Maravilha... de cenário

18 de janeiro de 2012
Por Gustavo Cunha e Luísa Vianna
Fotos: Luísa Vianna



Pesquisadores da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFF questionam o sentido da “revitalização” do Porto do Rio. Condenam a transformação de cidades em paraísos artificiais para turistas, falam da necessidade de negociação com a população atingida e apontam a falta de um projeto coerente. Moradores do Morro da Conceição demonstram apreensão com o projeto, a especulação imobiliária e criticam a falta de diálogo com as autoridades.



A vida postiça das cidades cenográficas


Cem anos depois da famosa reforma de Pereira Passos, que deu ares cosmopolitas à então capital federal, o projeto Porto Maravilha promete “revitalizar” uma das áreas mais degradadas do Rio de Janeiro e, com isso, apresentar um novo cartão de visitas ao turista. Os problemas começam com essa palavra que, de tão repetida, já foi incorporada ao discurso comum, mas que é questionada pela professora Cristina Nacif, do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFF:

Revitalizar quer dizer que não tem vida? Ou, que se irá tirar aquela vida existente e colocar outra?”, pergunta ela. Cristina, que acompanha a evolução da situação da zona portuária há cerca de 20 anos, refere-se à “revitalização” como um possível processo de transformação dessas áreas em “cidades-cenário”.

Exemplos não faltam. Um deles é o bairro de Santa Teresa: “é um caso que foi produzido para o turismo. Nada ali é para a população. Tudo é para os turistas. As pousadas, por exemplo, são propriedade de gente de fora”. Outro exemplo seria a cidade mineira de Tiradentes, também transformada em polo turístico. “Ali não existe mais cidade. A vida mesmo acabou”. Fenômeno semelhante acontece com o centro histórico de Salvador, onde, “na área turística, fica só turista convivendo com turista”. Os locais acabam por se transformar, dessa maneira, em áreas segregadas e fragmentadas dentro da cidade.

“Vocação” fabricada para “agregar valor”


Diego Cardoso, um dos pesquisadores que trabalham com Cristina, questiona a propalada vocação turística e cultural da região do porto. Segundo ele, este é um processo de construção de um conceito que não existe – pois nenhuma região nasce “vocacionada” – e que se fortalece proporcionalmente à decadência da atividade portuária. Diego argumenta que esse processo resulta da necessidade de se afirmar o Rio como “cidade global”, mostrar seu potencial para o mundo – e, ao mesmo tempo, reunir investimentos de agências multilaterais. Daí a concepção meramente mercadológica do projeto de reforma, como se o Porto fosse uma marca.

“Querem agregar valor a tudo!”, exalta-se Cristina. “Qualquer coisa pode ser vendida”. Por isso, a professora acha improvável uma conciliação entre a população local, principalmente a do Morro da Conceição, e os turistas. “Vem pra cá, faz evento, enche isso aqui de gente; mas não há integração com ninguém da área”.


Necessidade de negociação


Cristina acha que a restauração é, de fato, necessária, mas precisa ser pensada em outros moldes. Na opinião da arquiteta, deveria haver negociações constantes entre a população e o governo no planejamento da reforma urbana. Não há, no entanto, um projeto alternativo que – além de mostrar a resistência, as opiniões e o desejo dos habitantes – imponha, de maneira efetiva, limites ao que foi apresentado pelo governo. A falta de articulação entre as lideranças das comunidades leva os grupos que tentam fazer projetos voltados para o lado dos moradores – entre os quais um formado por professores de diversas unidades cariocas – a enfrentar muitas dificuldades. Além disso, ainda há a resistência do governo. “A gente quer isso, a Prefeitura quer aquilo”, resume Cristina. “Então, vamos para a luta”.

De fato, o ideal seria compor a operação de reforma urbanística com profissionais que assumissem o papel de intermediários entre a população e o governo, como advogados e economistas, de modo que se realizasse “uma intervenção necessária, que assegure, ao mesmo tempo, a permanência da população no local”. Cristina ressaltou o fato de que qualquer intervenção urbana agrega certo valor à área afetada.

Mais importante ainda é pensar nas intenções por trás de tudo isso. A professora indaga: “As intervenções serão feitas para quem está morando lá? Para quem, realmente, será isso?”. Segundo ela, é o viés turístico que norteia a elaboração do projeto, direcionado principalmente ao setor de serviços: “eles estão se lixando para quem está lá. Se os moradores saírem é até melhor. Quanto menos enraizamento melhor”.


Um jogo de computador


Outro ponto que também suscita polêmica, para a professora, está relacionado às reais possibilidades que a cidade oferece. Ainda não se sabe se o Rio de Janeiro possui, de fato, densidade econômica suficiente para fazer as obras monumentais previstas, nem se há a verdadeira intenção de grandes empresários em intervir na área e ocupá-la, transformando-a em um polo cultural e empresarial.

Diego Cardoso sintetiza: “sinceramente, para mim isso é uma abstração”. Para o pesquisador, não há verdadeiramente um projeto, mas “uma grande mescla de coisas que o (ex-prefeito) César Maia já havia proposto em 2001 – só que agora com uma conjuntura mais favorável do que a de então”. Em tom indignado, Diego compara o projeto a uma brincadeira de computador: “é um interesse que se materializou num power point. E não necessariamente vai ser aquilo. A toda hora ele muda com notícias novas que recebemos pela imprensa. Não é um projeto que veio estruturado e fechado. Ele está em construção, e não necessariamente com a sociedade”.

Cristina acrescenta: “Cadê o estudo para isso? É uma coisa mambembe! Em outros países se leva cinco anos fazendo o projeto e cinco meses fazendo a obra. Aqui são cinco meses com um monte de idéias e depois a obra é que nem a Cidade da Música. Sem o planejamento correto as coisas acabam duplicando, triplicando de preço. Há um açodamento. Há uma ausência de projetos detalhados e justificativas pra valer, com estudo das populações. É uma coisa inconsequente”.


Moradores temem o fim do sossego



No Morro da Conceição, bairro que tem suas origens no início da ocupação portuguesa no século XVI, a grande maioria dos moradores, com exceção de artistas que possuem ateliês no local, se manifesta contrária à proposta de “revitalização”. É unânime a opinião de que o Projeto Porto Maravilha fará desaparecer, mesmo que aos poucos, a tranquilidade da região. Para um casal de moradores, que preferiu não ser identificado por questões pessoais, “o Morro da Conceição é a menina dos olhos de toda equipe envolvida no projeto”. Isso porque, além de haver pouca coisa a ser feita por lá – a maior parte das casas se encontra em ótimo estado de conservação –, a região se apresenta, justamente por sua história e arquitetura colonial, como um excelente local para turismo e para atrair investimentos. “Temos medo de perder isso que nós chamamos de ‘bem imaterial’, que é esse clima único da região”, relata a moradora.

Para o Morro da Conceição o projeto prevê a construção de um teleférico conectando a área ao Palácio D. João VI, na Praça Mauá, bem como a reurbanização do local, através da recuperação das históricas ladeiras, melhorias no calçamento e na iluminação e abertura de novas vias. Os moradores entrevistados, que ainda pouco sabem sobre as reais interferências a serem feitas no bairro, consideram que o único benefício – até agora – da reforma refere-se às previstas mudanças na rede elétrica, que passará a ser enterrada. “A Prefeitura libera muito pouca informação a respeito do que realmente será feito no Morro da Conceição. Isso gera um clima de muita especulação entre nós”, relata um dos moradores.


Valorização dos imóveis


O consenso entre os habitantes é de que o Projeto Porto Maravilha trará mudanças que poderão ser irreversíveis. De fato, a “revitalização” deixará em evidência o Morro da Conceição – que já vem ganhando visibilidade na mídia e atraindo a atenção de artistas dos mais diversos ramos. Dessa maneira, se todas as atuais propostas forem cumpridas, o valor dos imóveis aumentará de forma brutal. Na realidade, isso já acontece: algumas pessoas passaram a alugar imóveis, ou até mesmo vendê-los, por preços bem salgados.

De acordo com pesquisas realizadas pelo Secovi-Rio (entidade que representa o mercado imobiliário), o preço de apartamentos de quarto, sala, cozinha e banheiro no Centro da cidade – que engloba a zona portuária – aumentou 83% entre janeiro e dezembro de 2010. “Se antigamente as pessoas tinham, em geral, uma imagem negativa do Morro da Conceição, associando-o à favela ou a um lugar tido como perigoso, hoje posso dizer que moro em um lugar chique, que tenho status”, brinca uma moradora. A apreensão é de que a especulação imobiliária gere um avanço do setor empresarial que acabe com o sossego tradicional do lugar.


Em vez de diálogo, bate-boca



Em junho de 2009, a Prefeitura e o Iphan/RJ promoveram uma reunião para apresentar e discutir com os moradores o “Projeto Conceição”. No entanto, o encontro descambou para bate-bocas que, ao invés de propiciarem algum tipo de acordo entre o governo e os moradores, acabaram por aumentar a divergência entre as partes. A moradora critica: “A Prefeitura já chega na reunião querendo impor determinadas coisas. Ela não nos dá o direito de falar. Fica difícil fazer um debate desse jeito”.

Na época, os moradores Antônio Agenor Barbosa e Tomas Martin Ossowicki publicaram artigo no jornal O Globo em que acusam o Iphan de adotar uma postura autoritária, impedindo uma abordagem sobre o sentido político das reformas e “reduzindo a discussão a uma questão (apenas) estética, justificada, inclusive, por ácidas críticas aos moradores por terem instalado ‘caixas d’água azuis’ nos telhados”.

No artigo, os autores sugerem que a intenção é transformar aquele patrimônio cultural da cidade em simples mercadoria: “Será que o Iphan – ao invés de se preocupar com a preservação dos espaços de convívio e das memórias sociais e suas relações múltiplas com fachadas, ruas, becos e escadarias – estaria se dedicando apenas a um tipo de salvaguarda que mistura antigas práticas monumentalistas baseadas na contemplação estética das elites culturais com a tendência atual de transformar patrimônios em novas mercadorias a serem, simplesmente, consumidas?”




O Rio do “bota-abaixo”



Entre os anos de 1903 e 1906, o então prefeito do Rio de Janeiro, Francisco Pereira Passos, operou uma reviravolta na capital do país. Com o Projeto de Embelezamento e Saneamento da cidade, derrubou cortiços e casas de cômodos – na operação que entrou para a história como o “bota-abaixo” – para dar lugar à larga e moderna Avenida Central, hoje Rio Branco. Também começou as obras do novo Porto, inaugurado em 1910, e remodelou a estrutura central da cidade nos padrões europeus, cultuados pela elite da época. Era preciso construir uma nova “cara” para a capital do país, apresentando um espaço moderno, “civilizado”, que fosse o símbolo da importância do Brasil, expressão de um modo de vida cosmopolita e sintonizado com o resto do mundo. A alcunha de “Porto Sujo” deveria representar apenas o passado. E, junto com ela, tudo o que representava o atraso também deveria ser excluído, incluindo a população de baixa renda, que foi expulsa e relegada a áreas periféricas da cidade.




A reforma da zona portuária



O Projeto Porto Maravilha prevê a revitalização e urbanização das áreas “degradadas e empobrecidas” da zona portuária carioca. Mais uma vez, a cidade símbolo do Brasil vai se equipar para tentar mostrar ao mundo o que há de melhor. Será necessário lidar com uma população muito maior, 14 comunidades tradicionais da região e todo o patrimônio que conta uma parte fundamental da história do Rio, como, por exemplo, o Mosteiro de São Bento, o Morro da Conceição e a Praça Mauá (berços do samba), a Igreja de São Francisco, o Palácio D. João VI e o edifício A Noite.

O Pier Mauá, porta de entrada dos turistas que chegam à cidade a bordo de transatlânticos, também trará modificações em suas instalações, que vão do Armazém 1 ao Armazém 4. Será, portanto, o hall de entrada das Olimpíadas e da Copa para turistas de todo o mundo e, no futuro uma área importante de atração cultural e artística.

O Projeto, divulgado pela prefeitura do Rio na internet, prevê a “melhoria das condições habitacionais existentes e a atração de novos moradores para a região”, o crescimento da população local de 20 para 100 mil, com a construção de 30 mil casas, e a reforma do edifício do antigo jornal A Noite. Além disso, ainda é prometida a recuperação de notáveis casarios antigos através do programa “novas alternativas”. Em abril de 2010, o Morro da Providência recebeu a ocupação da sétima Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Para o governo, o fato representou um grande passo no caminho para a “revitalização”.




Um símbolo da história da cidade


Marco da ocupação original do Rio de Janeiro, o Morro da Conceição possui os mais antigos patrimônios históricos da cidade. O local, que sempre se caracterizou por concentrar majoritariamente residências familiares, ainda sustenta um modo de vida particular, semelhante aos tradicionais bairros portugueses – e que não é característico de grandes cidades.

A origem do nome deve-se a uma pequena capela, construída no topo do morro, em 1590, em homenagem à Nossa Senhora da Conceição. O local ainda abriga outros edifícios com alto valor histórico, como a Fortaleza da Conceição, a Igreja de São Francisco da Prainha e o Observatório do Valongo.No sopé do morro, mais para o lado da Praça Mauá, encontra-se a famosa Pedra do Sal, rocha que, no período colonial, dava para as águas da Baía de Guanabara e onde era desembarcada a carga de navios negreiros – uma delas, o sal, além da própria mão-de-obra escrava. Atualmente, é uma importante referência histórica à cultura negra no Brasil. Para os amantes do samba e do choro, a região faz lembrar um Rio de Janeiro de grandes sambistas, como Donga, João da Baiana e Pixinguinha.

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