Geneton Moraes Neto: A matéria-prima do jornalismo

24 de janeiro de 2012
Por Gabriel Vasconcelos
e Charles Mattos

Arte: Ildo Nascimento
Plena sexta feira, oito e cinquenta da noite foi o momento em que conseguimos um telefone possível. Ligar ou não foi dúvida passageira diante de uma lembrança pertinente: “Globonews. Nunca Desliga”. É bem verdade que não há nada de mais no fato de um canal de notícias manter um plantão, mas os juízos mudam quando duas transferências imediatas de ramal levam direto a Geneton Moraes Neto, um dos mais famosos jornalistas da emissora. Talvez porque estivesse em pleno expediente, o jornalista não reclamou o horário e topou na hora, sem rodeios. Breve e solícito, pediu que fôssemos à redação dali a três dias, no fim da tarde, para aquilo que seria um proveitoso exercício metalinguístico: A arte da entrevista por Geneton.

O engarrafamento de lei na rua Jardim Botânico nos atrasou. Afoitos, nos apresentamos à minúscula portaria do prédio mais antigo da TV Globo. Cadastrados e com cartões de visitante, pudemos transpor não roletas, mas uma portinhola de vidro, espécie de porta de faroeste eletrônica. Seguimos para o terceiro andar. O prédio é um emaranhado de salas e estúdios sem ordem aparente, o que, sem dúvidas, denuncia sucessivas mudanças e reflete o crescimento da emissora. Com alguma dificuldade, chegamos a uma redação pequena, porém cheia. Nosso homem estava em sua mesa, no canto esquerdo, mais perto da porta. Com os óculos de lente redonda e a armação castanha de sempre, além da barba nem tão volumosa, ele nos sorriu e veio de pronto em nossa direção.

Falaríamos no mesmo andar, no espaço de um café até bem movimentado em que estavam os âncoras Luiz Ernesto Lacombe e Eduardo Grillo, vestidos em ternos impecáveis e com maquiagem excessiva, própria para as câmeras. Geneton, ao contrário, vestia uma camisa de botão amarelo claro, cuja simplicidade assinalava o trabalho nos bastidores e que, somada ao restante do visual, entregava um estilo não muito vaidoso, típico de alguns intelectuais e mais comum ainda entre aqueles que se deram ao jornalismo. Estas impressões se confirmam com os fatos: autor de 11 livros, ele já foi editor-executivo do Jornal da Globo e do Jornal Nacional, correspondente da Globonews e do jornal O Globo em Londres, repórter e editor-chefe do Fantástico por duas vezes. Com 40 anos de carreira, ele se declara fã de Caetano e discípulo de Paulo Francis, numa entrevista que mais poderia ser um tratado de bom jornalismo.

No programa Dossiê Globo News você tem de gravar as entrevistas, porque vão ao ar. Mas, se pudesse optar, faria com a câmera, gravador, bloco ou todos ao mesmo tempo? Por quê?


Eu sempre uso gravador, acho que uma coisa sagrada na entrevista é o respeito e a fidelidade às palavras do entrevistado. Eu sempre gravei e, até por conta dessa mania, colecionei algumas relíquias. Por exemplo, outro dia achei uma fita cassete, que gravei quando tinha de 16 para 17 anos. Era uma entrevista que fiz com Caetano Veloso lá no Recife, ainda no início do meu trabalho como repórter.

É claro que há uma diferença entre linguagem falada e linguagem escrita para quem trabalha em jornal. Obviamente a gente precisa revisar o texto e filtrar as repetições, os vícios da linguagem falada, mas em respeito ao que entrevistado diz, eu prefiro sempre gravar. E é bom ter um documento da entrevista, independente de qualquer coisa. Não que seja para confrontar o entrevistado depois, mas você fica com aquilo nos seus arquivos pessoais e um dia pode usar de novo.

Você começou bem novo no "Diário de Pernambuco" e depois na sucursal nordeste do Estadão. Você sempre deu esta importância à entrevista ou isso só aflorou mais tarde?


A entrevista é a matéria-prima do jornalismo. Qualquer notícia é baseada em uma entrevista no fim das contas, até porque para apurar qualquer coisa você entrevista alguém, nem que seja só uma pergunta, o dado mais banal do mundo. Mas não falo aqui da entrevista no sentido clássico da palavra, aquela com pingue-pongue, ou quando você faz uma entrevista longa com um personagem, mas toda apuração parte de uma entrevista.

Com o tempo você vai enfrentando os desafios e aprendendo. Eu sempre dou um conselho a que está estudando jornalismo: existem dois tipos de pretensão no jornalista. Uma é a pretensão nociva, que é a do jornalista que se acha mais importante que o outro, o supra-sumo da sabedoria, o que é até, eventualmente, ridículo. Mas há também a pretensão saudável que é, por exemplo, imaginar: ‘ah, Pelé já deu mil entrevistas’, então antes de sair da redação, ao invés de dizer ‘ai meu deus do céu, para que entrevistar Pelé de novo?’, é preciso ter a pretensão saudável de se perguntar ‘porque não na milésima primeira entrevista eu não posso arrancar alguma coisa interessante e nova de Pelé?’. Acho que essa atitude esperançosa por parte do jornalista é fundamental para o exercício da profissão.

Outra coisa que sempre digo é: quem tiver tédio que deixe em casa, não traga para a redação pelo amor de Deus, porque a pior coisa do mundo é jornalista entediado e derrubador. E só existem dois tipos de jornalista: os bons que levantam as matérias e os ruins que derrubam. Com o tempo eu aprendi isso, os derrubadores são os burocratas.

Há um problema sério no jornalismo que é o seguinte: de tanto lidar com o extraordinário, depois de 10, 20, 30 anos de profissão o jornalista corre o risco de achar que o extraordinário é ordinário e comum. Essa é a morte profissional do jornalista, uma deformação mental. A atitude de espanto diante do mundo, digamos assim, é o básico da profissão. E é preciso separar a vida pessoal da profissional. Se for entediado, não deixe isso contaminar a profissão. A atitude entediada diante dos fatos é fatal para o jornalismo.

Suas entrevistas são uma investigação paulatina, senão sobre um fato específico, sobre a pessoa entrevistada. Você acha que uma entrevista pode revelar mais do que uma investigação clássica?


Eu acho que a entrevista já é uma forma de investigação clássica. Há uma regra universal para entrevistas: a melhor maneira de você conquistar o entrevistado é se preparar obsessivamente sobre ele. Você não pode perguntar a um entrevistado escritor, por exemplo, quantos livros ele publicou ou onde ele nasceu. Se disser a um entrevistado, ‘o senhor disse, em uma entrevista de 1962, que a literatura brasileira estava em crise. E hoje, o senhor mudou de opinião?’, no mínimo ele vai ver que você se informou sobre ele. Isso não é só uma demonstração de conhecimento, mas uma maneira de cumprir o papel do jornalista, que não é apenas reafirmar o que já se sabe, e sim tentar avançar um pouco.

Uma definição que eu gosto de jornalismo diz que fazer jornalismo é contar a alguém alguma coisa que ele não sabia, ponto. Se você consegue isso já começou bem, ao invés de só reafirmar, ser aquela coisa bem reiterativa. E para fazer isso você tem de descobrir uma novidade. E não vamos aqui fingir que os jornalistas são tão santos assim. O Paulo Francis dizia que todo jornalista é um urubu na carniça dos outros, ele fica torcendo para o sujeito escorregar numa casca de banana e cair. Assim, é claro que quando eu vou fazer uma entrevista eu espero conseguir uma declaração surpreendente, flagrar uma contradição do entrevistado ou extrair uma coisa que ele nunca tinha dito. O pior é ir e voltar com a sensação de que tudo continua na mesma. A melhor entrevista é quando você vai e volta com o lide na cabeça, quando tem facilidade para encontrar aquilo que foi o mais importante. Não é preciso nem ser jornalista para isso, é uma coisa que acontece na vida normal.
Todo mundo faz um pouco de jornalismo. Se você pegar uma pessoa que nunca pisou numa redação, e que acabou de testemunhar um acidente e vai contar aquilo a alguém, provavelmente, ela vai começar pelo lide. O jornalismo é apenas um refinamento dessa técnica que as pessoas já usam naturalmente. Os melhores, os mais interessantes são aqueles que vão contar coisas que ninguém sabe. No jornalismo é a mesma coisa, as matérias mais interessantes são aquelas que vão contar coisas que as outras pessoas não sabiam, é simples assim. A execução não é tão simples, mas a teoria do jornalismo eu acho que não chega a ser tão complicada.

Você cita Paulo Francis algumas vezes em seu blog. De onde vem essa admiração, e por quê?


Uma coisa boa do jornalismo é a chance de conviver com monstros da profissão. Eu tive, por exemplo, a chance de conviver com o Paulo Francis quando eu estudava jornalismo, ainda nos anos 70. Eu me lembro que lia o Pasquim e o Paulo Francis era um papa, ele sempre teve um texto arrebatador. As pessoas fazem muita patrulhagem ideológica em cima dele, mas, independentemente do que dizia, a técnica era perfeita e ninguém era obrigado a concordar. Ele escrevia duas vezes por semana no jornal, uma página na quinta-feira e a outra página no domingo. Era uma página inteira, uma coisa que hoje quase não existe. Colunista de página inteira na grande imprensa eu acho que não existe. Paulo Francis foi o último. Ele tinha um texto que eu considero brilhante.

Eu conheci Paulo Francis aqui na Globo, quando eu trabalhava no Jornal da Globo, ele já estava em Nova Iorque, mas vinha de vez em quando aqui ou eu ia até lá fazer matéria e ele trabalhava no escritório em Nova Iorque. A última vez que nos encontramos, eu morava em Londres, e ele gostava muito de ir lá, gravava muitas entrevistas para o Milênio da Globonews. Foi meio essa convivência de discípulo, de fã para guru e, às vezes, era até meio constrangedor para mim, porque tinha medo de falar alguma besteira na frente dele, embora fosse uma pessoa adorável.

O diploma de jornalismo, que eu nunca fui buscar na faculdade por falta de tempo quando eu terminei o curso, eu ganhei, me considerei diplomado, quando Paulo Francis escreveu uma coluna que foi o melhor elogio que eu poderia receber. Quando lancei um livro sobre Carlos Drummond ele escreveu dizendo que um dos papéis dos jornalistas de primeiro time era preencher as lacunas históricas. Ele citava ali as coisas que eu levantei sobre a vida do Carlos Drummond de Andrade.

Recomendo a todos os estudantes de jornalismo que leiam os textos de Paulo Francis e os livros também. Um que considero brilhante, aliás, é um livro chamado O afeto que se encerra, quase uma autobiografia de Paulo Francis, é genial. O Trinta anos esta noite, que ele escreveu sobre os trinta anos de 1964, lançando em 1994, também. Ele tinha um pensamento original, pensava sem medo dos outros, dizia as coisas sem seguir cartilhas políticas, ideológicas. Nesse sentido eu acho que era um mestre, e é por isso que o cito. Só para fechar o capítulo Paulo Francis, agora eu lembrei de uma coisa importante. Uma vez ele escreveu um texto lamentando que aqui no Brasil não houvesse uma tradição de uma prosa clara e instruída, e que um dos papéis do jornalista era esse, criar e passar adiante essa tradição. Paulo Francis tinha uma, e nós temos essa distorção de achar que escrever difícil é escrever bem, algo meio bacharelesco. É justamente o contrário, escrever difícil é escrever mal, escrever bem é escrever simples, direto e claro, como ele fazia.

Paulo Francis não era jornalista, embora atuasse como um. O que você acha da queda do diploma de jornalismo?


Minha opinião sobre a universidade é muito simples, não conheço ninguém que tenha ficado mais burro estudando. Mas eu acho que no fim das contas jornalismo é muito mais autoinvestimento, é muito mais por sua conta sair daqui, ir à livraria e ler um livro, se interessar por aquilo e tentar melhorar o seu texto, do que o professor obrigar você a ler um livro e te ensinar a escrever direito. É claro que a universidade burila e te dá técnicas. É claro que há casos de jornalistas brilhantes que nunca pisaram numa faculdade de jornalismo, até porque nem existia o curso de jornalismo quando eles começaram a trabalhar, era o caso do próprio Paulo Francis e Joel Silveira, considerado o maior repórter brasileiro.

Acho que podem até inventar outro tipo de formação profissional para o jornalista. Já falaram sobre isso, quem sabe um curso de um ano de especialização, por exemplo. Você é médico, economista ou qualquer coisa e faz uma especialização em jornalismo. Mas penso que o grande professor do jornalista é ele próprio e os melhores são os que investem em si mesmos. No jornalismo é perfeitamente possível ser seu professor, ao contrário do médico, ninguém é louco de se ensinar a fazer uma cirurgia, mas no jornalismo dá.

Como é possível quebrar barreiras impostas por entrevistados que são verdadeiras raposas velhas, como políticos? Qual foi o entrevistado mais difícil nesse sentido?


Uma entrevista difícil de enfrentar, porque ele devolvia as perguntas, foi com o general Newton Cruz, por exemplo. Foi uma entrevista que teve uma grande repercussão e o que me chamou atenção foi essa sede de informação que existe sobre a memória militar de 64. Você vê que existem muitos depoimentos de ex-guerrilheiros, mas você ouvir um militar falando é diferente. O general Newton Cruz tem um temperamento meio explosivo, em alguns momentos ele devolvia as perguntas, e eu vi como é difícil ser entrevistado, porque tinha de responder aquelas perguntas. Eu perguntava ‘por que o senhor não avisou que havia um atentado’, ele respondia gritando, ‘avisar a quem?!’. Não foi fácil, foi um clima de embate em alguns momentos e não era o meu papel entrar numa discussão, como eu não entrei. Em alguns momentos eu até ouvia algumas perguntas calado, porque se eu estivesse ali como militante político, provavelmente teria falado alguma coisa, mas estava ali como jornalista estritamente.

Nós entrevistamos também o general Leônidas. Foi uma entrevista dura em que ele fica me cobrando como se eu fosse representante da esquerda e, em algum momento ele fala isso e eu ouço calado. Eu acho que você tem de ouvir calado. Uma vez eu entrevistei um grande jornalista que realizou o sonho de derrubar um presidente, ele derrubou o dos Estados Unidos simplesmente, no caso de Watergate. Foi o Carl Bernstein e, em dado momento, eu perguntei: ‘você já ouviu essa pergunta milhões de vezes, mas qual o primeiro conselho que você daria para um estudante de jornalismo?’ e ele lembrou uma coisa importante: ‘a gente precisa reaprender a ouvir’, parece uma banalidade, mas não é. Muita gente fica fazendo tese diante do entrevistado, querendo brilhar em vez de fazer aquela pergunta objetiva e, mais especialmente, ouvir, deixar a pessoa terminar o raciocínio.

Outra coisa que eu considero básica, o be-a-bá, é não se deixar contaminar pela ideologia. Não interessa em quem eu vou votar, isso é um problema meu na urna, e inclusive eu disse ao general Newton Cruz: ‘vou ser sincero aqui com o senhor, eu tenho tanto interesse jornalístico no senhor quanto tenho no Luís Carlos Prestes’, que era um líder comunista, a quem eu entrevistei, aliás. Essa coisa de jornalismo engajado politicamente, ideologicamente, que se recusa a entrevistar fulano de tal porque é de direita ou de esquerda, isso eu acho o fim do mundo. É claro que cada um tem suas preferências e simpatias, mas eu pagaria um milhão de dólares para entrevistar George Bush, como pagaria um milhão de dólares para entrevistar Fidel Castro. Jornalisticamente para mim não faz diferença, é 1 x 1 aí. Você não pode de jeito nenhum descartar uma coisa em nome da ideologia, porque, se fosse assim, eu não teria entrevistado os generais, por exemplo. Deixa as pessoas falarem, o papel do jornalista é transmitir aquilo para o povo. Quem viu a entrevista vai chegar a uma conclusão certamente sobre os generais ou sobre o guerrilheiro, ou sobre o presidente que você entrevistou, mas não você, você não tem esse direito de patrulhar ideologicamente os entrevistados.

Leia outros trechos da entrevista: Contra o “jornalismo ternurinha”

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