31 de outubro de 2010
Foto: Greg Salibian/Folha Imagem |
Jornal O Globo, 30 de outubro:
Karla Monteiro - Enviada especial - SÃO PAULO:
O prédio é decadente, cor de fuligem, com elevadores velhos e corredores escuros. Fica bem no Centro de São Paulo.
E abriga o Instituto de Arquitetos do Brasil, o IAB. No quinto andar, há mais de 25 anos, numa sala espaçosa e abarrotada de arquivos cuja única decoração é um quadro-negro, mora o pensamento de Paulo Mendes da Rocha.
Não é nada fácil acompanhar o trotar do jovial senhor de 82 anos, nascido em Vitória, no Espírito Santo, e criado em São Paulo; duas esposas, cinco filhos, sete netos e uma bisneta.
Atrás do respeitável bigode grisalho, há energia para falar de arquitetura por horas seguidas, sempre com um cigarrinho aceso entre os dedos amarelados pela nicotina. O raciocínio dá muitas voltas. De repente, envereda pela literatura, com a citação de um poema de Borges. Para logo depois viajar na descrição de uma pintura ou mergulhar em conceitos filosóficos. O autor de obras memoráveis como o Museu Brasileiro da Escultura (Mube), construído em 1986 nos Jardins, na capital paulista, é um sujeito que definitivamente não veio ao mundo para se conformar. Pelo contrário. Para Paulo, a arquitetura é a salvação do planeta. O antídoto para a “degenerescência”.
"Nada dura para sempre. Ninguém nunca vai construir a cidade definitiva. É estimulante quando alguém olha para uma obra sua e fala que aquilo vai ficar. Significa que a sedução almejada no projeto aconteceu. Mas não é verdade. Não vai permanecer."
"A cidade do futuro não é previsível", diz Paulo.
"Há hoje uma tentativa de se livrar dos arquitetos, confinando-os à posição profissional, de visão medieval, em que você tem que cumprir o que o patrão manda. A arquitetura, porém, é uma forma peculiar de conhecimento. Envolve filosofia, linguística, matemática, urbanismo, sociologia, arte, técnica... A função do arquiteto é transformar esse indizível em coisa. Não como solução definitiva.
Mas para o andamento na direção positiva, para alimentar um discurso. Muita coisa anda mal. Não por atraso ou desconhecimento. Mas por degenerescência.Eu penso assim."
Projetos no exterior
O pensamento de Paulo roda o mundo. Ele acabou de entregar ao governo espanhol o maior projeto de habitação popular a ser construído em Madri.
O arquiteto, aliás, defende uma tese alarmista sobre a divisão das cidades em “habitação de pobre e habitação de rico”.
Agora está trabalhando no projeto do Museu Nacional dos Coches, em Lisboa, também encomenda do governo local, uma obra para interferir em toda orla do Rio Tejo. A ideia é fazer do museu um espaço flutuante que ao mesmo tempo abrigue a mais importante coleção de carruagens da Europa e sirva de integração da cidade com o rio. No Brasil, Paulo está realizando na sua terra natal, Vitória, o projeto de revitalização do porto. E, nos últimos anos, tem sido chamado para “desenfear” São Paulo, mesmo que a conta-gotas: reforma da Pinacoteca do Estado, em 1999; reforma do Centro Cultural da Fiesp, no mesmo ano; construção da cobertura da Galeria Prestes Maia, na Praça do Patriarca, centro nervoso da cidade, em 2002; intervenção e reforma da Estação da Luz, em 2006; e construção, também em 2006, do Museu da Língua Portuguesa.
Ainda em 2006, o sarcástico e divertido senhor ganhou o prêmio Pritzker, o mais importante da arquitetura mundial, pelo conjunto de sua obra.
"Eu posso falar o que eu quiser. Não faço questão de ter razão. Hoje você não pode vender um pedaço do planeta para o cara fazer uma casa. Eu não faço casas. A casa contemporânea é vertical. Outra questão é a qualidade das habitações. Existe quilowatt de pobre e de rico? Água para pobre e para rico? A qualidade da habitação tem que estar ligada à necessidade. Contemporâneo é compreender outro tipo de conforto: morar perto do trabalho, facilidade de transporte, proximidade dos lugares que frequenta", diz Paulo. "Não entendo alguém comprar um apartamento com uma varanda gourmet."
"Em São Paulo, estão fazendo prédios de 25 andares com áreas de churrasco. Se todo mundo assar carne ao mesmo tempo, vira um gigante bife armênio. Comer churrasco escondido na varanda é ridículo. Usar o carro próprio para ir ao trabalho é ridículo. As pessoas são ridículas.
A essência das cidades é o encontro. Deveriam proibir por lei condomínios fechados. O medo é o ovo da serpente."
E segue no seu “monólogo”: "Vivemos uma revisão crítica da política colonial. Não como quem resmunga, mas como quem reconsidera, do ponto de vista da construção de um mundo possível. A França não sabe o que fazer com os argelinos. A Espanha está lidando com os marroquinos. Nós, com os favelados.
Ninguém sabe se discrimina, se joga o povo nos arrabaldes ou se toma uma providência mirando um futuro pacífico. Isso tem a ver com pensar a cidade, com o conceito de metrópole. A questão fundamental, para mim, é evitar o desastre."
E, para arrematar, uma ode ao ócio, ao encontro, à vida. Paulo confessa que o que mais adora na vida é um uisquinho no boteco ao fim do expediente: — Qual o desafio da arquitetura contemporânea? Propiciar a coisa mais importante da vida, o acaso. Se você desce para comprar jornal e encontra um amigo, vai acabar num boteco.
Se você mora perto do metrô, pode sair do trabalho e beber um uisquinho. Não tem que pegar trânsito. A cidade do futuro precisa ser pensada assim: a arquitetura criando tempo livre e condição para o imprevisível.
Paulo bate a mão no bolso da camisa e percebe que está sem cigarros. Levanta-se para procurar um maço novo, perguntando se “a conversa está chata”. No velho escritório, somente uma secretária. O arquiteto não gosta de “ser uma empresa”. Então prefere o jeito contemporâneo de trabalhar: terceiriza. Quando surge uma nova obra, ele se associa a um escritório. E, se o projeto é fora do Brasil, arruma um time local. Paulo não pensa “aos pedaços”. Ele concentra todos os detalhes do projeto, dos cálculos de fundação aos pormenores.
E se organiza para dividir o bolo com a turma que rala para fazer o que os arquitetos chamam de “detalhar projeto”. São muitos os profissionais, brasileiros e estrangeiros, que estagiaram no escritório de Paulo. É uma prática dele: ensinar. Afinal, foi professor da FAU, a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, até os 70 anos. Foi lá, como professor do time de João Batista Vilanova Artigas, que ajudou a construir o pensamento que ficou conhecido como Escola Paulista de Arquitetura.
"Fui estagiário do Paulinho no século passado. Ele é um dos raros momentos de clareza e precisão da arquitetura. A visão dele é muito específica. E a realização prática dessa visão é sempre linda, de grande desenvoltura. São obras monumentais marcadas pela singeleza. Sua ação plástica é orientadora",diz o escultor paulistano José Resende. "Poucos arquitetos terão a longevidade do Paulinho."
"Por ter sido professor, ele é muito generoso com os jovens. Eu era sempre convocado para uma conversa conceitual. Isso me ensinou a pensar."
O arquiteto e ensaísta Guilherme Wisnik também andou pelo quinto andar do IAB: "O Paulo gosta de confrontar o interlocutor, e nos tira sempre da posição confortável, do lugar-comum. Sua obra se destaca no panorama de uma arquitetura que se via reduzida a um pós-modernismo incipiente. Ele mantém a tensão ética e coletivista daquela modernidade ao lado de uma grande liberdade. É um pensador do Brasil através daquilo que Lévi-Strauss chama de 'a ciência do concreto'."
O artista plástico Tunga não trabalhou com Paulo, mas é fã: "Ele pensa a arquitetura como um lugar do público, onde a poesia se revela. Tem a concepção da arquitetura como a excelência do espaço. Ele, aliás, é a elevação do espaço a uma coisa pensada para o encontro. Eu não diria que o Paulo é um dos maiores arquitetos do Brasil. Ele é um dos maiores arquitetos do mundo. Uma inteligência fulgurante, uma percepção completamente diferente de tudo."
Cassado pela ditadura O belga Julien De Smedt, expoente da arquitetura contemporânea, assina embaixo: "Sou fascinado pela capacidade que o Paulo tem de traduzir condições complexas em formas simples e coordenadas, com uma visão quase holística do espaço. É um sonho poder discutir arquitetura com ele."
A trajetória de Paulo é um capítulo da nossa História. Dois anos depois de sair da faculdade, em 1957, ele ganhou um concurso para a construção do Clube Atlético Paulistano. O projeto foi parar na Bienal de São Paulo e faturou o grande prêmio da mostra, chamado na época de Prêmio Presidência da República.
Com isso, caiu na boca do povo. Ficou amigo de arquitetos já badalados, como Affonso Eduardo Reidy e Rino Levi. Em 1959, João Batista Vilanova Artigas o convidou para a FAU. Eram tempos frenéticos na escola.
Paulo diz que nunca foi muito favorável “a essa fratura esquizofrênica” chamada Escola Paulista de Arquitetura. Para ele, “Niemeyer e Reidy são tão construtivistas quanto os paulistanos”.
O que houve, na sua opinião, foi um movimento de divulgação de um novo pensamento. Ativo nas questões políticas da USP, Paulo foi cassado pela ditadura em 1968. E proibido de trabalhar até 1979, quando saiu a anistia. Nesse tempo todo, nunca assinou um projeto.
"Não sei como consegui ficar no Brasil. Trabalhei na sombra", diz Paulo."Quinze dias antes da cassação, eu havia vencido um concurso para construir o pavilhão brasileiro da Feira Internacional de Osaka. Uma celeuma. O Itamaraty teve que me engolir. Exigi o passaporte diplomático, que guardo até hoje. Precisava garantir que poderia voltar. No Japão, aprendi uma coisa: não existe fio de prumo nacional. Conhecimento é conhecimento. Desde então, trabalho no mundo."
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