A cidade como negócio

18 de janeiro de 2012
Por Gustavo Cunha

Arte: Ildo Nascimento
O fim de mais um ano sempre nos lega questionamentos acerca do que vem pela frente. Balizamos tempos pretéritos e presentes, e supomos um futuro equilibradamente hipotético. Foi talvez no embalo desses ensejos que O Globo publicou matéria fartamente esperançosa sobre o “futuro” de sua própria cidade, no dia 27 de dezembro. Em grandes letras, as páginas 12 e 13 alardeavam que somos “uma cidade em movimento” e que “bons negócios” se aprumam “à vista para novos descobridores”. A manchete em cor branca complementava a foto clicada em novembro por Márcia Foletto: uma mulher com capacete de operário caminha para a saída de um escuro túnel, onde se vê terra e entulho de obra. Da escuridão cavernosa – reino de sombras –, partimos para a bem iluminada realidade nítida e azul. Nesse mundo que está por vir as sombras parecem não ter espaço. Ou (quem sabe?) estão simplesmente a se esconder.


Enxergamos um futuro ainda em construção. Pelo menos é o que diz a vinheta estampada no topo das páginas, em diálogo com a imagem: “construindo o futuro”. E não é um futuro qualquer, desses acompanhados de artigo indefinido. A primeira frase do lide da reportagem de Natanael Damasceno nos explica, com o devido jogo de palavras: “os canteiros de obras espalhados na cidade são evidências concretas de que o Rio está num profundo processo de transformação”. O vaticínio pode ter sido semelhante anos atrás, na empoeirada gestão de César Maia. Mas, dessa vez, a profecia carrega consigo ares mais elevados e firmes. Ainda no lide, somos informados de que “a cidade está diante de um corredor expresso em direção à modernidade”.

O Rio “revitaliza-se”


É quase uma ode à frase atribuída ao colunista Figueiredo Pimentel, “o Rio civiliza-se”. Apesar de cunhada em um Rio de Janeiro recém-saído do século XIX, a afirmação parece ainda manter sentido para a contemporaneidade. Só mudam os termos. Da busca pela “civilização”, almejamos agora a louvável “revitalização”. E, novamente, mais do que colocar vida onde ela não existe, é preciso transformar as vidas que já existem. A necessidade de se adaptar a um modelo “global”, que seja entendido facilmente por todos os continentes, ressuscita (com força) mais de cem anos após as reformas “civilizadoras” da Belle Époque, empreendidas, em 1904, pelo prefeito Pereira Passos. Obviamente, as “transformações” continuam a ser conduzidas pelos interesses do capital. A diferença é que agora eles se escondem sob o manto mistificador da Copa e das Olimpíadas. Para todos, diz-se que chegarão imensuráveis benefícios. Será mesmo?

Mais uma vez, lançamo-nos estranhamente em direção a um futuro florido. Acomodamo-nos em amanhãs (como todos) incertos, mas com a ilusão de que eles serão certos. Reitera-se assim a visão de que a prosperidade está em futuro seguramente admirável. Alimentamo-nos de falsas esperanças e acreditamos que, afinal, tudo é “uma questão de tempo”. Nesse movimento, esquecemos que o pós-presente está na construção do próprio presente. Engraçado pensar, por exemplo, que o futuro de 1904 se mantém em parte o mesmo em 2011.

A caminho do “topo”


Em ambos os casos, as pretensões futurísticas estão plenamente sintonizadas com o positivista lema da bandeira nacional. Fazem jus à pátria amada. Exalta-se a hegemônica “ordem”, caminho para o “progresso”. Evocam-se os tempos primórdios do pensamento antropológico britânico, coisa já há muito ultrapassada nos meios acadêmicos. Passado, presente e futuro não se entrelaçam para formar uma única “teia tênue”, como fazem os galos – com seus cantos vários – para compor a manhã no poema Tecendo a Manhã, de João Cabral de Melo Neto. O pensamento evolucionista prevalece como senso comum. Hegemoniza-se nas trocas e nos discursos cotidianos. Aqui, o passado é algo a ser superado, descartado. Entendemos a temporalidade como uma escada a ser percorrida em direção a um andar último, final e magnânimo. Mas como bem esclareceu Claude Lévi-Strauss, em Raça e História, “a humanidade em progresso nunca se assemelha a uma pessoa que sobe uma escada, acrescentando a cada um dos seus movimentos um novo degrau a todos aqueles já anteriormente conquistados; evoca antes o jogador cuja sorte está distribuída em vários dados e que, de cada vez que os lança, os vê espalharem-se no tabuleiro, formando outras tantas somas diferentes”.

Historicamente, preferimos escadas a dados. Em 1904, o andar superior se inspirava no glamour parisiense. Desejava-se o ethos europeu de civilidade. Foi para isso, portanto, que Pereira Passos levou a efeito uma verdadeira revolução na então capital do país: demoliu casarões, deu fim a algumas praças e pôs abaixo edifícios. Sem falar no desalojamento de pobres famílias que habitavam cortiços. Era preciso abrir as largas avenidas – boulevards – adornadas com os suntuosos réverbères, e impor edifícios com uma arquitetura de padrão superior, dignos representantes da capital federal.

Espelho do passado


Arte: Ildo Nascimento
Hoje, em pleno século XXI, os desejos em pouco se diferenciam. Prédios serão implodidos, determinadas ruas deixarão de existir, moradores de favelas serão removidos... Mais uma vez, tudo para dar vazão ao sonho de se incorporar aos ditames do “primeiro mundo”. De certo modo, continuamos colonizados por concepções européias e norte-americanas. Queremos um porto beautiful, clean, chic e fashion para podermos recebê-los com muita categoria. Desejamos amplas praças, com belos chafarizes, bancos, áreas livres, árvores, pois foi assim que aprendemos com os filmes que eles nos exibem. Estamos preocupados com o nosso próprio bem-estar, com o atendimento de nossas demandas urbanas, ou simplesmente queremos agradar os olhos dos eternos ingleses?

Como bem afirmou O Globo, confirmamos a crença de que “o Rio virou um bom negócio”. As esperanças presentes para um futuro que já se aproxima são imensuráveis. Como em Londres e Buenos Aires, a “revitalização” da zona portuária irá “colocar o Rio em evidência, beneficiando o turismo e atraindo uma quantidade enorme de empresários, artistas, designers, fashionistas, contagiando como uma onda outros pontos da cidade”. De fato, os negócios (comerciais e financeiros) serão muito grandes. E nisso, O Globo foi enfático. Esqueceu-se apenas de que uma palavra, por vezes, pode representar mais de um significado. Sim, o Rio virou um bom (?) negócio, no sentido mercadológico do termo: “cada vez mais a cidade atrai investimentos da iniciativa privada”. Ao mesmo tempo, torna-se também um bom negócio-coisa. Para a busca de sinônimos que traduzam o que se quer dizer, é preferível recorrer ao dicionário: o Rio virou um bom negócio, um “objeto”, um “troço”. Um produto qualquer, exibido em prateleiras de mercados de todo o mundo.

A embalagem é stunning. Do recheio... já não se pode dizer o mesmo.

O Rio revitaliza-se. E o futuro de um secular passado se aproxima.

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