UPPs: a fantasia da pacificação na “cidade olímpica”

22 de novembro de 2010

O antropólogo Roberto Kant acredita
que as UPP's podem ampliar a
segregação social no Rio


Como é possível pacificar o que é necessariamente conflituoso? Ao apontar esta contradição conceitual no projeto das Unidades de Polícia Pacificadora, o antropólogo Roberto Kant de Lima indicou o caminho para uma crítica à fantasia da cidade ideal e harmoniosa que costuma habitar a mente das pessoas comuns e é sistematicamente estimulada por governos e meios de comunicação.

O questionamento foi um dos pontos altos do debate que reuniu também o deputado Marcelo Freixo, do PSOL, presidente da CPI das Milícias, e o tenente-coronel Robson Rodrigues, coordenador das UPPs, e que lotou o salão nobre da Faculdade de Direito da UFF na noite de 3 de novembro. Freixo associou a ação governamental ao projeto mais amplo de construção da “cidade olímpica” para os Jogos de 2016 e contestou a ideia de que a cidade esteja pacificada com uma polícia que mata três pessoas por dia e é também a que mais morre: “são homens de preto matando outros pretos, quase todos pretos”.

O debate sobre as UPPs foi organizado pelo coletivo de estudantes Direito em Questão, da UFF. Estudioso das relações entre o direito e a segurança pública, Kant insistiu em que a polícia, numa sociedade democrática, deve ter o papel de administrar conflitos. Mas reconheceu a dificuldade dessa atuação numa sociedade em que a cidadania, quando existe, é para muito poucos: “Quem são os cidadãos no Brasil? São iguais ou há quem, diante de certos indivíduos, não seja considerado cidadão e não possua os mesmos direitos?”. Por isso, o antropólogo considera que as UPPs, ao contrário do que vem sendo propagandeado, podem ajudar a ampliar a segregação social no Rio de Janeiro.

Marcelo Freixo iniciou seu discurso já com uma polêmica, ao vincular o projeto das UPPs ao de “cidade olímpica”. Reconheceu que a maioria dos moradores das favelas que receberam essas unidades policiais aprova o projeto, porque a referência anterior deles era o convívio com os traficantes: “Entre a guerra e a paz armada, é lógico que preferem a paz armada”, afirmou, apontando esse apoio como um dos motivos para a vitória de Sérgio Cabral no primeiro turno das eleições para governador.

O mapa das UPPs


Deputado Marcelo Freixo associa a política das UPP's
aos Jogos Olímpicos de 2016 no Rio
O deputado considera, entretanto, que o debate não pode ser feito a partir do ponto de vista do morador: Segundo ele, entender as UPPs é entender a concepção de cidade que surge quando o Rio vence a disputa para sediar os Jogos Olímpicos de 2016. O mapa de implantação das UPPs confirmaria essa hipótese: o corredor hoteleiro da Zona Sul, a zona portuária, o entorno do Maracanã e a Cidade de Deus, única comunidade da Zona Oeste fora da atuação das milícias. Freixo argumenta que, no projeto de cidade olímpica, esses territórios voltam a despertar o interesse dos investidores e, por isso, exigem cuidados especiais do governo quanto à segurança. Associou também o programa das UPPs com outras medidas de segregação, como a instalação das “barreiras acústicas” – que ele chamou de “tapa favela” –que hoje separam a Maré da Linha Vermelha: “O Estado nunca se preocupou com o saneamento básico desses moradores, agora se preocupa com seus tímpanos?”.

O parlamentar disse ainda que a qualidade do trabalho da polícia é proporcional a três fatores: a proximidade com a comunidade, a valorização do profissional e o controle por parte da Corregedoria e Ouvidoria. Porém, “o salário do policial daqui é o segundo menor do Brasil, e a Ouvidoria da polícia é surda. Tem um problema crônico”, ironizou. Rejeitou a ideia de pacificação com veemência: “Qual é a cidade em que a polícia, oficialmente, mata três pessoas por dia e o governador vai à TV afirmar que a cidade está pacificada?”.

A defesa do projeto


O tenente-coronel Robson Rodrigues (à direita) aponta
os resultados positivos das UPP's
Já o tenente-coronel Robson Rodrigues defendeu as UPPs como um incentivo ao trabalho policial preventivo: segundo ele, trata-se de “um projeto de segurança nunca antes implementado, e que vem dando ótimos resultados”. Disse que a UPP atua em cenários de “violência letal e explosiva”, que exige, inicialmente, a ocupação da área pelo Bope e pelo Batalhão de Choque da PM e, em seguida, o estabelecimento de uma rede de confiança na comunidade, para garantir o controle social da região e a repressão ao tráfico de armas e drogas. Mas não esclareceu a contestação de Freixo: se é para atuar em áreas conflagradas, por que as UPPs não se instalam em locais dominados pela milícia?

O protesto contra a “remoção branca”


Edna protesta contra a formalização da vida nas favelas
Na plateia, destacou-se a presença de uma mulher identificada apenas como Edna, moradora da Vila do Ipiranga, em Niterói, que alertou para outra consequência das UPPs: a formalização da vida nas favelas, com a necessidade de pagamento integral de serviços básicos como água e luz, uma despesa excessiva para o nível de renda dos moradores. Citou casos de pessoas que tiveram de deixar suas casas e ir morar mais longe porque não puderam arcar com essas taxas. E concluiu, arrancando demorados aplausos do público: “Nós não descemos a favela apenas para trabalhar na casa de vocês, nós estamos aqui para dizer que estamos de olho nos nossos direitos. Não somos bobos. Remoção branca, não”.

Trabalharam na construção desta matéria os alunos: Fernanda Costantino, Jéssica Pietrani, Leonardo Freire, Letícia Bandeira de Castro, Liz Tibau, Luíza Barata, Mariana Pitasse Fragoso, Roberta Thomaz, Rômulo Quadra, Thamiris de Paiva Alves.

 Fotos retiradas do blog do coletivo de estudantes Direito em Questão, acessado em 22 de novembro de 2010.


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