Série Baú de Reportagens

6 de dezembro de 2010
Por João Paulo Gondim Cardozo
Ilustrações: Ildo Nascimento

Matéria realizada em julho de 2007

A van branca saiu do hotel Copacabana Palace pontualmente às nove da manhã da segunda-feira, 23 de julho. O motorista Antônio Alves, 44 anos, morador de Vila Canoas, faz mais uma vez o passeio até sua comunidade. Antes, uma longa escala na Rocinha – “A maior favela da América Latina”, como diz o clichê.

No veículo, o casal lituano Birute Zemgulyté, 32 anos, e Roberta Pogorelis, 23, está ansioso. Os namorados almejam contato “mais genuíno” com o Rio de Janeiro. Há duas semanas no Brasil, tendo passado pela Bahia, têm objetivos distintos. “Trabalho em uma rádio em Vilnius (capital lituana) e soube que a Rocinha possui muitas estações. Quero conhecê-las!”, pretende Zemgulyté, que disse ter ficado impressionado com o morro Dona Marta, em Botafogo. O interesse da estudante de turismo Pogorelis é conhecer modelos alternativos para essa atividade.





Na avenida Princesa Isabel, ainda em Copacabana, a primeira parada. Em frente ao Plaza Copacabana Hotel, embarcam a comerciante alemã Daniele Taschan, 46, e sua filha de 21 anos, Marlene, estudante de inglês. A lotação do Favela Tour está completa.

Criado em 1992 por Marcelo Armstrong, o roteiro turístico é “uma experiência educativa, se os participantes (quase sempre turistas) buscam um olhar mais profundo da sociedade brasileira”, de acordo com o site trilingue (espanhol, francês e inglês), que acrescenta: “o tour apresenta você a uma cidade dentro do Rio: a favela”. Com saídas em Copacabana e Ipanema, o programa realiza duas excursões por dia, de manhã, às 9h, e à tarde, às 14h. O preço é R$65, mas pode custar R$15 para jornalistas.

No caminho, ainda pelas ruas de Copacabana, os turistas ouvem os primeiros comentários do guia, o argentino Andrés Lejarraga*, sobre as favelas e a sociedade brasileira. Apesar de naturalmente curta, a palestra é um bom resumo para leigos. Citando en passant a colonização portuguesa, Andrés fala da chegada de D. João VI ao Rio de Janeiro. Após discorrer brevemente sobre os processos de Independência e proclamação da República, a gênese das favelas, no Morro da Providência, aos fundos do então Ministério da Guerra – hoje Palácio Duque de Caxias – por ex-combatentes da Guerra dos Canudos.



Andrés explica o contexto da guerra, relatada por Euclides da Cunha em Os Sertões, e fala também do processo de remoção das favelas nas décadas de 1950/60, como os casos das favelas do Pinto, Catacumba e Esqueleto, para conjuntos habitacionais em bairros afastados do Centro, na Zona Oeste: Cidade de Deus e Vila Kennedy, entre outros. A simples menção de “City of God” assanhou os turistas, com a certeza de encontrar a atmosfera do filme homônimo reproduzida na Rocinha e na Vila das Canoas.

O clima de excitação era evidente. O relato chegou até o projeto Favela-Bairro. Andrés também acrescentou o básico: as tentativas de inserção dos moradores, as políticas de ampliação de serviços públicos na comunidade e assim por diante.




A aula durou até a entrada da van na Estrada da Gávea. Na subida do morro, outra parada – a primeira da excursão. Em bancas previamente posicionadas, os turistas compram produtos do artesanato local, baseado todo, como não poderia deixar de ser, em... favelas! Toalhas, panos, blusas e quadros com a “cor local” atraem os estrangeiros, ávidos em levar algo típico – e tipicamente “naïf” – para casa.

Num dado momento, todos se aglomeraram, excitados, filmando e fotografando sem parar tudo ao redor. Um deles, o francês Benjamin, de 24 anos, integrante de uma organização não-governamental que atua na periferia paulistana, também quer conhecer a “realidade das favelas cariocas”. Intrigado com o filão turístico dos morros, ele mesmo arrisca uma explicação: “a pobreza paulistana está muito afastada das áreas nobres da cidade”.

Repentinamente surge um jipe camuflado, dando a impressão de haver recém-saído de um front. A guia turística envergava um traje bege de safári, com chapéu típico e tudo mais. O carro da Jeep Tour adentrava a selva da Rocinha. Para seus funcionários não deve haver nada mais natural, pois a empresa oferece o espantoso roteiro “Favela da Rocinha + Floresta da Tijuca”, associando, para quem percebe sutilezas discursivas, os moradores do morro a macacos e outros bichos exóticos.

A bordadeira Irene Ferreira, 53, e o músico Ivson Lins, 48, batem ponto no local diariamente, ela há cinco, ele há sete anos. Entusiasmados com o dinheiro arrecadado pela venda de seus produtos, veem com bons olhos a presença expressiva de estrangeiros na região.



Ainda na Estrada da Gávea, um truque: a extasiante vista do morro, no alto de uma laje, alugada do acabrunhado José Camilo, 46, para provocar o arrebatamento nos gringos. “Lindo”, exclama Daniele, que prontamente se põe a tirar fotografias. Andrés aponta a mata que separa a favela do Vidigal e mostra por onde os traficantes do morro vizinho passaram na invasão de abril de 2004, conhecida como “Guerra da Rocinha”. Subitamente, nomes como Bem-te-Vi, Dudu, Lulu, Comando Vermelho, Terceiro Comando e Amigos dos Amigos provocam indisfarçável frenesi no grupo.

Depois, a ida ao Largo dos Boiadeiros, o centro comercial da comunidade. Andrés informa o que a favela tem: três agências bancárias, farmácias, clinicas medica-odontológicas, cybercafés, lanchonetes, para servir a uma população estimada de 200 mil pessoas. Na beira da estrada, o guia indica a quadra dos Acadêmicos da Rocinha, escola de samba local. Andrés ensina, equivocadamente, que todas as agremiações carnavalescas vieram de favelas.



O passeio chega à última parte: Vila Canoas, com um centésimo da população do morro anterior. A escolha da favela justifica-se. À beira da Estrada das Canoas, região nobre da cidade – Armstrong mora ali –, a comunidade é palatável para uma travessia sem sobressaltos. Não há registro de tráfico, tampouco índices acentuados de criminalidade.

Andrés explica a atuação do italiano Franco Urani, que por iniciativa própria programou uma espécie de “favela-bairrinho” em Vila Canoas. Desatento, o radialista lituano pergunta se a iniciativa ocorreu por todo o país.

“Urani não se limitou à urbanização da família”, diz o guia portenho. “Ele também criou esta escolinha”. O grupo visita, então, a “Para Ti”, centro de informática e educacional, bancado em parte pelo Rotary Club (do qual Urani é membro) e em parte pelos recursos do Favela Tour. Além de percorrer as instalações que educam 120 crianças e jovens, o grupo sobe até o terraço, onde poderá comprar camisas da escola e quadros do artista local Antônio Luís, o Tunicão, com – é claro – temas alusivos à favela. Econômicos nessa vez, os quatro turistas compram muito pouco.
O trajeto por Vila Canoas se limita às andanças pelas ruelas e becos, além de comentários óbvios sobre a vida local. O casal lituano não se faz de rogado e tira fotos com as crianças de Vila Canoas.



Na volta a Copacabana, as impressões gerais. Zemgulyté declara estar satisfeito, mas lamenta não ter feito contato com as rádios da Rocinha. Sua namorada, lacônica, diz que o tour foi “incrível”. As alemãs sorriem e se revelam surpresas. “Não encontramos ninguém armado!”, se espantam.

Justiça seja feita, Andrés não dourou a pílula. De uma maneira ou de outra, revelou as agruras que os moradores enfrentam: pobreza, desrespeito, preconceito. Por isso, diz ele, o nome Favela Tour está excluído dos guias da Riotur desde 2002.

Indagado por que a empresa se restringe às comunidades de áreas nobres, Andrés sorri e responde. “Não dá para ir a todas. De 350 favelas, só podemos escolher duas”. O guia, que mora há quatro anos na Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, acrescenta que “Marcelo Armstrong mora perto dessas favelas. Se eu fosse o chefe, iria para o Chapéu Mangueira e Tabajaras, pois são onde moro”, diz ele, que deixou a Argentina em 1973.

*Andrés Lejarraga morreu em março de 2008

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