15 de fevereiro de 2013
Parque Guinle, Laranjeiras. Para dois moradores da Zona Oeste do Rio, parques representam qualquer chão de areia com balanços, gangorras e escorregas. Mas aquele não é assim. Ali, lagos, patos e pessoas parecem conviver em harmonia. Debruçado sobre uma ladeira um prédio gigante abriga apartamentos espaçosos construídos defronte ao Palácio Laranjeiras, residência oficial do presidente da República até a transferência da capital para Brasília, em 1960. Num desses apartamentos, conversamos com um jornalista veterano que tem muito a ensinar.
Logo na chegada somos recebidos por um senhor um tanto debilitado fisicamente, mas impávido mentalmente, como viríamos a confirmar: Fritz Utzeri, um prêmio Esso, dois prêmios Wladimir Herzog e inúmeras histórias de redação a contar. Formado em Medicina pela UERJ, nunca exerceu a profissão. Preferiu construir seu nome nos jornais. Nascido na Alemanha e criado no Paraguai até os sete anos, Fritz correu mundo. Começou com um pequeno boletim chamado “Perspectivas”, nos anos áureos do movimento estudantil. Em 1968, ingressou no Jornal do Brasil, onde passou anos na reportagem geral. Foi correspondente em Nova York e em Paris e chegou a diretor de redação.
Fritz participou da equipe do JB que conquistou o Prêmio Esso pela cobertura do atentado do Riocentro, em abril de 1981. Os dois prêmios Wladimir Herzog, ele ganhou pelas reportagens “Quem Matou Rubens Paiva?” e “Riocentro – 15 anos depois”. Até recentemente brigava contra um linfoma que o impedia de trabalhar no seu blog Montbläat. Morreu na segunda-feira, 11 de fevereiro, no Hospital Quinta D’Or, em São Cristóvão.
Você fez uma das reportagens mais famosas do jornalismo brasileiro. Como foi a receptividade dos militares no poder à reportagem do atentado no Riocentro? Sofreu alguma ameaça de morte?
Matar certamente não. Os militares podiam dar tiro, atropelar etc. e tal, mas eu tenho certeza que na época do Riocentro essa possibilidade (de morte do jornalista) já não existia. Se fosse nos primeiros quinze anos de ditadura, seria possível, tanto que éramos grampeados, seguidos. Trabalhávamos em equipe, com um motorista, que era um armário, e com um fotógrafo. Num determinado momento, os caras tinham medo da repercussão, já que não sabiam o que estava escrito nos relatórios de apuração. Esses relatórios ficavam na mão do diretor do JB e na sede da OAB.
Quais as diferenças do repórter de hoje para o de antigamente?
Teoricamente deveria ser exatamente a mesma coisa, ou até melhor... Vocês vão me desculpar, eu não sou contra a existência da faculdade de Jornalismo, mas eu sou contra a necessidade do diploma para ser jornalista. Por exemplo, no Jornal do Brasil alguns dos maiores repórteres que eu conheço não tinham curso de absolutamente nada. Como José Gonçalves Fontes, um dos jornalistas mais premiados da História. Eu estudei e me formei em Medicina. A única especialidade em Jornalismo que eu tinha era um curso de Pós-Graduação na Unesco de Jornalismo Cientifico e Educativo, justamente a área que eu entrei em jornal. O pessoal me contratou porque eu entendia de Medicina. Eu aprendi muito sobre entrevista estudando Medicina. Você conversava com o doente para descobrir o que afinal ele tinha, e como ele tinha chegado lá. O doente, por incrível que pareça, nem sempre diz a verdade. Mas eu não queria ficar como jornalista médico. Disse que se quisesse passar minha vida lidando com Medicina, seguia como médico. Eu queria ser jornalista! Sabe aquela ideia, eu quero correr perigo? E eu corri, e muito!
E com relação ao ambiente e a prática jornalística, mudou muita coisa?
Na redação de antigamente fazia um calor infernal, havia um cheiro forte que vinha da oficina, o barulho das máquinas. Por outro lado, as equipes costumavam se relacionar, era um ambiente sacana no bom sentido. Se você fazia um baita texto, muitos te cumprimentavam. Quando voltei a trabalhar no último suspiro do JB, como editor, encontrei um ambiente muito estranho para mim. Cada um no seu computador, falando no celular. Não que seja melhor ou pior, mas é bem diferente. Com o avanço da tecnologia, os repórteres teriam mais tempo para se aprofundar, só que o meio virou o fim. Se, em meus primeiros anos, o JB fechava às onze da noite, quando retornei o fechamento era às oito. A razão industrial se sobrepôs à dinâmica da redação. Antigamente o “se vira” era destinado ao pessoal das máquinas, das gráficas. Hoje é o contrário. O imediatismo se tornou o fim. No jornalismo, você precisa ser rápido, de forma que isso não te impeça de ser reflexivo.
Qual o cuidado que devemos ter com as fontes no caso de uma reportagem de denúncia?
Matéria de caráter denunciativo, antes de tudo, precisa ter informações de duas fontes não correlacionadas – para obter a confirmação. A não ser que o repórter tenha visto o fato em questão com seus próprios olhos. É preciso se precaver da manipulação. Quando recebo um dossiê do Roberto Jefferson, vamos dizer, denunciando o Mensalão, ou denunciando o que quer que seja eu digo assim: isto é um bandido querendo prejudicar outro bandido. Não obstante, ele está dando informação e isto é uma pauta. A partir desta pauta, vou tentar apurar a informação. Primeiro, saber quem é a fonte. Segundo, buscar uma segunda opinião, de alguém que não tivesse ligação estabelecida com a primeira fonte e, em terceiro lugar, avaliar tudo. Mesmo que você chegue ao pleno convencimento, continue desconfiado. Eu digo que acho que o jornalista não deve ser imparcial, porque ninguém é imparcial diante de qualquer fato. Mas o jornalista tem que ser, antes de tudo, honesto. Precisa ter honestidade suficiente para saber que, mesmo quando um fato contradiz algo que você pensa ou alguém que preza, tem a obrigação de escrever. Isso é fundamental, não tem como escapar desta regra.
Mas uma coisa que nunca fiz foi me identificar com outra profissão. Por exemplo, nunca me passei por médico e poderia, pois sou formado. Eu sou jornalista e me identifico como tal. O conhecimento médico já me ajudou em reportagens, inclusive uma delas resultou no fechamento de uma clínica de emagrecimento. Mas a prática na Medicina é um patrimônio meu. Há um limite para o jornalista. Eu não sou policial para entrar em apuração com câmera oculta, grampeado. Além disso, eu também não julgo ou condeno as personagens de minha matéria, isso é papel da Justiça. Meu único interesse é contar o “causo”, como o “causo” ocorreu.
Sobre a evolução das entrevistas, como você vê as entrevistas por e-mail?
Eu não gosto da entrevista feita por e-mail, assim como não gostava da entrevista previamente marcada. Uma vez fui entrevistar Ítalo Lúder, que poderia ser presidente da Argentina caso Isabelita não permanecesse. Muitos jornalistas foram até a casa de Lúder também. Os membros da comitiva dele diziam que não haveria entrevistas. De repente, olho para o lado, vejo uma velhinha. Certa perspicácia é sempre necessária. O Evandro Teixeira, considerado o maior fotojornalista do Brasil, me dizia que nunca fechava o olho esquerdo ao olhar pela câmera porque poderia estar acontecendo outra coisa. Você tem que estar atento. Vi aquela mulher muito bem vestida, que era secretária de Lúder, e consegui chegar até ele. Fui o único a entrevistá-lo. A matéria foi vendida para muitos jornais da Argentina pelo JB, que tinha boas vendas no país vizinho. Então, eu não sou contra a entrevista escrita, mas procure evitar ao máximo. A boa entrevista é aquela que você faz olhando para a pessoa, desenvolvendo a conversa. De repente uma resposta gera novas perguntas e isso não acontece quando a entrevista é, digamos, amarrada. Obviamente, não é descartável na medida em que for a única possibilidade.
Você entrevistou muitas pessoas, de famosos a anônimos. Qual entrevista mais te agradou?
Por incrível que pareça, a entrevista da qual eu saí mais feliz não foi uma entrevista importante. Foi em Paris com um velho jazzista – e eu sou apaixonado por jazz – chamado Stéphane Grappelli. O velhinho era absolutamente maravilhoso. Sabe aquela pessoa que transmite uma energia boa... Lembrou que esteve no Rio há muito tempo, para ver Ernesto Nazareth, tocando piano no cinema e disse: “Havia um cinema, acho que chamava... ficava pertinho do mar.” Respondi: “Olha não sei se é exatamente esse, mas o cinema se chama Odeon?” Prontamente Grappelli confirmou. Aí disse a ele: “O cinema ta lá ainda, mas o mar não”, e ele disse: “Como?” Caímos na risada. Depois expliquei que fizeram um grande aterro, com um grande jardim. Recordo-me como se tivesse ocorrido hoje.
É claro que eu tive entrevistas mais representativas. Entrevistei o presidente da França, por exemplo. Bom, a entrevista mais engraçada e curiosa foi com o Anastasio Somoza, ditador da Nicarágua durante o regime militar. Havia dois americanos, assessores de imprensa de Somoza. Eu falo muito bem espanhol porque, embora nascido na Alemanha, fui criado no Paraguai até os 7 anos. Resolvi pedir uma entrevista, cheguei pra um dos assessores e disse que queria entrevistar o presidente. Perguntou em que jornal eu escrevia e respondi. Então falou: “O senhor sabe que seu jornal fala muito mal do nosso presidente?”. Num rompante, retruquei: “O senhor cometeu dois erros nessa frase, não é meu jornal e muito menos o nosso presidente.” Na hora assim, meu anjinho da consciência bateu no meu coco e disse: “Idiota, o que você está fazendo?” Mas o americano gostou do desaforo e pediu que chegasse às 15h.
Fui ao local e, após uma hora de espera, entra Somoza, aos gritos. Observei que na mesa do presidente havia alguns exemplares do Jornal do Brasil. Ele reclamou de o JB dizer que a Nicarágua vivia em ditadura. Afirmava que a Nicarágua era a maior democracia do mundo, pediu que chamasse os redatores para morar na Nicarágua e assim saberem como era boa a democracia dali. Eu permaneci quieto, não pela surra que levaria caso retrucasse, mas porque poderia perder a entrevista. Ao final do discurso, falei que só poderia garantir duas coisas. Uma é que transmitiria aos editores do Jornal do Brasil o seu recado. Depois acrescentei: “Não sei se eles vão aceitar ou não, mas vou dizer. A segunda é que o senhor está reclamando do Jornal do Brasil, mas o meu papel hoje é ouvir seu lado e que tudo aquilo que o senhor me disser será fielmente reproduzido na edição de amanhã”.
Você foi correspondente em muitos países. Como era o processo de imersão na cultura local sem perder a visão do leitor brasileiro?
É um processo como outro qualquer. Naquela época eu tinha 15 anos ou 13 anos de JB e, de repente, me senti como um estagiário. Eu tinha uma alentada agenda, e a agenda é o maior tesouro de um jornalista. Aí desembarco numa cidade onde não sei nem onde é o banheiro. Tem que começar do zero. Você começa a se preocupar com a parte burocrática, a imprensa, faz contato com os outros correspondentes brasileiros que estão lá há mais tempo.
Até 1982, eu nunca tinha escrito sobre Economia, mas o Brasil faliu. Sobre isso, costumo dizer que aprendi navegação a bordo do Titanic: reciclar-me e aprender jornalismo econômico praticamente em cima da hora. Um ano depois, estava dando uma palestra para 50 banqueiros num curso sobre economia brasileira. Quando voltei de férias, o editor de Economia me disse que nunca imaginou que eu fosse entender tanto sobre política econômica. Respondi: “Continuo sem entender porra nenhuma, mas agora estou convencido de que eles também não entendem”. Economia fica fácil de cobrir porque você consegue pessoas certas que viram suas fontes. Esse é um bom caminho. Aí, quando você se intera do assunto e da cultura local, o jornal te envia para Paris. E começa tudo de novo. O correspondente é um repórter num país estranho, mas que não pode esquecer que está escrevendo para o Brasil, para o brasileiro.
Qual o risco de ressaltar algo fora do contexto em uma reportagem?
Dizem muitas vezes a jornalistas, num tom de acusação: “vocês publicam isso porque querem vender jornal”. Isso é uma completa estupidez porque eu imagino que todo padeiro faz um bom pão porque ele quer vender pão. Eu quero vender jornal porque esse é o meu trabalho. É o trabalho do meu patrão e o meu trabalho deriva do dele. Mas não estou disposto a fazer qualquer coisa para vender jornal. Eu não botaria uma mulher pelada na primeira página para vender jornal. Não é assim.
E qual a melhor forma de seduzir o leitor?
Penso que, de vez em quando, o jornal tem que dar um susto no leitor. Publicar uma coisa surpreendente e importante, como o Jornal do Brasil fez na morte de Salvador Allende. A censura proibiu que os jornais dessem manchete e o JB seguiu a ordem. Entretanto, publicou a notícia em quatro colunas, em corpo gigantesco: “O presidente Salvador Allende foi assassinado, etc. e tal.” O impacto daquela primeira página foi impressionante. Eu chorei quando vi na banca. Você, ao mesmo tempo, cumpria a determinação da censura e dava um chute no saco da censura. Isto é que eu chamo de dar um susto no leitor. São coisas que o bom jornalismo tem a obrigação de fazer.
Sou contra uma coisa que, com o advento do Marketing está em evidência, que é atender aos desejos dos leitores. Eu acho que você deve atender aos desejos dos leitores em muitas coisas dentro do jornal. Mas também é preciso chamar a opinião deles para coisas que devem saber e para coisas que contrariam, inclusive, a opinião pública.
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