Uma alegoria da caverna, no morro do Vidigal

9 de janeiro de 2012
Por Evandro Pereira


A chuva caía fina e insistentemente. A subida até aquela altura do morro – como todas no Vidigal, em alguma altitude intermediária entre o pico do Dois Irmãos e o mar – é íngreme e tortuosa, labiríntica para qualquer um que não seja afeito àquelas vielas que escalam, ondulantes, por mais de trezentos metros a partir do ponto em que a via principal da favela faz esquina com a Olinto de Magalhães. O destino é a rua – eufemismo sarcástico ou política afirmativa tomar um beco por rua – Dom Hélder Câmara, número desconhecido e ademais desnecessário: todos no logradouro que leva o nome do falecido arcebispo de Olinda e Recife conhecem o Chico da Toca.

Francisco Couto é seu nome de batismo. Francisco pela devoção da finada mãe, Couto advindo do reconhecimento do genitor. Chico é apelido convencionado para qualquer Francisco Brasil afora, inclusive nas Minas Gerais onde este nasceu há declarados 78 anos e de onde saiu, ainda na adolescência, vindo parar no Rio das chuvas de janeiro, fevereiro e março.

A peculiaridade deste Chico é ser da Toca. Chico da Toca, Chico da Pedra, Chico da Caverna. Diferentes epítetos decorrentes do que, há mais de duas décadas, pareceu ser o único caminho aos olhos de Francisco: assumir um buraco entre dois blocos de rocha como sua casa.

O ano exato em que se deu a decisão é incerto, como tudo na vida deste homem. Em um primeiro momento, Chico declara que mora na gruta há 38 anos. Depois, diz que foi em “oitenta e pouco”. A conta não fecha, mas ele garante que foi após a morte da esposa. A chuva aperta. Seu Chico me convida, em tom de intimação, a entrar. Aceitobedeço. Uma vez dentro, a impressão que tenho é que viver tão somente um dia em tal (falta de) espaço, ou uma noite, já seria demais para qualquer homem.

O chão e o teto são dois maciços de granito inclinados e sobrepostos em um ângulo cujo vão constitui a área habitável, onde cabem um fogão velho junto à porta, uma cama improvisada composta de um estrado forrado por cobertores, uma geladeira e muitas sacolas de mercado cheias de pequenos e infindos utensílios. Para fechar o cerco, Chico ergueu um arremedo de parede composto por aglomerados e compensados de madeira de obra, material de demolição, tapume e propaganda política, tudo aglutinado com cimento chapiscado numa taipa de pau-a-pique que tem o intuito de minimizar – sem jamais eliminar, contudo – a entrada de água. E mesmo com o significativo risco de ser esmagado pelo eventual deslizamento da enorme pedra, são ainda as infiltrações a maior fonte de preocupação para o morador da gruta.

Internamente, plásticos são utilizados como tentativa de vedação, equilibrados e dispostos com o auxílio de cabos de vassoura. Na prática, terminam por servir como meras canaletas, guias para os filetes de chuva que teimam em escorrer pelo teto monolítico rumo ao aparelho de som doado pelo “pessoal da igreja”.

Das úmidas caixas de som do microsystem saía a voz do padre Marcelo Rossi em seu sermão, devidamente acompanhada daquele coro característico em mezzo soprano. Sendo aquela reentrância no solo a concha acústica, soou como zombaria. O padre, que já vendeu incontáveis CDs e DVDs para inúmeros e incautos fiéis, equaciona o que parece ser a fórmula do conformismo, de forma ponderada, em um tom calculado, o mais benevolente possível. “Deus... sem você... é Deus...”. Pausa mais prolongada. Sobe o som para o coral mezzo soprano. Seu Chico mira o vazio, franze as sobrancelhas, lança o lábio inferior para a frente em subducção e balança a cabeça afirmativamente, contemplativo. “Você... sem Deus...”. Nova pausa dramática. “...é nada...”.

A voz feminina do coro reverbera pela caverna em um tom semi-orgásmico que beira a heresia. Seu Chico aumenta o volume do microsystem. Reflito brevemente sobre as palavras de Rossi. Doutrinas, liturgias, prelados, concílios, bulas, tudo, tudo resumido a uma frase digna de pára-lamas de caminhão.

No humor e na fé, timing é tudo. A voz de Marcelo Rossi é tão soporífera que Chico reprime um bocejo.

“Eu não tenho medo de morrer”



Por um instante o interior da caverna é tomado pelo silêncio, os dois calados. Lá fora somente o barulho da chuva nas árvores. Dentro, vez ou outra o gotejar no fundo do balde.

“Você quer um café?”, oferece. “Eu quero um café. Não deveria, mas não consigo deixar”.

Seu Chico tem problemas de saúde. De todos, a pressão alta é o que mais o incomoda. Sente dores frequentes. Acende o fogão e põe um bule no fogo. Tira uma cartela de Propanolol do bolso da camisa puída, agita-a no ar como um réu a empunhar a própria sentença. “Este aqui peguei no posto médico ali embaixo. É só mostrar a receita e eles dão. O ruim é ter que descer sempre, só me dão remédio para uma semana. E meus pés incomodam”. Sentado num banco de madeira, reclina-se e, levantando um pouco a barra da calça, aponta para os tornozelos roxos. O acesso à caverna é repleto de pequenas rochas precariamente assentadas na terra que servem como escada, cobertas de limo. Chico leva tombos de maneira regular. O odor do café requentado mistura-se ao cheiro de terra molhada. O velho serve-se, e passa a bebericar ruidosamente em um copo de requeijão.

Pergunto se não tem filhos. Ele balança a cabeça afirmativamente. Cita os nomes de quatro mulheres, mas parece questionar a própria memória. “Moram no 314, perto da (avenida) Niemeyer”. Faço menção de insistir no tema, balbucio interrogações mas sou interrompido. “Por que você não gosta de café? É tão bom”.

Obviamente é um tópico espinhoso. Teriam eles brigado? Por que os filhos não o ajudavam? Em meus pensamentos pululam considerações acerca da velhice. Lembro da frase dita por um enfermeiro que lidava com pacientes da terceira idade na ABBR, “até os canalhas envelhecem”. Seria Chico um deles, a ponto de ser deliberadamente esquecido pelos familiares em uma caverna? A vida é repleta de caminhos incertos, tais como o beco Dom Hélder Câmara.

Esquecido pelos familiares ou não, o cidadão Francisco Couto tampouco parece despertar o interesse do poder público para com suas condições de moradia. Ele não foi exatamente esquecido pela máquina administrativa, como atestam os tapumes de madeira em sua parede interna com o rosto de candidatos a cargos políticos. Mas a Defesa Civil esteve ali, tomou ciência de sua situação, condenou o local... e foi embora.

“Eu não queria morar aqui. Se tivesse para onde ir, eu iria. Eles vieram aqui, apontaram, fizeram cara feia, um deles até riu. ‘Você precisa sair’, um engenheiro falou. ‘E pra onde vou?’”.

Imaginei o técnico da Defesa Civil dando de ombros.

“Eu não tenho medo de morrer, não, moço”, disse Chico ao engenheiro, e repetiu para mim. “Tá tudo na mão de Deus.” Em abril de 2006 os ministérios da Justiça e das Cidades, no âmbito dos programas Segurança Cidadã e Papel Passado, deram início a um projeto de regularização fundiária que proporcionaria aos habitantes do morro do Vidigal o reconhecimento de seu direito à moradia. Agentes comunitários contratados pela Ambiental Engenharia, vencedora de licitação, foram encarregados dos levantamentos físicos, socioeconômicos e de documentação das habitações e de seus respectivos moradores.

A caverna foi visitada pelos agentes. Ágatha Medeiros, que estava entre eles, lembra a ocasião com certa perplexidade. Ela estava encarregada de anotar as medidas do terreno e da área construída das casas que visitavam, para então esboçar plantas baixas. Valia-se de uma trena eletrônica nesta tarefa.

“De nada me serviu no caso de seu Chico. Como medir uma caverna? Como desenhá-la? No dia em que chegamos lá, ele nos convidou para entrar, um senhorzinho muito gentil, e ficamos sem graça de negar. Eu estava grávida na época, e assim que entrei me senti enjoada, tive a sensação de que aquela pedra poderia cair a qualquer momento na minha cabeça”.

Os agentes se despediram de Francisco sem fazer o esboço da planta. Concluíram que melhor seria registrar a situação em fotos. Moradias em áreas de risco não poderiam ser incluídas no processo de regularização fundiária e, como estava previsto no projeto, a Defesa Civil foi notificada.

As consequências já são conhecidas.

“Tá tudo na mão de Deus”.

In manibus tuis



O sustento de seu Chico provém do montante recebido por sua aposentadoria e da ajuda de conhecidos. Inclui-se nesta categoria o “pessoal da igreja”, o mesmo que caridosamente cedeu a ele o aparelho de microsystem, bem como alguns CDs de conteúdo proselitista. Ele admite que passa por dificuldades, mas parece resignado, e esta resignação me incomoda – mais que a caverna e o fato de alguém morar nela, mais que o descaso do poder público, mais que o oportunismo religioso.

“Já disse a você que sou rezador? Pois é, sou”. Disse também que foi porteiro e pedreiro quando ainda trabalhava, mas uma mirada de soslaio no engodo de parede que levantou fez com que eu pusesse este último dado da declaração sob suspeita. Ou talvez fosse verdade, a sensação que tive foi que ele fez na vida o que deu (ou deram) para fazer, como alguém a terceirizar decisões que determinam sua própria sorte, e isto talvez ajude a explicar sua situação atual. Quase podia vislumbrar o “pessoal” estimulando a criação de uma demanda para os préstimos oratórios de seu Chico. A função de ‘rezador’ seria mais uma carapuça que lhe impunham. “Às vezes vêm pessoas com o filho doente, a criança fraquinha, eu rezo a criança e dou um jeito. Faço isso tem tempo, já. Eu ajudo elas”.

“E à noite, seu Chico, quando você reza antes de dormir, o que pede para o senhor?”

“Peço a Ele que tome conta das crianças”.

“Hmm... quis dizer... o que o senhor, você, pede para si mesmo”.

“Pra mim? Peço nada não. Peço saúde, só”.


A Secretaria Municipal de Habitação do Rio de Janeiro ignorou a solicitação de entrevista.

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