6 de dezembro de 2010
Por Max Silva e Rodrigo FrancoIlustrações: Ildo Nascimento
Matéria realizada em julho de 2007
O “tour in Rocinha” é um dos itinerários mais concorridos da Jeeptour, empresa especializada em passeios pelos principais pontos turísticos do Rio de Janeiro. A favela, apresentada como “a maior da América Latina”, atrai em média seis mil visitantes por ano.
Por US$ 34, o turista tem a oportunidade de conhecer “o melhor da Rocinha” – como anuncia o locutor do açougue local Rei das Carnes – aboletado num jipe com capacidade para 12 pessoas. O veículo busca o grupo no hotel e, antes de chegar à comunidade, apresenta grandes cartões postais da cidade, como as praias de Copacabana e Ipanema, a lagoa Rodrigo de Freitas, o Planetário da Gávea e outros. Com o passeio, realizado desde 1992, a Rocinha ganhou status de nova maravilha do Rio.
Na companhia de uma família de finlandeses – um casal e duas adolescentes – e três chilenas, cruzamos o “bairro” em três horas, para observar de que forma a Rocinha é pintada para os turistas, além da reação dos moradores à entrada de “alemães” na comunidade, e da reação desses “alemães” à receptividade local. A Estrada da Gávea nos conduz até a primeira parada do roteiro, numa área conhecida como Vista, nome dado em razão do ângulo privilegiado sobre a cidade e a comunidade.
Seguimos a pé e em poucos metros encontramos Mery Silva, dona de uma barraca de artesanatos confeccionados por idosos e crianças da Rocinha. O preço? “Depende. É pra estrangeiro? Senão, eu até faço um precinho camarada”, diz ela. Em exposição, todos os quadros retratam temas ligados à Rocinha. O dinheiro arrecadado é revertido para o próprio artista-morador. “Assim como eu, muitas pessoas conseguiram construir suas casas e vivem dessa renda”, completa.
Os estrangeiros observaram uma tímida iniciativa de recepcionar melhor o turista, com a abertura de um hotel, no coração da favela, embora a estrutura não inspire muita confiança nem pareça ser das mais seguras. Ainda assim, os visitantes notaram, surpresos, que a Rocinha se assemelha a um bairro pobre como qualquer outro: os moradores vão ao banco, fazem compras, fazem cursos de idiomas e informática sem precisar descer para a “pista”. Há também campus de universidade particular, motel, igrejas e redes de lanchonete. Para se locomover, as opções são diversificadas: ônibus, kombis e serviço de mototáxi, o mais utilizado em função do preço e da comodidade, com solicitação por telefone de prefixo 0800.
A finlandesa Nella Ginman, gerente da American Express em seu país, ficou impressionada com o desenvolvimento do comércio local e reconheceu que imaginava outra realidade da favela. “Eles não são tão pobres quanto esperava. Têm carro, cartão de crédito... a Rocinha é uma pequena cidade, com tudo perto de casa”, observou. “Eles são pobres, mas não miseráveis”, definiu a guia de turismo Linda Ceabra, que liderou o grupo e contou que essa é uma das 700 favelas existentes no Estado.
Antes da segunda parada oficial do roteiro, a guia mostrou a unidade da Cedae responsável pelo abastecimento de água, ao lado do único posto de saúde do bairro. “Mas eles têm água encanada em casa?”, perguntou, espantada, a corretora de imóveis Gabriella Zuñiga. A guia responde: “eles têm até catnet”, disse, traduzindo a gíria improvável para o inglês, sobre ligações clandestinas de TV a cabo, “além de gatos para a eletricidade”. “Eu mesma não tenho televisão paga no Chile!”, surpreendeu-se a turista.
O passeio segue para o ponto mais alto da favela, a laje da dona Maria, de onde é possível contemplar o choque de classes típico do Brasil, que divide o bairro de São Conrado em espigões luxuosos e casas de alvenaria à mostra. Na parte de trás da laje, pode-se visualizar o crescimento desordenado da população e de moradias, com prédios de até 11 andares, alvo frequente de críticas na grande imprensa. A visão deslumbrante valorizou o ponto e levou dona Maria a vender o espaço. Com o dinheiro, ela mudou de endereço adquirindo um imóvel em Pedra de Guaratiba.
A excursão envereda por becos e vielas da Rocinha até chegar ao Largo dos Boiadeiros, maior centro comercial da comunidade. Diz a lenda que antigamente o local era uma fazenda de propriedade de um homem conhecido por Boiadeiro. O lugar abriga uma feira nordestina, açougue, aviário, sacolão e outros tipos de comércio suficientemente exóticos aos olhos dos gringos, que registram os melhores momentos com ajuda de filmadoras e disparam flashes a cada passo.
O Largo dos Boiadeiros desemboca na Avenida Niemeyer, onde está situada a escola de samba Acadêmicos da Rocinha, último ponto do trajeto. Ao som de funk, em vez de samba, os turistas conhecem a quadra e as fantasias que vão ajudar a Rocinha a contar o enredo do carnaval na Marquês de Sapucaí. A guia passou mais detalhes sobre a “festa profana”, em resposta a perguntas curiosas dos visitantes, interessados em um dos maiores símbolos do Brasil no exterior.
A caminhada dos estrangeiros foi acompanhada por olhares curiosos e outros desconfiados de alguns moradores. Apesar disso, a famosa receptividade do brasileiro pôde ser percebida pelo grupo. Acenos, pedidos de fotografia – e de money, money – e muitas tentativas de diálogo marcaram todo o trajeto de três horas de duração. Ainda assim, há quem reclame do movimento. A exploração da Rocinha como ponto turístico divide a opinião dos moradores.
Para André Ribeiro, morador da comunidade e estudante de Administração da UFRJ, o passeio dá um panorama superficial da favela e tem fins meramente comerciais. “A única intenção que as empresas têm com esse passeio é o lucro. Três horas é muito pouco para apresentar a realidade da Rocinha. Isso não traz benefícios sólidos para a comunidade”.
Já o morador Francisco Fonseca aposta que o tour dos gringos pode mudar a imagem da Rocinha na mídia. “Essa visita mostra que não há só violência aqui, como se diz no exterior, e desfaz as inverdades mostradas na televisão”. Francisco diz ser sobrevivente do massacre do Carandiru e mora na comunidade, onde constituiu família e conseguiu trabalho, com ajuda de traficante, como engraxate na Barra da Tijuca. Ele considera positiva a visita dos estrangeiros, porque gera recursos para os moradores. “Eu ainda acho o movimento baixo. Quanto mais gringo, melhor”.
Os críticos do passeio alegam que a Jeeptour e as 66 agências de turismo com as quais a empresa mantém parceria enriquecem explorando a estética da pobreza e dão pouco ou nenhum retorno financeiro à comunidade. O dinheiro reclamado seria empregado em obras de urbanização, como saneamento básico, e na qualificação da mão-de-obra local para o mercado de trabalho, de forma a preencher as lacunas deixadas pelo poder público.
O presidente da Associação de Moradores da Rocinha, William de Oliveira, defende a realização de parcerias entre as empresas que oferecem o serviço e a comunidade, para que ambas as partes tirem proveito deste comércio. “Queremos trabalhar em parceria, até mesmo por uma questão de respeito, porque ninguém entra na casa dos outros sem bater na porta”, disse, acrescentando que já existe um projeto para organizar uma atividade turística no local, a ser operada pelos próprios moradores. “Se houver parceria, não precisaremos criar outro serviço, nem concorrer com as empresas que já estão nessa área”, argumenta William. A proprietária da Jeeptour, Bella Ceabra, rebateu as acusações com a informação de que a maioria dos motoristas da empresa mora na comunidade: “Além disso, atendemos a pedidos da própria associação para levar idosos e estudantes nos nossos passeios. Também geramos renda para os moradores a partir da venda de artesanato e outros itens”.
Por precaução, o jipe só percorreu algumas áreas da Rocinha, mas, de modo geral, não houve situação que violasse a sensação de segurança dos visitantes. O momento de maior tensão foi um acidente envolvendo um mototaxista e uma passageira, que derraparam na Estrada da Gávea e permaneceram no asfalto à espera de socorro. O passeio, comparado a um safári na selva africana, serviu para desfazer o estereótipo do morro carioca.
“Eu não vejo pobreza, eu vejo desordem. Até agora não vi esgoto correndo pela rua ou mau cheiro. Esperava algo mais chocante e diferente das favelas que tem no Chile. O passeio serviu para desmistificar a favela para mim”, declarou Gabriella Zuñiga. Para a finlandesa Nella Ginman, o tour proporcionou à sua família uma reflexão sobre a realidade brasileira, que costuma ser ignorada tanto pelas autoridades públicas quanto pela população.
“Na Finlândia, pagamos muitos impostos, mas o dinheiro é revertido em saúde, educação e moradia, que temos de graça. Aqui, o dinheiro de vocês é levado pela corrupção”, frisou, exibindo o conhecimento que tem sobre o país e a imagem do Brasil junto à comunidade internacional.
Como tudo no Brasil, o passeio acabou em samba.
Comente
Atenção: Após a publicação, seu comentário estará visível na próxima aba: (x) Comentário(s)
Informamos que os comentários podem ser excluídos caso sejam considerados ofensivos, discriminatórios ou não tenham relação com o conteúdo das matérias.