O politicamente correto ataca outra vez

22 de janeiro de 2011
Por Marco Vito Oddo
Ilustrações de Ildo Nascimento



m vez de “crioulo”, “escravo”. As Aventuras de Huckleberry Finn e Tom Sawyer, dois clássicos da literatura mundial, serão relançados em fevereiro em uma versão politicamente correta. Escritas por Mark Twain, as obras serão publicadas em um único volume, com alterações feitas pelo professor Alan Gribben, da Universidade de Auburn, no Alabama. Gribben afirma que a substituição da palavra “nigger” por “slave” tem como objetivo ampliar o número de leitores de Twain, já que a versão original seria incômoda para algumas pessoas. A iniciativa gerou uma previsível controvérsia em torno da adulteração de uma obra literária retirada do contexto histórico em que foi produzida e chega ao Brasil pouco depois da polêmica em torno de outro clássico infanto-juvenil, Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, que uma comissão do MEC sugeriu excluir das escolas públicas.

Determinada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), a medida foi criticada pela Academia Brasileira de Letras e por vários pesquisadores, e o próprio Ministro da Educação, Fernando Haddad, pediu que o parecer fosse reavaliado. A obra, segundo o CNE, teria conteúdo racista, supostamente evidenciado no tratamento da personagem Tia Nastácia, chamada de “negra velha” e “macaca de carvão”.

Notas explicativas


A recomendação do CNE resultou do pedido da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial de que o livro de Monteiro Lobato só fosse liberado para uso nas escolas após a inclusão de uma nota explicativa sobre a condição do negro. O argumento era de que já existe, na atual edição de Caçadas de Pedrinho, uma nota sobre a época em que o livro foi escrito, quando a ecologia ainda não era um tema de grande relevância. Isso explicaria a morte de animais na história.

Pedrinho, “bode expiatório”


“Antes de mais nada, Monteiro Lobato é imprescindível na literatura brasileira. Alimentou o sonho, a esperança e a memória de gerações”, afirma o doutor em Literatura Comparada André Dias. Quando questionado sobre as restrições do CNE, André é direto: “Não vejo racismo algum. A literatura é uma tentativa de entender seu tempo. É produzida em determinado momento, mas acaba se estendendo pela história. Seu momento de produção não pode ser ignorado”.

Para o professor, as concepções raciais contemporâneas se tornam perigosas quando reforçam o sectarismo: “cria-se um grupo que se torna responsável pelo que deve ser lido, e como”. Ele argumenta que a discussão sobre a posição do negro na sociedade brasileira deveria ir além da cor da pele e se concentrar na situação da classe pobre do país, que é de maioria negra. A exclusão do negro tem raízes históricas, mas André defende que “uma injustiça não se repara com outra”. Para ele, Monteiro Lobato serve apenas de bode expiatório na validação do “politicamente correto”.

Avaliação abrangente


Romancista e doutorando em Literatura, Darlan Lula concorda com o professor André. Além de analisar o momento de produção do livro, Darlan aponta a necessidade de se avaliar a obra como um todo. “Situações de escrita isoladas não guardam munição para esse tipo de ingerência. Qual era o tratamento que se dava à Tia Nastácia no conteúdo do livro?”

Leitores do Sítio do Picapau Amarelo vêem na cozinheira uma figura carismática, e suas histórias são uma fonte de sabedoria. Não há como negar que Tia Nastácia era amada pela família do sítio, mesmo quando chamada de “preta velha”. Em vez de ser descartada, diz Darlan, a história poderia servir para fomentar a discussão sobre o racismo e ajudar as crianças e os jovens a pensarem criticamente sobre o assunto.

Mais do que avaliar o conteúdo de um livro, o importante seria discutir como as leituras podem ser associadas a nossas práticas sociais. “A pergunta não é saber se o livro contém material racista ou não, é saber se, pela leitura do livro, conseguimos perceber em nossa sociedade atitudes que condizem ainda com o que é descrito no livro. Se a resposta for sim, aí devemos nos preocupar é com a nossa formação social, e não em proibir o livro”, afirma Darlan.

Outras “correções” edificantes


Nessa luta a favor dos bons costumes, até mesmo os Beatles são alvo de pequenas censuras. Em uma coletânea lançada no Reino Unido, Capitol Albums, a famosa capa de Abbey Road foi modificada para apagar os cigarros que três dos quatro integrantes da banda seguravam. O corte também atingiu dois dedos de Ringo Starr. Talvez isso prejudique os solos de bateria.

No Brasil, um projeto lançado pelo governo do Maranhão, batizado de Educação pela Paz nas Escolas, prevê diversas medidas para minimizar a violência infantil, entre elas a adaptação de cantigas de roda. Agora, o gato não leva mais paulada; o cravo e a rosa também não brigam mais. A justificativa para a mudança seria a de que o conteúdo original das canções incita comportamentos cruéis e agressivos.

Quem sabe até Papai Noel...


Até onde vai chegar essa tendência, que nas últimas décadas investe na tentativa de alterar elementos da literatura, da música e da cultura popular de modo geral? Afinal, estamos cercados de figuras perigosas e de péssimos exemplos.

Imagine-se a cena comum em todo fim de ano: um velho barbudo, de fala mansa e risada gostosa, que toca um sininho e convida as crianças a sentar em seu colo. Promete presentes e brinquedos para as que obedecerem e forem bem comportadas e boazinhas.

Como, até agora, ninguém suspeitou do perigo que ronda nossos filhos na época de Natal? Acusar Papai Noel de pedofilia pode parecer absurdo, mas seria perfeitamente lógico em tempos de “politicamente correto”.

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