23 de novembro de 2016
Renan Castelo Branco
A proibição da prática, diálogo e debate de
determinado assunto ou atividade social que sejam culturalmente
“reprováveis” caracteriza os tabus,
criados por convenções sociais,
religiosas, morais e culturais. Tais criações se dão na crença de
que estes são meios de preservar os "bons costumes" da
sociedade, limitando a prática de determinados atos ou evitando
falar de assuntos considerados polêmicos. Durante muito tempo,
quebrar um tabu era violar um código de conduta, e isso poderia
causar grandes prejuízos ao violador. Temáticas como sexualidade,
aborto, racismo e machismo são só algumas das áreas de discussão
que sofrem uma espécie de censura moral, para manter um estado de
suposta harmonia social.
Ignorado, por sensação de culpa ou medo de “contágio”, o
suicídio foi incluído na lista de tópicos que ficam no limbo da
comunicação. O obscurantismo diante do tema cria uma falsa noção
de inexistência. Algo perto da ideia de “se não falamos sobre,
não existe”, mas a dor continua presente. A ansiedade e angústia
permanecem a assombrar, perseguir. E o vazio cresce. Toma espaço.
Leva o tempo, as vontades, a força. O que trazia conforto vira
desamparo. O sono não é o mesmo, as noites são longas. O silêncio
traz paz, quietude, mas também medo, insegurança e desespero. A
ideia de conversar com alguém parece absurda. “O que vão pensar
de mim?”. Esse tabu social envolto à autoflagelação não só
cria mitos, mas também cerca aquele que se sente suicida.
O Tabu
Para Talita Ramos, filósofa formada pela Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ), para que seja feita uma análise efetiva é
essencial levar em conta o cunho social por trás do suicídio. De
acordo com ela, são dois os meios que condicionam esse tabu sobre o
autocídio: a religião e a dicotomia saúde e doença. "A
religião e sua normatividade ao impor a sociedade às noções de
pecado, de bem e de mal, e a relação entre saúde e doença,
reforçando esse ideal proibitivo. No meio social em que vivemos é
muito importante para o individuo se ver e ser visto como uma figura
produtiva. Então esse tabu em cima do suicídio estende-se aos
transtornos psicológicos. A mesma sociedade que vai incriminar o
suicídio condena também a busca pela ajuda."
A filósofa trabalha na rede de escolas pH, com
franquias nos municípios de Niterói e do Rio de Janeiro. Sempre que
possível discute com os alunos questões relacionadas à saúde
mental, com o intuito de tornar estes debates mais familiares aos
jovens que frequentam suas aulas. Segundo Talita, para tratar a
discussão desse assunto de forma correta, deve-se falar sobre o
suicídio socialmente, para quebrar o tabu no discurso. "Deveríamos
falar mais sobre suicídio em casa, na escola, em diversos ambientes.
Afinal, é algo que acontece em todas as sociedades, é um fato
social recorrente e, se não for falado, ele vai continuar sendo
visto apenas com caráter individual, o que não lhe cabe."
Os discursos que se manifestam em torno das mortes e do suicídio
convêm para racionalizar, negar, distanciar e controlar este
fenômeno que se impõe insistentemente na vida humana.
Potencializados pela religião ou por convenções enraizadas na
sociedade, fomentam a falta de conhecimento sobre o tema que facilita
o desenvolvimento de mitos quando se trata da morte voluntária.
O Suicídio
“Sem problemas. Você me pegou meio de surpresa!”. Resposta para
o pedido de desculpa por ter chegado mais cedo que o combinado. A
sala de espera tem poucos objetos além de dois sofás e algumas
revistas, grande parte delas carregadas de teor político, outras
poucas sobre entretenimento. Com um ambiente a meia luz, sou
convidado a entrar em seu consultório. Wanderley Ramalho, formado em
Psicologia pela faculdade Gama Filho, faz parte da Academia de
Bombeiros, que fornece auxílio psicológico aos profissionais. Ele
conta também com um fluxo contínuo de pacientes em seu atendimento
particular. Sempre com uma expressão neutra e centrada durante a
entrevista, afirma que “o suicida volta para si mesmo toda a
violência contida na frustração”.
Segundo relatório divulgado em 2014 pela OMS (Organização Mundial
da Saúde), ocorre um suicídio a cada 40 segundos no mundo,
caracterizando-o como um problema de saúde pública. De acordo com o
estudo, 804 mil pessoas se suicidam por ano, uma taxa de 11,4 casos a
cada 100 mil habitantes. No Brasil, esse número é de seis para cada
grupo de 100 mil indivíduos. Em 2012, foram 11.821 casos no país.
O estudo da OMS revela que o suicídio já é a segunda causa de
morte entre jovens de 15 a 29 anos no mundo todo, sendo responsável
por 7,3% dos casos, matando mais do que o vírus HIV. Os acidentes de
trânsito são as principais causas de óbito, apresentando uma taxa
de 11,6%. Já em terras brasileiras, o autocídio juvenil aparece em
terceiro lugar, atrás dos acidentes de trânsito e homicídios.
Há quem diga que a ansiedade e a depressão são as doenças da
geração dos anos 1990 e 2000. Crescer sob o advento da internet tem
suas desvantagens. Estudar, trabalhar, ter uma graduação, inglês e
espanhol são obrigatórios. Intercâmbio, por que não? Ter um bom
emprego e estabilidade financeira. Casamento e dois filhos. Tudo isso
antes dos 30. A mesma rapidez que permite a conexão com diversas
culturas e indivíduos também muda a cobrança que o mundo e você
fazem sobre si. A velocidade da rotina transforma os passos de uma
multidão em uma dança semicoreografada que é repetida dia após
dia. Pressionados por uma sociedade imediatista, aqueles que não
atingem tais requisitos estão fadados ao fracasso.
Para Ramalho, “a exposição prolongada à ansiedade é um gatilho
para o ato de tirar a própria vida”. O sentimento de frustração
desenvolvido a partir da necessidade imediata de resultados
pode funcionar como combustível para o processo de ideação
suicida. Ele afirma que os jovens estão em período de busca pela
identidade em um conflito benigno de construção de personalidade.
De acordo com Talita, “o status social e a sensação de
pertencimento a um grupo são essenciais aos indivíduos,
principalmente aos adolescentes e aos jovens adultos”. Segundo ela,
esse é o período em que acontecem várias descobertas sobre a vida
e a sua fragilidade, e um momento de muitas frustrações novas.
Ainda de acordo com a OMS, 75% dos suicídios ocorrem em países
menos desenvolvidos: 603.00 mortes em um período de 365 dias. Em um
único dia, 1.652 pessoas tiraram sua vida; 68, em uma hora. Em
países emergentes, como o Brasil, “o atendimento a
necessidades primárias, como alimentação e segurança, não é
assegurado a uma totalidade da população”, afirma Ramalho. A
precariedade nos serviços públicos pode desenvolver conflitos que
agem como potencializadores de atos suicidas. No mundo capitalista,
movido pela lógica do consumo, a desigualdade social cria
frustrações, promove angústia e ansiedade no indivíduo pelo fato
de não poder ter “o que todo mundo tem”.
Talita declara que esse dado comprova o fato de que a sociedade tem
um papel significativo nos suicídios, ao contrário do senso comum
individualista do ato. De acordo com a filósofa, apesar dos serviços
precários do Estado influenciarem na morte voluntária, a sensação
de pertencimento é mais expressiva quando se trata do estudo do
autocídio. "O suicídio nas camadas mais baixas vai acontecer
por conta da pressão social. Não só por uma condição material.
Muitas vezes a gente condiciona o suicídio à questão de miséria,
mas não é só a miséria que causa a sensação de não
pertencimento. Parte também da marginalização de um grupo de
indivíduos, do preconceito social. Essa parcela da sociedade não
está apenas à margem de uma comunidade de consumo, mas tem uma
série de direitos legítimos negados."
Drogas
e Suicídio
A evasão do real é uma prática comum no
mundo artístico. O romantismo tinha esta como uma de suas vertentes.
A insatisfação com o mundo leva
o romântico a fugir da realidade, expressando suas obras de várias
maneiras: fuga para a natureza, para o passado, para o interior de si
mesmo, para o lado noturno de vida, para o misticismo, o
sobrenatural, o sonho, a loucura ou a própria morte.
Assim
como o romântico, o usuário de drogas busca essa mesma dispersão,
como forma de distanciar-se de uma realidade que lhe perturba.
Em 2007, foram realizadas 135.585 internações associadas a
transtornos mentais e comportamentais de correntes do uso de drogas,
em todo o Brasil, conforme o relatório apresentado pelo Ministério
da Justiça. O álcool e outras drogas são perigosos porque atuam
como depressores do sistema nervoso central, o que pode favorecer a
tomada de atitude de tirar a própria vida. “A combinação de
abuso de substâncias com transtornos mentais aumenta o risco de
fatalidade”, diz Ramalho. De acordo com o psicólogo, o uso
frequente de álcool e outras drogas pode lesionar o cérebro e
desenvolver perturbações mentais e comportamentais, além de
aumentar a impulsividade. Atos suicidas são impulsivos.
Ajuda e Tratamento
“Não diga que a vitória está perdida se é de batalhas que se
vive a vida”. O trecho de “Tente Outra Vez” do saudoso ‘maluco
beleza’ estampa um outdoor presente no pátio do Centro de Atenção
Psicossocial Raul Seixas. Em um ambiente arborizado, o Caps ocupa um
quarteirão no movimentado bairro do Méier. Os muros são marcados
por ilustrações coloridas que envolvem dizeres como “eu posso”
e “saber viver”. A decoração alegre e o espaço amplo e
iluminado não são por acaso. Os Caps são unidades
especializadas em saúde mental para tratamento e reinserção social
de pessoas com transtorno mental persistente. Os centros oferecem um
atendimento interdisciplinar e contam com uma equipe
multiprofissional que reúne médicos, assistentes sociais,
psicólogos e psiquiatras.
O serviço é diferenciado para o público infanto-juvenil, até os
17 anos de idade, através do CAPSi, e para pessoas em uso
prejudicial de álcool e outras drogas pelo CAPSad. De acordo com a
Prefeitura do Rio, existem 13 Centros de Atenção Psicossocial
(CAPS), seis Centros de Atenção Psicossocial Álcool Outras Drogas
(CAPSad) e sete Centros de Atenção Psicossociais Infantis (CAPSi),
totalizando 26 unidades especializadas. Segundo o Portal da Saúde do
SUS (Sistema Único de Saúde), encontram-se 1.670 unidades
espalhadas pelo país, em municípios de 20 mil a 200 mil ou mais
habitantes, divididos em CAPS, CAPSad e CAPSi.
Outdoor exposto no CapSad Raul Seixas, um dos 26 instalados na cidade do Rio
Além das iniciativas públicas, como os CAPS,
há ONGS que também se mobilizam em prol da saúde mental. O Centro
de Valorização da Vida (CVV), fundado em São Paulo em 1962, é uma
associação civil filantrópica, sem fins lucrativos. A organização
presta serviço voluntário e gratuito de apoio emocional e prevenção
do suicídio para todas as pessoas que querem e precisam conversar,
sob total sigilo. São realizados mais de um milhão de atendimentos
anuais, por aproximadamente dois mil voluntários em 18 estados e o
Distrito Federal. Esses contatos são feitos pelo telefone 141 (24
horas), pessoalmente, em um dos 72 postos de atendimento espalhados
pelo país, por Skype, e-mail ou pelo site da ONG (www.cvv.org.br).
Pelos serviços prestados à sociedade, em 1973, a associação
foi reconhecida como de Utilidade Pública Federal.
A velocidade que cerca nossa rotina fez-se mais uma vez presente. Em
um período entre aulas, o professor da Universidade Federal
Fluminense (UFF) Felipe Pena, jornalista e psicanalista formado pela
Pontifícia Universidade Católica (PUC), afirma que o CVV não se
caracteriza como um serviço preventivo, mas, paliativo, uma vez que
o indivíduo já está determinado a realizar a passagem ao ato do
suicídio. Comparando a realidade brasileira com sistemas de
prevenção presentes em outros países, Pena destaca o método
aplicado na Hungria. Lá foi criado um “Plano de Saúde
Sentimental, de premeditação ao suicídio. O programa húngaro é
muito interessante, pois permitiu que se criasse uma cultura em que
se fala abertamente sobre o assunto.”
Falar abertamente sobre o tema e incluí-lo no discurso social é a
forma mais eficaz de suavizar o tabu que paira sobre o suicídio,
para Talita Ramos. Ela identifica a crise como algo inerente ao ser
humano, e saber lidar com as crises é de extrema importância, uma
vez que, tendo ferramentas necessárias para suportar situações
adversas, a crise expõe seu caráter transformador.
“O meio social afasta a crise, fazendo com que a população só a veja como algo ruim. Contudo, é algo transformador” (Talita Ramos, filósofa)
A sociedade deveria ensinar a gente a
lidar com as crises. Ao não cumprir seu papel, cria-se pessoas
desesperadas porque não foram ensinadas a lidar com as adversidades.
Você ensina as crianças a serem vencedoras e cria formas de
mascarar o fracasso. O meio social afasta a crise, fazendo com que a
população só a veja como algo ruim. Contudo, é algo
transformador. Apresentam-se várias oportunidades neste momento.
Pode surgir o suicídio, mas também pode surgir, por exemplo, um
grande artista. As grandes revoluções da história humana nasceram
em um contexto de crise. O suicídio é uma das respostas a esta
circunstância, porém ele não é debatido. Por isso, muita gente
nem sabe da sua existência", conclui a filósofa.
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