Zawarahu, a filha da onça


06/06/2016


Por Lucas Ronconi






         O dia no Rio de Janeiro estava cinza e uma chuva torrencial insistia em cair. A mãe natureza escondia o Sol, tão precioso para o povo Kari’ok. Foi nesse clima de montanha, peculiar para uma cidade litorânea, que aconteceu o encontro com Carolina Potiguara. Uma oca perdida em meio às árvores do Parque Laje, Zona Sul do Rio, deu a sensação de que estávamos imersos em um ambiente amazônico. Sentamos em um banquinho de madeira no meio da Oky; nesse momento tudo ao redor parecia vazio, a sensação era de estarmos sozinhos e perdidos em um lugar ainda não habitado pelo homem branco. A civilização do local foi substituída pelo canto próximo e ininterrupto de passarinhos que proporcionou a melodia da situação.

Aquela mulher de 33 anos e origem indígena sentada em minha frente portava um singelo cocar, um grande e colorido brinco de pena e duas pulseiras artesanais. Sem avisar, Carol fechou o olho, respirou algumas vezes, fez uma oração em Tupi para então começar a falar.


- Boa tarde, xee rerama zawarahu, meu nome branco: Carolina Camargo de Jesus. Eu pertenço ao povo potiguara da Paraíba, vivo na cidade do Rio de Janeiro, tenho dois filhos. Sou professora de História, formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestranda do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), desenvolvo trabalho de curso, palestras, feiras de artesanato com outras etnias que vivem na cidade do Rio. Minha história começa a partir dos meus antepassados, meus avós maternos.
De 2016 para meados do século XX, fizemos uma viagem no tempo. Paramos em um povoado próximo a Guarabira, localizado nas Margens do Rio Maciel. Naquela região a bisavó de Carol construiu um lar, feito de terra batida, supapo e telhado de sapê. Ali criou os filhos, entre eles Áurea, avó de minha entrevistada. Ainda pequena, Áurea foi estudar na cidade, lá aprendeu que deveria negar sua cultura e esconder o fato de ser índia, pela simples justificativa de que não era bom revelar suas origens. Cresceu nesse contexto e durante a fome e seca na caatinga paraibana durante a década de 40 migrou para o Rio e foi morar na favela de Vigário Geral.
Longe do seu povo e da sua terra, Áurea construiu uma família e transmitiu para eles toda a cultura indígena, como alimentação, artesanato, rezas e língua. O povo Potiguara fala a língua do tronco Tupi, que remete aos antepassados Tupinambás, primeiros habitantes do solo brasileiro. Carolina nasceu nesse meio entre origem indígena e influência urbana. Desde nova foi incentivada a estudar pela avó.
- Quando nasci, minha avó se apegou muito a mim. Ela disse: eu que vou cuidar da minha neta.
Com lágrimas nos olhos, Carol conta da avó com saudosismo e orgulho. Lembra que foi graças aos seus conselhos, abraços e cuidado que conseguiu superar as dificuldades de ser índia na cidade grande.
- Não foi fácil viver nessa sociedade, mas sempre consegui me inserir, pelo fato de ser alegre, simpática. O índio tem essa característica: não somos um povo triste, apesar das adversidades.

Militância na universidade 
A garra da jovem menina Potiguara lhe rendeu uma vaga na universidade, lugar que a fez crescer como indivíduo, proporcionou reflexão e lugar de fala. Mesmo assim, o preconceito ainda existia nas mais diversas situações.
- É um preconceito velado. Já chorei muito por causa disso. Pessoas diziam para fazer artesanato, pois era só para isso que eu prestava. Era como se dissessem que ali era o único lugar do índio, fazendo artesanato, de cabeça baixa, deixando o branco comandar. A vida do índio é uma luta constante.
Na faculdade, Carol entrou para a militância e participou do movimento em prol da construção da moradia estudantil para os alunos da UFF. Nesse meio conheceu o ex-marido que cursava Jornalismo. Casou e, aos 23 anos, engravidou da primeira filha.
Em 2006, grávida, a índia se juntou ao seu povo para lutar pela cultura indígena na cidade do Rio. Foi um grito de união e força dos povos indígenas na ocupação do antigo prédio do Museu do Índio, no entorno do Estádio Mário Filho, o Maracanã. Juntaram-se às tribos potiguara, pataxó, guajajará, guarani, tucano, xavante e outras.  
- Não existia um lugar de contato e troca entre nós. Transformar o centro em um lugar de referência para a cultura indígena era de extrema importância.
Carolina conta que todo esse processo de luta e troca entre os povos indígenas fez com que ela pudesse fortalecer sua identidade, espiritualidade e crença nas suas origens. Pergunto sobre essa espiritualidade.
- A crença indígena é em Nhanderú (Deus supremo, o grande criador) nas forças da natureza. O índio está acompanhado de um elemento da natureza, a sua matéria está ligada a uma força natural. Eu sou Zawarahu, filha da onça. Estou ligada à força das onças.
O pagé da família dizia a ela que sua espiritualidade era indígena, pois na cidade, muitas vezes por falta de espaço para a manifestação, os jovens indígenas são atraídos para a Umbanda e o Candomblé, religiões de origem africana.
Na luta pelo espaço do índio na cidade conseguiram implantar dois polos culturais, como a Aldeia Maracanã, no Rio, e a Aldeia Camboinhas, em Niterói. Porém, a especulação imobiliária e uma onda de incêndios misteriosos expulsaram os índios de Camboinhas, local onde existe um sambaqui (cemitério) indígena, lugar sagrado para eles. Os incêndios também atingiram a Aldeia Maracanã que vive um processo de revitalização para que possa ser reaberta a fim de abrigar como antes um centro de artesanato e troca indígena. 
- O fenômeno Aldeia Maracanã traz a cena os índios urbanos, em contato com o branco e a cidade. Por isso, lutamos tanto para que fosse revitalizada.
A historiadora explica que o contato com o branco não é muito fácil e que muitas vezes essa troca se torna vertical.
- A comunicação com o branco é diferente. Às vezes as pessoas não entendem o indígena. Aí ele tem que abaixar a cabeça e deixar o branco comandar, pois já está enraizada na sociedade essa cultura de dominação.
Professora e palestrante, Carol diz que o futuro do índio é de muita luta para preservar a língua, os costumes e as tradições, pois cada vez mais a cidade impõe os seus elementos e que é complicado para a juventude manter a harmonia entre esses dois grupos. Segundo ela, o índio tem uma visão muito diferente da vida, é um povo caçador e coletor, caminhante da terra, não gosta de ficar sozinho. Mas afirma que a troca entre culturas é essencial.
- O povo brasileiro precisa se sentir pertencente da cultura indígena.
Finalizo perguntando o que é ser índio brasileiro, o que é ser Carolina Potiguara. Nesse momento a mestranda da UFRJ que durante toda a entrevista tirou e colocou o cocar e mexeu constantemente na pulseira em seu braço direito, para reflexiva. 
- É ter uma responsabilidade com a história do meu povo, dos meus antepassados. Podia estar no mercado de trabalho formal, mas corporifiquei a identidade do meu povo. Ser Carolina Potiguara é ser guerreira, manter a tradição, ser mãe.  É estar comprometida com a luta. O ano de 2006 foi um marco nessa cidade, na vida do meu povo, dos meus filhos. Já pensei em abandonar tudo e viver na região dos meus antepassados, mas minha vida é aqui, meus pés estão fincados nessa terra.
Nesse momento o Sol, antes escondido pelo mal tempo, brilhava do lado de fora da oca. Então, Carol surpreende: posso cantar uma música do meu povo? Nem precisei responder.
No pé do cruzeiro Jurema,
 Eu canto com meu maracanamã
Pedindo forças ao meu Jesus Cristo
Que abençoe a todos os meus irmãos
Ohhh anahê, ohhh anahê, ohhh anahê (3x)
Na última nota, os passarinhos acompanharam, dando um toque final e inesperado àquela canção. Tive então certeza de que tínhamos atravessado um portal e estávamos bem longe do Rio de janeiro.

Aueté Carolina Potiguara! 

Busca Cadernos

Loading

Quem somos

Minha foto
Cadernos de Reportagem é um projeto editorial do Curso de Comunicação Social da UFF lançado em 3 de outubro de 2010.
 
▲ TOPO ▲
© 2014 | Cadernos de Reportagem | IACS