gostar muito de trabalhar com edição televisiva. “Gosto de cinema, de brincar com a imagem, criar um sentido”, completou.

Ao ser perguntado sobre qual veículo daria mais liberdade para grandes reportagens, pontuou: “Não depende do veículo. Se for para citar dez reportagens legais que eu já tenha feito, acho que poderia colocar cinco de jornal e cinco de televisão”. Embora a televisão tenha suas complicações, em alguns casos proporciona um impacto que o jornal impresso não oferece.


Ficção e verdade


Molica também argumentou sobre os limites entre realidade e ficção, especialmente a influência que o jornalismo pode exercer em seus livros de ficção: “Eu discuto muito esse conceito de realidade na literatura. Quando assistimos a um filme de extraterrestres e nos emocionamos, ou quando torcemos para que a vilã da novela das 21h se dê mal, sabemos que aqueles personagens não existem, mas as emoções que eles nos proporcionam são reais”, analisou.

Em seu primeiro livro, como um dos personagens principais era jornalista, ele acabou se baseando na própria experiência para terminar a trama. “Eu queria contar uma história na qual as pessoas acreditassem, que fosse factível. Eu tenho que ter cuidado, não posso dizer que tem uma estação de metrô no Recreio dos Bandeirantes, porque isso vai dar um ruído na cabeça do leitor”, explicou o autor de cinco livros de ficção.

Mas as diferenças entre o escritor e o jornalista estão ficando cada vez mais evidentes para Molica. Segundo ele, a ficção permite uma abordagem que no jornalismo seria improvável. “O jornalismo tem um compromisso com a moral social”, destacou. O jornalista tenta trazer o que está errado para o lado certo, sempre com um julgamento moral, enquanto que, na ficção, as histórias que mais interessam são as que não saem no jornal. “Não tem esse julgamento na ficção, porque eu quero entender essas pessoas. Ali, quem interessa é o bandido”, afirmou Molica, que prefere a ficção.


Jornalismo investigativo


Como ex-diretor da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Molica advertiu que é sempre bom ter cuidado e prudência ao fazer uma reportagem investigativa. Para ele é importante ter bom senso, pois o limite do jornalista é ele mesmo que impõe. “Nunca me arrependi de ter sido prudente”, destacou.

Molica considera que o jornalista investigativo e o detetive usam técnicas muito parecidas. Só que, para ele, o fato de o jornalista não trabalhar para o Estado representa uma vantagem. “A polícia é um instrumento do Estado, e talvez a imprensa seja um instrumento da sociedade”, justificou.

O jornalista contou que, quando trabalhava na Folha de São Paulo, chegou a se passar por outra pessoa para fazer uma matéria, mas como repórter do Fantástico o uso de câmera escondida era quase impossível: “Como eu fazia vídeo havia sempre o risco de alguém me reconhecer”, explicou o jornalista. Sobre o uso de câmera escondida, declarou: “Acho que esse recurso se justifica somente quando a notícia é muito relevante e quando essa é a única maneira de apurar”.

O colunista de O Dia aconselhou que a relevância da pauta seja discutida na redação. “Não pode ser uma decisão individual, o jornal é um produto coletivo. Tem sempre alguém que ganha mais do que você no jornal”, brincou. Molica ressaltou que é preciso ter sempre cuidado e avaliar muito cada tema, afinal são as vidas de outras pessoas que estão em jogo: “Cada vez que você se afasta da ortodoxia, tem que ir com mais cuidado”.


Reportagem em tempos de Internet


O jornal perdeu o monopólio de divulgação da informação para a internet, e esse é um fator positivo para a sociedade, comentou. Só que ele acredita também que, para os jornalistas, a mudança não foi tão positiva: “As pessoas confiam em todo mundo, só não acreditam na gente” criticou Molica, para quem esse é o momento para os jornalistas mostrarem porque ainda vale a pena comprar jornal.

Ele afirma que os jornais precisam encontrar uma nova forma de viver na era da internet. “O tempo do leitor é outro, as pessoas estão acostumadas com reportagens mais curtas”, avaliou. Segundo o jornalista, a grande reportagem envolve custos altos justamente num período de retração dos investimentos nos jornais.

Molica ressaltou, no entanto, a importância dos leitores de jornais impressos: “O leitor de jornal pelo menos é alfabetizado. O leitor do Meia Hora, do Expresso, é uma elite. Ele sabe ler, entende o que está escrito e faz questão de comprar o jornal”.


“O homem que morreu três vezes”


Molica contou também sobre as duas reportagens que fez quando estava no Fantástico e que acabaram servindo de base para o livro O homem que morreu três vezes. A primeira surgiu por acaso, como consequência de outra matéria. O jornalista tinha um filme de dezembro de 1970, encontrado no arquivo público do Rio de Janeiro, que registrava o embarque de 70 presos políticos em troca de um diplomata estrangeiro que tinha sido sequestrado.

O repórter então reuniu personagens do grupo de pessoas banidas do país para comentar o vídeo e, no meio da exibição, um deles exclamou: “Olha, o Expedito!”. O jornalista ficou curioso para saber quem era aquele personagem e soube que Expedito Pereira era um advogado gaúcho que tinha virado integrante de um grupo político radical fora do país ligado a Carlos Chacal. Ele ficou com essa história na cabeça e resolveu investigar mais.

Levou quase um ano para juntar as informações da reportagem que foi ao ar no Fantástico em 1998. A matéria foi feita no Brasil, e Molica conseguiu contato com a filha de Antônio Expedido Carvalho Pereira, que não via o pai desde janeiro de 1961. Essa primeira reportagem terminava dizendo que Expedito poderia viver na Itália, com o nome de Paulo Parra. E foi esse final, somado à sorte, que desencadeou a segunda reportagem.

Um brasileiro que morou na Itália estava no Brasil a passeio quando ouviu o nome de Paulo Parra no final da reportagem. O telespectador se deu conta que o conhecia da Itália. Parra havia dado abrigo para o então estudante em troca de trabalho. Maurício, o telespectador, ficou na dúvida se deveria entrar em contato com Molica para contar o que sabia sobre Parra. Fez isso somente quatro anos depois de a reportagem ter ido ao ar. “Não é só a gente que tem dilemas”, explicou Molica. Ele aproveitou uma viagem que fez à Europa para o Fantástico para pesquisar mais sobre aquele personagem curioso que era Expedito Pereira.

No decorrer da segunda matéria, a história cresceu tanto que o jornalista resolveu transformá-la em livro: “Era um personagem tão rico com uma história tão inusitada que achei que merecia”. Ele contou que o público do livro é menor que o da televisão, mas as pessoas que conhecem o personagem têm mais interesse pelo livro, pois a linguagem e a abordagem são mais profundas e revelam melhor a história. O livro baseado nas reportagens feitas para o Fantástico recebeu menção honrosa no Prêmio Vladimir Herzog, em 2004, na categoria Livro Reportagem.

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