1 de dezembro de 2010
A megaoperação de 2007 e seus reflexos
Por Táia Rocha
reportagem realizada em julho de 2007
Quando visitei pela primeira vez o Complexo do Alemão, guiada por uma moradora prestativa e simpática, grande parte do que vi e ouvi já esperava encontrar. Vinha da imagem que eu, moradora do asfalto, construí a partir de um repertório de 22 anos sobre a favela: filmes, livros, novelas, noticiário. A outra parte ficou por conta das surpresas.
Na tarde de 21 de julho, um sábado, o que me pareceu mais extraordinário foi a tranquilidade, ao menos aparente, que reinava no local.
Entramos – eu, uma amiga da faculdade e a moradora – pela Grota, uma depressão entre o Morro do Alemão e a Comunidade Alvorada, onde um grupo de soldados da Força Nacional de Segurança (FNS), enviados de todo o país para combater o tráfico de drogas na região, apontava fuzis em direção à favela. Eram três de um lado da entrada, dois do outro, vestidos de preto, próximos a um veículo da FNS. “Eles ficam aí horas na mesma posição, sem falar com ninguém, até oito da noite, quando chegam os outros, que fazem plantão”, comentou nossa guia. Tive o impulso de entrevistá-los, mas quando perguntei à Fernanda (nome fictício, por motivo de segurança) “você se importa?” e vi uma expressão não muito animada seguida da resposta “pode ir, mas prefiro ficar aqui”, optei por não abordar os soldados naquela tarde, pensando na segurança de nossa anfitriã.
A rotina, entre jovens armados
Apesar do início hostil, o que vi ali me pareceu um sábado normal: pessoas se divertindo, bebendo com os amigos, ouvindo música, indo às compras. Caminhamos por cerca de quarenta minutos pela Joaquim de Queirós, rua longa e tortuosa que se inicia na Estrada do Itararé e desemboca na Estrada Velha da Pavuna. Ali, um trecho bastante comercial, os motociclistas são habilidosos em driblar o grande número de pedestres, que não contam com calçadas. Ou seriam os pedestres a driblar as motos? O fato é que, além de mais barato, o veículo é mais ligeiro do que o carro para subir e descer as infinitas vielas do lugar – além de, claro, ser índice de status.
À medida que andamos para o interior da comunidade, foi impossível não nos impressionarmos. Se não pela quantidade de pessoas na rua, em atividades de comunhão social, como conversas na porta das casas, meninos jogando fliperama, barzinhos tocando forró, barzinhos tocando música sertaneja, barzinhos tocando pagode – segundo Fernanda, “um bar a cada esquina” e “uma igreja em cada beco” (De acordo com o sítio do grupo Raízes em Movimento, são “trinta e oito igrejas, evangélicas e católicas, e também centros espíritas não contabilizados, sendo grande a frequência dos moradores) ou pelo lixo no chão e o esgoto a céu aberto em alguns trechos, se não por toda essa organização sócio-espacial já extremamente distinta da que se vê no asfalto, era impossível não nos impressionarmos com a quantidade de jovens homens armados, e a naturalidade com que isso é encarado no local - como disse, o clima era tranquilo.
Tentando chegar mais perto da realidade
Não tive a pretensão de conhecer o Complexo do Alemão e seus infindáveis 296 hectares em menos de uma hora ou conversando com apenas uma moradora durante o passeio. Mas imaginei que acompanhar de perto uma tarde do dia-a-dia no bairro me tornaria um pouco menos preconceituosa e resolvi que deveria fazer a visita antes de escrever sobre o que vem acontecendo desde o dia 2 de maio [de 2007], quando 1.350 homens das polícias militar e civil do estado do Rio de Janeiro e soldados da Força Nacional de Segurança cercaram e passaram a fazer incursões frequentes na região.
A decisão da operação partiu da Secretaria de Estado de Segurança, liderada por José Mariano Beltrame, a princípio em retaliação à morte de dois soldados da PM, no dia anterior à ocupação. Para a PM carioca, o objetivo seria executar mandados de prisão, que já vinham se acumulando há tempo, contra traficantes que agiriam na área.
Em quase três meses de atuação, as polícias e a FNS deixaram um saldo notável de mortos e feridos no Alemão. O número preciso é extremamente difícil obter. Depois de falar com exatamente 10 pessoas, sendo transferida de setor a setor do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, finalmente fui atendida por um funcionário da área de Comunicação que me indicou, como fonte apropriada para pesquisa, o sítio da Secretaria de Estado de Segurança do Rio de Janeiro, onde só encontrei um release como material sobre a ação do dia 27 de junho, com dados sobre 13 “bandidos mortos em confrontos com policiais” e cinco feridos que não correriam risco de morte. Porém, o cálculo de 19 mortes vem sendo utilizado pela imprensa e foi citado pelo próprio comandante do 16º Batalhão da Polícia Militar (Olaria), coronel Marcus Jardim, na entrevista que me concedeu para esta reportagem. Em dado momento, no entanto, ele disse “mas acredito que morreram bem mais de 19 pessoas naquele dia, imagino que uns 40 tenham morrido nas 10 horas de tiroteio (no sítio da Secretaria de Estado de Segurança do RJ, as 10 horas caem para cinco). Mas acho que os próprios vagabundos esconderam os corpos, para não admitir a derrota. Só que policial morre também – morre menos, mas se o mal vencer sempre o bem, fica difícil”.
Segundo laudo divulgado pela Comissão de Direitos Humanos (CNDH) da Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro (OAB), do dia 2 de maio até agora (28 de julho) teria havido 44 mortos e 84 feridos – muitos deles seriam pessoas sem antecedentes criminais e desarmados.
As polêmicas incursões, aplaudidas de pé por muitos cariocas, sedentos por segurança, e repudiadas por 91% dos moradores locais, segundo pesquisa divulgada esta semana pelo jornal Fazendo Media e o grupo cultural Raízes em Movimento, não podem ser avaliadas por apenas um ângulo. Todas as esferas sociais envolvidas - moradores, policiais, traficantes e imprensa – vivem conflitos e guardam interesses distintos que devem ser analisados cuidadosamente.
Nesta reportagem, procuro alguns desses diferentes ângulos, com o objetivo de avançar um pouco nesse longo caminho para compreender a situação vigente hoje no Complexo do Alemão.
Em vermelho, o caminho que fizemos na Rua Joaquim de Queirós: da Estrada do Itararé na altura da Vila Olímpica (direita) até a quadra onde acontecem os bailes funk na Rua Canitar |
As raízes do Alemão
A história do que hoje é o Complexo do Alemão remonta ao início do século passado, quando o polonês Leonard Kaczmarkiewicz, ao fim da Primeira Guerra Mundial, deixou seu país para instalar-se na região, comprando lotes na Serra da Misericórdia, então área rural da Zona da Leopoldina. Alto, de pele muito branca, a fala carregada de sotaque, não demorou muito para ficar conhecido como “alemão”.
A enorme fazenda começou a ser ocupada no início da década de 50, quando foi desmembrada e passou a ser vendida em lotes a pessoas que procuravam terra barata no subúrbio. Mas, já em 1920, a instalação do Curtume Carioca, na Penha, atraía trabalhadores, que se fixavam ali. Após a abertura da Avenida Brasil, em 1946, a região ganhou grande impulso, com a multiplicação de fábricas de todo tipo.
Na década de 60 houve uma notável intensificação da ida de migrantes nordestinos para o Alemão. O boom demográfico, porém, só se daria nos anos 80, quando o então governador Leonel Brizola autorizou a ocupação das terras e a favela se ramificou e se estendeu, paralelamente à decadência econômica da cidade e ao fechamento das indústrias.
Somente em 1993 a área foi decretada bairro. Segundo levantamento feito pela Secretaria Municipal de Habitação em 2003, para um plano de desenvolvimento urbanístico da área, haveria 15 comunidades no Complexo, das quais as mais conhecidas são o Morro do Alemão, a Vila Cruzeiro, a Grota, a Fazendinha, a Nova Brasília, o Morro dos Mineiros e o Morro do Adeus. O Complexo abrange cinco bairros: Inhaúma, Bonsucesso, Ramos, Olaria e Penha.
O tráfico se instala
Como em quase todas as comunidades pobres do Rio de Janeiro, onde é regra a ausência de assistência do Estado e a perspectiva de emprego, as drogas chegaram nas últimas décadas do século XX como opção bastante rentável de trabalho, ainda que ilegal, para milhares de moradores. O tráfico se generalizou rapidamente nos anos 80 e 90, mas a maioria da população das favelas ainda é constituída por trabalhadores sem ligação com o crime, e é sempre importante lembrar que os que mais lucram com o negócio estão bem longe dos morros.
Com o tráfico cada vez mais forte, organizado e bem paramentado, a polícia gradualmente especializou-se em estratégias de combate à atividade, armando-se cada vez mais e afastando qualquer linha de pensamento que não fosse a de eliminar os agentes responsáveis pelas organizações que chefiam o crime doesse a quem doesse. Para muitos, terminou por igualar-se aos traficantes em crueldade e truculência. Para outros, faz apenas o que deve ser feito para combater a criminalidade.
Uma rápida busca na internet revela vários conflitos marcantes na história mais recente das comunidades do Complexo, e certamente quem mais sofre com tal conjuntura é a população da favela.
A operação nossa de cada dia
Em 2 de maio de 2007, um dia após a morte de dois soldados do Batalhão da PM de Rocha Miranda (Marco Antônio Ribeiro Vieira e Marcus André Lopes da Silva, assassinados, dizem as reportagens sobre o caso, com mais de 30 tiros), o secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, traçou um plano de ação mobilizando Polícia Militar, Polícia Civil e Força Nacional de Segurança, esta na contenção ao redor do Complexo. Após o fim da operação, o Estado divulgou a apreensão de 14 armas, 50 explosivos e munição de 2 mil balas, supostamente em poder dos traficantes. Os XV Jogos Pan-Americanos, que se realizariam em seguida, foram motivo para trazer ainda mais reforços para a segurança da cidade: efetivos de vários batalhões do interior ocuparam pontos considerados estratégicos para assegurar a tranquilidade durante o evento. Enquanto isso, o cerco ao Alemão seguiu firme e forte.
Fala o morador
Para Brito Andrade (nome fictício), estudante de 20 anos que mora no Morro dos Mineiros desde que nasceu, as denúncias feitas pela CNDH da OAB procedem, e a mídia distorce as ações dos policiais. “A imprensa divulga que os policiais ‘limparam’ o morro, ou, como li esses dias, ‘passaram o rodo’, usando de sensacionalismo para vender seu peixe, mas não apura a fundo, não mostra o lado dos moradores, como as crianças estão ficando traumatizadas, a educação prejudicada... É pura estratégia comercial”. Brito conhece pessoas que foram mortas ou feridas. “Um amigo estava em casa e foi atingido no braço. Quando a mãe foi levá-lo ao hospital, ele foi preso como delinquente pela polícia. Depois, com ajuda de ONGs, conseguiu sair, mas está sendo processado pela PM. Conheço também dois que levaram balas perdidas na cabeça, mas foram para o hospital e já tiveram alta. É importante lembrar que isso está ‘bombando’ na mídia agora, mas desde sempre houve incursões da PM no morro”. No entanto, nenhuma operação anterior se compara à comandada pelo secretário Beltrame, nem em número de policiais envolvidos, nem no saldo de mortos e feridos.
Fala o comandante
Na visão de Marcus Jardim, 44 anos de idade e 25 de Polícia Militar, os jornais que criticam as ações da PM também distorcem os fatos quando, ao citar as 19 mortes da chamada megaoperação do dia 27 de junho, não comentam “as quase dez horas de confronto entre polícia e bandidos. Não falam da dificuldade e do estresse que existe num embate desses. Não citam que mais ou menos metade dos 19 mortos tinham passagem pela polícia”. Quando pergunto se nove ou dez civis mortos sem antecedentes criminais não são um número muito alto, Jardim responde que “são todos marginais da lei, com o mesmo potencial. A diferença é que uns tinham passagem pela polícia, outros não”. Mais tarde, o entrevistado se retrata, contradizendo-se: “Mas a maioria no morro é gente de bem. Vamos botar aí que 99,5% do morro é gente trabalhadora que não tem nada a ver com o tráfico”.
O comandante também ressalta o sensacionalismo da imprensa, que muitas vezes “aumenta os fatos e distorce as ações da polícia”. Para ele, os jornais que só agridem a PM e não criticam com a mesma intensidade a prefeitura, por exemplo, “não têm compromisso com a verdade, e geralmente têm interesses na publicidade do governo municipal”.
Fala o repórter
Para um repórter do Jornal do Brasil que vamos chamar de Henrique, o jornalista fica em situação delicada: “no local, somos vistos como inimigos pelos traficantes, a população quase não fala, a polícia tem um certo receio... ninguém gosta da imprensa nessa situação, é bem difícil apurar”.
Se a população teme dar depoimentos e sofrer represálias, do ponto de vista da polícia as relações com a imprensa são tranquilas: “Damos o melhor tratamento possível. A PM adora informar uma ocorrência boa, uma prisão... E quando somos atacados com críticas, temos que aceitar”, diz Jardim.
A simpatia entre órgãos de segurança pública e imprensa parece recíproca: apesar de lamentar os 19 mortos do dia 27 assim como o elevado número geral de vítimas, Henrique se diz favorável aos métodos do secretário Beltrame. “Eu particularmente o considero um homem honesto, sério. Apoio o trabalho que vem sendo feito neste governo, mas não as últimas operações no Alemão. Claro que não acho bom 19 pessoas morrerem em um dia, mas ele é bem intencionado”.
Ainda segundo o comandante, o tratamento dispensado aos moradores também é excelente. “Essa história de que o Caveirão chega atirando no morro é mentira. Ele existe para salvar vidas, mas precisa ser blindado, porque você toma tiro toda hora, de todo lado. O PM precisa entrar lá numa caixa blindada, senão morre. Mas o Bope não mata ninguém por matar.”
A “caveira”em ação
No entanto, quando comento que o Batalhão utiliza músicas de apelo à crueldade em seus treinamentos, Jardim faz questão de cantarolar o refrão da mais famosa delas:
Homem de preto, qual é sua missão?
Entrar na favela e deixar corpo no chão.
Depois ri e diz, “mas não é assim não, a polícia serve para proteger”. Na íntegra, a música, um funk amplamente divulgado pela internet diz o seguinte: Veja aqui
Letra:
E aí? Mandou me chamar? (voz e risadas
sinistras)
Bope vai te pegar
Bope vai te pegar
Homem de preto, qual é sua missão?
Entrar pela favela e deixar corpo no chão
Homem de preto, o que é que você faz?
Eu faço coisas que assustam o Satanás
Bope vai te pegar (pega daqui, pega de lá)
Bope vai te pegar (pega daqui, pega de lá)
Cachorro latindo, criança chorando,
vagabundo vazando (corre! corre! corre!)
É o Bope chegando
É o BOPE matando
Tropa de elite, osso duro de roer
Pega um, pega geral, também vai pegar você!
Tropa de elite, osso duro de roer
Pega um, pega geral, também vai pegar você!
Bate com o pé, bate com a mão, bate com o pau,
o BOPE é mau, pega geral! (sons de tiros ao fundo)
Se para Jardim o papel da polícia é a defesa da comunidade, a visão do morador Brito Andrade é um pouco diferente: “As coisas de valor que temos em casa, dinheiro, temos que esconder tudo, porque o PM pode entrar e levar. Acontece muito. Fora que uma operação como essa muda toda a rotina dos moradores, a gente ouve o barulho dos tiros e não consegue dormir direito, fica em dúvida se vai trabalhar, se vai estudar. Pela televisão não ficamos sabendo de nada com certeza, já que, sempre que falam do conflito, repetem cenas antigas. Quando saímos do morro vemos vários soldados da FNS com fuzis apontados para nossa cara, isso é muito ruim.
Sei que há policiais cumprindo ordens, honestos, mas em geral são muito violentos, sim. O trabalhador é xingado, leva tapa na cara. O que está acontecendo é uma demonstração de poderio do Estado, mas depois de dois meses nunca apresentam presos, só números de mortos”.
As consequências para os moradores
De fato, nos últimos meses quase 5 mil crianças do Complexo perderam muitas horas de aula nos colégios da região, e nos dias mais críticos, muitos moradores evitam sair para trabalhar com medo de tiroteios. O comércio, especialmente das áreas mais “quentes”, como a Rua Canitar, também teve bastante prejuízo, obrigado a fechar as portas nos dias mais violentos, por questões de segurança.
Para Marcus Jardim, a população “já sabe que precisa adotar uma postura de defesa. Sair menos, por exemplo. Mas isso é normal, a polícia também adota defesas”.
O comandante alega que os laudos publicados pela Comissão da OAB são
“mentirosos”. Que “atirar pelas costas não caracteriza um erro, um crime. Se o bandido atira e corre, atira e corre, você não está com um alvo parado na sua frente, não vai esperar que ele se vire novamente para atirar”.
Fala o advogado
Para João Tancredo, advogado de 50 anos de vida e 20 de carreira, ex-presidente da Comissão da OAB e um dos responsáveis pelo laudo divulgado, as ações da PM têm vários aspectos suspeitos. “Houve mais de um caso onde todos os tiros foram dados nas costas, sempre na região do tórax e da cabeça, onde ficam órgãos vitais – características de execução. Havia quatro corpos com o que chamamos tatuagem de pólvora na pele. Esse tipo de marca só acontece quando o tiro é dado à queima roupa. Normalmente, mesmo que o tiro seja dado próximo à vítima, a tatuagem fica na roupa, mas se é na pele, não há como negar. Agora, muitos corpos chegavam sem roupas. Nas fotos, estão vestidos, nos laudos do IML, constam como nus”.
Mas sem roupa ou só sem camisa? Muitos andam sem camisa ali...
“Nus, sem roupa nenhuma. Ou seja: nesse trajeto do local da morte até o IML, houve uma intervenção, alguém os despiu. Nós deduzimos que foi a polícia, para complicar a perícia”.
Sinais de execução
O advogado, bem como os médicos peritos que fizeram as investigações, inclusive de balística, não fecha questão sobre as execuções. “Os peritos não tiveram acesso aos corpos, que já estavam em estado de decomposição quando fomos ao Alemão, dia 30 de junho. Só tiveram acesso às fotos e às marcas das balas, muitas caracterizando execução”.
Mas como funciona uma análise de balística nesses casos?
“A população nos ajudou, mostrou onde se deram as mortes. Muitos deles tiveram que lavar o sangue que ficou dos mortos no chão, um absurdo. Quando uma bala entra pela parede em determinada altura com dada inclinação e sai com a mesma inclinação, de 45º, caracteriza-se execução, porque a vítima só poderia estar sentada ou deitada, portanto sem defesa”.
Tancredo ainda levanta outras acusações, como a questão das armas utilizadas por alguns bandidos serem a princípio de uso exclusivo da polícia, o que denunciaria a venda desse armamento pelos órgãos de segurança. Ele também questiona a ideia de ter ou não antecedentes criminais influenciar tanto o combate ao crime: “Há quem tenha passado pela cadeia, cumprido pena e se ressocializado. Assim como há criminosos que nunca são presos, como vários políticos corruptos que vemos soltos por aí, mas já cometeram crimes horríveis. Não quer dizer muita coisa ter ficha ou não”.
Cenas de humilhação
Brito Andrade lembra que “a polícia, quando foi criada, tinha o objetivo de proteger a propriedade. Mas quando os PMs entram no morro, aquilo que eles veem lá, aquelas casas, está fora dos padrões que eles têm de propriedade. Daí às invasões de residências sem mandado, o desrespeito aos direitos humanos e ao direito de ir e vir. Se você não é bandido, para eles é um desocupado, vagabundo... fico imaginando um morador dizer a um policial isso que vemos nas novelas: ‘só falo na presença do meu advogado!’... se você disser isso a um PM no mínimo vai levar muita porrada”.
Fernanda, minha guia, conta que já viu uma mulher ser espancada em um beco por ser confundida com “mulher de bandido” pelos PMs. “Ela apanhou muito, e ainda levaram o celular dela. Roubaram mesmo. Ela contou chorando muito que eles diziam ‘tu é mulher de bandido que eu sei!’ e batiam. Ficou toda roxa.” Para Fernanda, uma das distorções que a mídia faz com frequência é dizer que os moradores sofrem a violência dos traficantes e da PM. “Traficante não agride morador, não tem por quê fazer isso! A gente tem medo é da polícia mesmo, aqui o inimigo de todo mundo é a polícia”.
As dúvidas do jornalista
Ainda sobre o laudo da OAB, o jornalista Henrique diz que é difícil avaliar as informações expostas: “Essa história do laudo é um pouco esquisita. É complicado, porque nem polícia nem o perito da OAB têm provas. A visão da OAB é uma visão particular. É possível levar tiros pelas costas em combate, por exemplo. Acho que as duas versões podem estar certas, não há como saber”. O repórter fala sobre a dificuldade em abordar o aspecto humano em suas matérias. “A maioria dos jornais do Rio adotou uma linha editorial mais técnica, sobre a questão da inteligência, apoiando editorialmente a PM. Eu fui o único repórter de que tenho notícia que entrou lá, tentou conversar com a população, viu esse lado mais humano da situação. Mas você vai à associação de moradores e as pessoas têm medo de falar, não prestam queixas. E se você chega com um material falando mais sobre os moradores na redação, eles simplesmente não usam, então você acaba deixando de apurar isso. Já os jornais de São Paulo adotam uma posição mais humanista”.
Os métodos
Sabemos um pouco sobre o resultado do trabalho de cada profissional envolvido nos fatos citados, mas como agem quando estão em campo? Como é feita a reportagem, a captura de suspeitos, a perícia? “O repórter acompanha tudo. Claro que não temos acesso à versão dos traficantes, e a população fala muito pouco com a imprensa, então temos mais contato com a versão da polícia, os dados oficiais. Acompanhamos o trabalho deles o dia todo, de ficar ouvindo o rádio transmissor da PM, até ir ao hospital. Vamos ao Alemão mais quando tem tiroteio, o que acontecia mais no início da operação”, conta Henrique.
Segundo o comandante Jardim, a busca aos suspeitos “é feita a partir de denúncias que recebemos, e do serviço de inteligência, ou seja, tudo que utilizamos para obter conhecimento sobre o local e os indivíduos”. Já a perícia realizada dia 30 de junho pela CNDH da OAB, segundo Tancredo, “foi feita com visitas ao local, entrevistas a muitos moradores, fotografias, conversas com quatro médicos peritos. A maioria deles não quis se identificar, mas o Dr. Oílton Larocca Quinto, mesmo sendo funcionário público, aceitou assinar os laudos e fez tudo gratuitamente”.
As pedras de todos os caminhos
Cada entrevistado falou sobre as mazelas de ser morador de favela, policial, repórter ou investigador. Brito Andrade contou que, em tempos mais calmos, sabe que há violência no Alemão, mas a maior violência vem de fora dali: “faço pré-vestibular em escola particular. Uma vez, uma menina que sempre conversava comigo perguntou onde eu morava. Quando contei, ela se chocou: ‘Você tá de sacanagem com a minha cara!?’. Quando eu disse que não, que morava no Alemão mesmo, ela só se virou pra frente e nunca mais falou comigo. Isso machuca muito, magoa mesmo. Ouvir piadinha de telefonista quando digo que um cartão de banco que pedi e foi extraviado ‘Onde o senhor mora? No Alemão? Ah, só podia extraviar mesmo!’... essa é uma das maiores violências”.
Perguntado sobre o que mudaria em suas condições de trabalho, Henrique não demora a falar em segurança. O jornal para o qual escreve não oferece logística adequada: “Tem pouco carro, pouco fotógrafo, pouco tudo. Não recebemos nem colete à prova de balas. Quando o conflito se intensifica, temos que esperar uma hora depois do clímax para entrar e apurar o que houve”.
Já o comandante Jardim se queixa dos baixos salários, “R$ 900 para quem entra na PM”, além da falta de prestígio dado pelas autoridades. “Não é possível um policial trabalhar com uma situação de tanto estresse e ganhar tão pouco”. Ele mesmo vai poucas vezes ao Alemão, pois “o comandante não pode estar indo toda hora à linha de tiro, ele precisa dar suporte, instruir, apoiar, prestigiar o bom policial.” Sobre como se dá o prestígio policial, ele diz: “através de elogios, condecorações quando for o caso”.
E quando é o caso, comandante? “Quando ele realiza bem uma operação, quando prende...” Quando mata? “Quando mata, se estiver dentro das licitudes da Lei... mas quando o PM mata é processado, passa por apuração, ninguém aqui mata e fica por isso mesmo”. Questionado sobre quem julga os PMs, o comandante explica: “Um conselho da PM, da Polícia Civil também, mas com isenção. Se você vier à prisão da PM, temos mais de 40 policiais presos aqui, por exemplo”.
João Tancredo ressalta: “Temos que levar em conta a rotina de estresse absurdo em que vive um policial. Uma pesquisa publicada recentemente classificou policiais e controladores de voo como os profissionais que mais sofrem de estresse. Por outro lado, um policial precisa muito temer o erro. Para isso, não só ele como sua família toda precisam ser muito bem atendidos pelo Estado: ter um bom plano de saúde, ótimo seguro de vida etc, etc, etc, as melhores condições para ele pensar muitas vezes antes de se deixar corromper, para temer a perda disso tudo, mesmo. E claro, é preciso afastar os maus policiais.”
Pesquisas aceitas, pesquisas rejeitadas
Para o comandante Jardim, a população está satisfeita com o trabalho que a corporação vem fazendo: “85% da população aprova, ouvi na Rádio Globo”. Falo sobre os dados da pesquisa do Raízes em Movimento, com rejeição de 91% dos moradores à megaoperação, e ele responde: “Então é mentirosa, não acredito nessa pesquisa. Esse tipo de pesquisa é um desserviço à população. Desde que tudo começou, não recebemos nenhuma queixa oficial sobre a polícia pelos moradores.” Não seria por medo? “Medo de quê?!” De uma retaliação... “Isso não existe. A polícia é feita para defender o cidadão”.
João Tancredo vê a reação da população carioca em geral como efeito direto da cobertura da mídia. “Se o grande público tivesse acesso a informações sobre as mortes de civis que não tiveram absolutamente nada a ver com o tráfico, não estaria tão entusiasmado. A imprensa está claramente fazendo uma cobertura interessada em elogiar a atuação dos governos locais. A mídia de São Paulo já é bem mais humanista. Foi um jornalista da Folha, inclusive, quem teve acesso ao laudo da OAB em primeira mão na imprensa. E fez bom uso dele, ainda que não planejado por nós, foi muito competente”.
Para Henrique, a oferta é ampla, a questão é a escolha: “O JB fala do lado mais operacional, da inteligência da PM. O leitor sente falta do lado humano? Ele tem outros jornais para ler”.
Se as drogas são o xis da questão...
...não seria melhor legalizá-las? Na opinião do comandante Marcus Jardim, “as drogas são a causa de tudo isso que está aí. O Brasil não tem condições de legalizar, não tem cultura para isso. Sem contar os malefícios à saúde do usuário”. Brito é mais reticente, mas também discorda: “Não é a resposta, acho que seria mais uma guerra”.
Henrique acredita que, “legalizando as drogas, em tese a violência diminui. As drogas seriam vendidas no comércio, normalmente, com o cara que controlaria aquilo ali usando o dinheiro para sustentar sua família. Na prática, é bem mais complexo que isso. Mas acredito que a legalização seja um passo a ser dado”.
Todos, sem exceção, alegam que a educação e os serviços essenciais do Estado, como saúde, saneamento básico, lazer, moradia, políticas públicas, além de emprego, precisam subir o morro e andar lado a lado com a segurança. É consenso que só a repressão policial não pode mudar uma sociedade para melhor. Marcus Jardim ainda acrescenta: “tem que haver controle de natalidade também, não podem ter filhos. Um desses delinquentes morreu deixando cinco adolescentes grávidas, quer dizer, crianças sem família, coitadas, sementes do mal”.
Fala o chefe de Estado
Desde o início das operações no Complexo do Alemão, em 2 de maio, o presidente Luís Inácio Lula da Silva não tem poupado elogios ao secretário de segurança, José Mariano Beltrame, e a todos os outros envolvidos na repressão ao crime. Recentemente, ao fazer um discurso sobre o PAC, Programa de Aceleração do Crescimento, Lula anunciou o investimento de R$ 3,8 bilhões no Rio de Janeiro, incluindo programas sociais em vários complexos de favelas da cidade. Sobre a megaoperação, o presidente declarou: “Tem gente que acha que é possível enfrentar a bandidagem com pétalas de rosa ou jogando pó-de-arroz. A gente tem que enfrentá-los sabendo que muitas vezes eles estão mais preparados do que a polícia, com armas mais sofisticadas. A gente tem que enfrentá-los sabendo que a maioria do povo que trabalha lá é de gente trabalhadora, de bem, que não pode ficar refém de uma minoria”.
Curiosa sobre a repercussão da declaração excêntrica, perguntei a cada entrevistado como via a atitude. Seguem as respostas:
Brito Andrade: “Isso foi o cúmulo do absurdo. A mídia só pensa em vender, e uma frase dessas vende muito. Mas o que está acontecendo de verdade no cotidiano do morador não aparece”.
Henrique: “O Lula adora essas frases de efeito. Eu particularmente não dou a mínima. Agora, é lógico que não se combate crime com pétalas de rosas, isso é óbvio”.
Marcus Jardim: “O presidente foi muito feliz em falar isso, porque o Alemão é um conjunto de favelas enorme, de Inhaúma até a Penha: marginais armados, sanguinários, que querem assassinar, traficar, roubar; esse tipo de gente não tem como: se o policial não tiver um fuzil na mão, morre”.
João Tancredo: “Essa foi de uma infelicidade enorme e extrema irresponsabilidade. É coisa de quem desconhece a situação da criminalidade no Brasil. É a criminalização da miséria. E quando se trata do Renan Calheiros, ele diz que até que se prove o contrário, todos são inocentes (risos)”.
Depois de seis meses à frente das investigações na CNDH, Tancredo foi exonerado pela OAB do cargo de presidência do grupo. A instituição alegou que, para a Comissão atuar, seria necessário que as execuções fossem comprovadas. Para o advogado, no entanto, o grupo tinha justamente a função de questionar a versão oficial, se esta se desse em sentido contrário ao que inúmeros moradores e organizações da favela vinham argumentando. No dia 26 de julho, outros 42 membros da comissão abandonaram-na em sinal de protesto contra a exoneração de Tancredo. Ele diz que um novo coletivo está sendo articulado, dessa vez em defesa dos que defendem os direitos humanos, já que vários advogados e membros da sociedade civil foram ameaçados depois das denúncias contra as operações da PM.
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