Crônica

3 de outubro de 2010

Por Evandro Pereira Silva

Na língua tupi, aperana significa caminho falso. O termo foi usado pelos indígenas para denominar a trilha em ascendência sinuosa que culminava no topo de uma elevação de onde se podia ver o mar e, distantes, as ilhas Cagarras. Caminho falso, pois não levava a lugar algum além dali.

A trilha de outrora hoje é rua que serpenteia morro acima rumo aos mirantes do Parque do Penhasco Dois Irmãos. Os silvícolas deram vez a abastados moradores do Alto Leblon que, encastelados em prédios de luxo no início da rua sem saída, valem-se de guarita, cancela, seguranças, vigilância eletrônica e rondas periódicas para evitar incursões das cobiçosas tribos hostis de Vidigal e Rocinha.

Em uma dessas ocas de IPTU elevado vive uma família típica de “alto padrão”: um engenheiro, sua mulher e o filho único, de 4 anos. A babá do menino é Maria Cláudia*, moradora da favela da Chácara do Céu, situada no fim da mesma rua, mais acima, após os mirantes (pouco visitados por turistas e frequentados por casais à noite). Patrões e empregada são quase vizinhos, por assim dizer. Ela cuida da criança desde seu nascimento, anteriormente prestava serviços para os pais da patroa.

Maria Cláudia é mãe de Julia, de 15 anos, e Bruno, de 7. Levanta todo dia por volta de cinco da manhã, toma café e acorda a filha antes de sair para o trabalho. Abre a porta com cuidado para não ranger, arremessa um pão de véspera para o cachorro da família, Pipoca, que dorme em uma casinha improvisada no terreiro que serve de entrada para a casa. Não que isso garanta a fidelidade do vigia, pelo contrário. “Esse vira-lata não me respeita, vive latindo pra mim. Ele gosta é dos meninos, acho que dão pão com mortadela e Coca-Cola pra ele, porque pra eles ele não late.”

Eles, os meninos, distribuem, além de coca, maconha e crack. São os olheiros e soldados do tráfico que têm por hábito ficar logo abaixo de sua janela, local com vista elevada para a escada principal do morro, propício à fuga diante de uma eventual invasão policial ou de traficantes da facção rival. Caminha entre eles de maneira firme. Em sua presença os meninos fazem silêncio, aprumam-se, abaixam fuzis para que não apontem para a trajetória de dona Maria. Um deles tosse na tentativa de reter a fumaça que enche seus pulmões, outro chega a esboçar um “boa noite” atrasado de quem passou a madrugada desperto, na penumbra. Maria Cláudia passa solene, general em revista.

Desce as curvas em zigue-zague, Aperana abaixo, o sol a esta altura já surge tímido por trás dos montes que separam Niterói e Maricá. Passa pela cancela e se dirige à guarita, que parece desocupada naquela semi-escuridão de pós-madrugada. “Bom dia, Tião!”, lança ao vazio. De trás de uma pequena janela com vidro fumê surge a cabeça do vigia Sebastião, que ao vê-la abre um sorriso. “Bom dia!”, retribui ele, enquanto abre a porta do cubículo e salta para fora, lépido.

Maria Cláudia é mãe solteira, menos de 40, braços torneados de quem carrega criança pequena no colo e pernas de quem sobe e desce a ladeira da Aperana mesmo em santos dias. Sebastião é viúvo, menos de 50, não tem filhos mas gostaria de tê-los, negro alto com o porte que a função exige. Ele gosta do uniforme branco dela, ela gosta da farda preta dele. Parece descrição daqueles programas sentimentais de rádio que avançam pela noite, mas Tião não os ouve “porque rádio dá sono e é perigoso dormir em serviço.”
Despedem-se com um aceno de cabeça protocolar, então.

Ao se aproximar do prédio sensores de presença acendem luzes sobre as grades automaticamente. Toca o interfone e não se dá ao trabalho de responder ao “Quem ééé...???” em tom de piada do porteiro, claro que ele sabe quem é. Já a reconheceu em seu monitor.

Outro “bom dia”, esse sem direito a sorriso, antes de subir pelo elevador de serviço.

Uma vez no apartamento ela executa uma ou outra tarefa doméstica além de cuidar do filho do casal. Quando dá, porque, segundo ela, o menino é um espoleta. “Ele não pára, mas é bom assim, sinal de que a criança tem saúde.” Cuida de sua alimentação, banho, roupas, cata brinquedos espalhados pela casa, impede-o de rabiscar as paredes, entre outras traquinagens. Igualmente importante para sua patroa, garante, é fiscalizar o que ele assiste na TV – desenhos violentos são terminantemente proibidos - e não perder os horários do transporte escolar.

O garoto entrou este ano na pré-escola, e seus pais avaliaram rigorosamente diversas empresas que prestam serviços de transporte antes de se decidirem. Escolheram uma com motorista capacitado em direção defensiva e evasiva e duas acompanhantes por veículo, além da previsão de utilização de rastreamento por GPS em breve. Além, é claro, dos itens básicos de sinalização e segurança veiculares previstos em lei.
Por garantia, Cláudia desce com quinze minutos de antecedência. Poderia aguardar na portaria, mas prefere fazê-lo ao lado da guarita, por motivos sabidos. Quando o microônibus chega, Sebastião levanta a cancela para a passagem do veículo e despede-se de Maria Cláudia, que em alguns passos percorre os vinte metros que separam a guarita da entrada do prédio.

Recebe o enfant terrible sempre com um abraço, e vê o motorista engatar a ré e voltar por onde veio. Tião torna a movimentar a cancela.

Quando a patroa retorna do trabalho, à noite, Maria Cláudia é liberada. Geralmente o menino já está dormindo a esta hora. Rebobina todos os procedimentos, elevador de serviço, portão automático, grades, holofotes com sensores de movimentação, protocolo sebastiano na guarita, cancela...

No ziguezaguear da subida fala sobre os filhos, sua preocupação com eles. Desde o momento em que acorda Julia, é ela a responsável por Bruno. Sacode o irmão para despertá-lo com uma mão e escova os dentes com a outra. Reaquece o café enquanto passa manteiga no pão. Dá um jeito em uma mecha de cabelo rebelde, manda Bruno se vestir logo. Antes de sair, uma última checagem visual no caçula e em si mesma, no espelho, “pra ver se não esqueci alguma coisa”, diz a adolescente.

Sua aparência certamente agrada aos meninos, que ficam inquietos quando ela sai de casa. “Nunca disseram nada, têm medo de minha mãe. Mas já reparei alguns olhares”, conta, e uma ponta de vaidade lhe escapa.
Maria Cláudia se exaspera só de pensar. Confia na filha para tomar conta do irmão e de si mesma, embora preferisse cuidar ela própria dos dois. Os meninos são o motivo de seus receios. “São crianças em um mundo de adultos, todos eles”, define. “Julia tem uma cabeça boa, mas sei de uma ou outra amiga dela que já namorou algum deles.” Continua a escalada chutando pedrinhas.

Nessa indefinição os filhos crescem. Estudam no turno da manhã em uma escola municipal, vão e voltam sem pagar passagem no ônibus cujo ponto final fica a dois quarteirões de distância do prédio onde a mãe trabalha. Não trocam uma palavra com ela o dia inteiro, pois o telefone celular vive sem crédito. Visitas ao seu ambiente de trabalho estão fora de questão. À tarde sobem a Aperana, se detêm por alguns minutos à sombra de uma amendoeira no primeiro mirante, recuperam o fôlego e observam o mar.

 “Já falei para não ficarem na rua, eles dizem que não ficam, mas não tem como. Um dia inteiro trancados em casa?”, pergunta, cética e retórica. Nesse ponto do caminho ergue o braço e indica um ponto luminoso em uma das ilhas Cagarras. “O pai deles costumava pescar lá.” Não se estende demais no assunto. Limita-se a um único lamento: “Ele faz falta. Não pra mim, mas pra eles, sim.”

O restante do caminho é pleno de demonstrações da natureza materna. O futuro com que sonha para Julia, as recomendações para Bruno não subir na laje para soltar pipa, ela está magra demais, ele outro dia quebrou o braço quando jogava bola, ela quase se afogou na praia, ele pediu um videogame novo e ainda acredita no Papai Noel. “Queria poder dar tudo o que eles precisam, mas não dá. Eles são bonzinhos e entendem, mas me dói o coração.”

Diante da pergunta sobre o que eles realmente precisam, ela rebate, lúcida: “Eles precisam de mim, assim como eu preciso deles. Queria poder ter mais tempo pra cuidar, pra fazer uma comidinha especial, pra paparicar. Seria bom se eles pudessem ter essa segurança da mãe por perto.”

Estivessem os meninos no lugar de sempre, defronte à sua casa, e a veriam cabisbaixa, general derrotado em batalha. Ao notar sua chegada, Pipoca pôs-se a latir, alerta.

* Os nomes foram alterados por questão de... segurança.

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