Pornografia: a busca feminina num território dominado pelos homens


16 de abril de 2015

Por Cecília Boechat e Gabriella Balestrero

De acordo com o canal do Youtube All Time 10s, 30 mil pessoas estão assistindo a vídeos pornográficos neste exato momento. Desse total, 25% a 33% dos espectadores são formados por mulheres. Ou seja, há, no minimo, 7,5 mil mulheres assistindo filmes pornôs nesse segundo. Apesar da grande audiência feminina, a maioria das produções pornográficas é direcionada ao público masculino, pelo menos nas produtoras mais conhecidas.

Segundo a doutoranda Nayara Matos, da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a mulher, de modo geral, sempre se interessou por pornografia, mas devido a uma concepção cultural socialmente construída que nega à mulher a liberdade pelo interesse erótico, inscrevendo-a em um lugar de vergonha e de culpa, essa busca feminina não é fácil de ser observada. Ainda hoje, poucas mulheres se dispõem a falar abertamente sobre o tema. “É um assunto do qual as pessoas têm vergonha de falar. Existe essa moralização em cima da pornografia (...) então é raro você encontrar (alguém). É diferente quando se fala sobre outros assuntos: de cinema, de política, de algo em que não haja um julgamento em cima de você”.

Além do julgamento por parte da sociedade, há outro empecilho para a satisfação erótica feminina: a pouca representatividade observada na pornografia mainstream (aquela encontrada em sites como YouPorn, RedTube, PornHub e similares). O público-alvo dessa vertente pornográfica é masculino. Apenas um dos exemplos que comprovam esse dado é a seção POV (Point Of View - Ponto de Vista, em português), que denomina uma categoria da pornografia que tenta ao máximo incluir o telespectador dentro do filme pelo ângulo da câmera, filmando como se fosse a visão do próprio telespectador. A perspectiva é sempre masculina. “Isso fica óbvio não só pelos vídeos, mas também pela publicidade desses sites", lembra a estudante de Jornalismo, Izabel Furtado, de 22 anos, citando propagandas com foco em genitálias masculinas ou exposição muito maior das atrizes do que dos atores. 

Outra questão importante mas da qual poucas pessoas tomam conhecimento se refere às condições de gravação de grande parte dos filmes das indústrias mainstream. A atriz pode ser tão objetificada no set de filmagem quanto (ou até mais) a sua personagem, no roteiro do filme.

“Nós (atrizes) somos vistas ali no set como objeto, e dependendo da produtora, tem que fazer, tem que dar ângulo, não importa se está doendo” conta Patricia Kimberly, atriz pornô e ex-garota de programa, em entrevista à Gabriella Feola para o Jornal do Campus da USP (Universidade de São Paulo). Ela fala também que muitos atores, para mostrar que têm “pegada”, exageram na atuação, chegando a pôr o pé no rosto da atriz em alguns momentos. “Quem tem tempo no mercado e tem nome pode dizer o que quer ou não fazer, mas tem atriz no começo da carreira que acha que tudo é normal, tem que deixar fazer tudo e daí os caras (produtores) esculacham mesmo.” 

Shelley Lubben, ex-atriz pornô e fundadora da Pink Cross Foundation (fundação que oferece apoio tanto a atores e ex-atores quanto a viciados em pornografia), conta uma história parecida: “Imagine isso: são duas garotas num set de filme pornô, gravando em propriedade privada, como uma mansão, um hotel ou a casa do diretor. Não existe supervisão. A equipe é basicamente formada por homens: os produtores são homens, os atores são masculinos, e só há duas garotas de 18, 19, 20 anos. Elas dizem ‘eu não faço isso’, e recebem como resposta ‘Não, você vai fazer isso’. Elas não sabem como dizer não e precisam do dinheiro, então acabam fazendo.”

Isso não impede que as mulheres sintam prazer com esse tipo de produto, mas não é a satisfação delas que esses veículos almejam em primeiro lugar. “Não estão nem aí para a mulher. Até os vídeos lésbicos são feitos para homens, e não para lésbicas. Eu sou bi e é muito difícil achar um vídeo interessante entre duas mulheres”, aponta a fotógrafa Bruna Todeschini, de 25 anos, que vive em Florianópolis.

A designer de 22 anos, Juliana S., costumava consumir pornografia em sites mainstream, mas parou há mais de seis meses. “Me sentia saciada antes de entender e vivenciar o papel da mulher nos filmes pornô que eu encontrava. Meu namorado já tentou fazer coisas baseadas nos filmes comigo e me senti muito mal. Quando via cenas em que o homem dava tapas fortes na bunda da mulher eu achava normal, até ver que, na realidade, uma sequência de tapas fortes doem e atrapalham o meu prazer. Quando vejo alguma cena lembro de como foi ruim e não me excito mais. Hoje sinto nojo na maioria delas”. 

Pornô feminista

Com a identificação desse público, surgem produtoras especializadas em pornografia feminista. Trata-se de uma vertente pornográfica que, diferentemente da hegemônica, leva em consideração também o prazer feminino. Atualmente, algumas mulheres se destacam nesse papel. A sueca Érika Lust venceu vários prêmios nessa área, dentre eles três Feminist Porn Award e dois Barcelona International Erotic Film Festival. Em entrevista ao portal de notícias Terra, Érika ressalta a importância das mulheres em suas produções. “A parte mais importante dos meus filmes é a dedicação em mostrar o prazer feminino. Algo totalmente ausente em filmes pornô – exceto pelos orgasmos horríveis e fingidos.”

Érika Lust procura valorizar o prazer feminino em suas produções (Foto: Reprodução - Behance.net)
Além do enredo, figurino e cenário dos vídeos, uma questão que incomoda muitas mulheres no pornô mainstream é a representação feminina.. “Eu gosto dessa categoria (pornô feminista) por me igualar mais fisicamente, já que tenho seios pequenos etc. Além de preferir a produção, que é mais artística mesmo. Mostra mulheres diferentes em relação ao padrão da sociedade, principalmente do padrão pornográfico. Não é como se todos os homens gostassem de seios enormes. Com esses vídeos me sinto mais valorizada”, completa Bruna. A estudante de Biologia da UFRJ, Taiana M., de 21 anos, concorda. “(Nos vídeos mainstream) as pessoas começam a fazer sexo do nada, as mulheres são verdadeiras acrobatas sexuais e incrivelmente não têm nenhum defeitinho”.

Outras mulheres, no entanto, afirmam que a pornografia não propõe se assemelhar à realidade, como a publicitária de 35 anos, Cristina A. “Não dá para comparar a forma como acontecem as cenas com a realidade. Vejo o pornô como fantasia. A vida real é totalmente diferente. Não transo igual aos atores dos filmes que assisto”. E continua: “O pior é quando as pessoas acham que o sexo na vida real é igual ao desses filmes pornôs. Não é. Como também não é igual ao dos filmes românticos. Esse problema de percepção é que atrapalha as pessoas”, opina.

Mas não são todos que pensam como Cristina. “Essa ideia de que servimos para o sexo é muito absorvida pelos homens. A quantidade de caras com quem eu saí que acham que sexo deve ser igual ao do filme pornô é assustadora”, relata Paulina B., ilustradora de 20 anos, residente em Londres.

Outros fatores também são apontados como responsáveis pela retração feminina no âmbito sexual e pornográfico. “Quantas vezes a gente já não escutou: ‘ah, essa daqui é mulher pra casar’, ‘ah, essa daqui é só pra comer’, ‘você não pode perder a virgindade antes do casamento’. É tão complicado ser uma mulher livre, a sociedade quer nos aprisionar de todas as formas”, lamenta a redatora de 25 anos, Dayana Pinto. Segundo ela, o problema é maior dependendo da região. “Eu moro numa cidade de interior em Minas Gerais. Imagina o quão machista é esse lugar!”.

Para tentar se adequar ao público feminino, algumas empresas vêm criando produções romantizadas, que retratam a mulher como personagem frágil, criando uma versão estereotipada da mulher no sexo. “Isso demonstra uma reiteração e uma naturalização de algo que é construído socialmente e culturalmente, e isso é um tipo de preconceito”, explica a doutoranda Nayara. Segundo ela, o papel da mulher romântica, não só em produções pornográficas, mas no imaginário social, é um reducionismo que precisa ser desconstruído.

Boa parte do público feminino não gosta desse tipo de conteúdo. “Esse filmes eróticos romantizados para mulheres são horríveis. A maioria traz personagens femininas bobocas, frágeis demais, submissas, à espera do príncipe encantado rico. E as mulheres são, na maioria das vezes, virgens”, conta Cristina A.

Camila H. tem uma opinião parecida. “Eu acho que são assim porque a maioria das pessoas pensa que mulher não gosta de pornografia por causa da falta de romance. Acham que toda mulher é romântica e que os homens são o contrário”. 

Apesar dos clichês que envolvem a pornografia feminina e a objetificação observada no conteúdo mainstream, é crescente o número de mulheres que afirmam gostar de pornografia, buscando não apenas igualdade entre gêneros, mas também fazer descobertas e se permitir sentir prazer, sem culpa ou preconceitos. 

O surgimento da pornografia 

A tendência em procurar sempre atender ao olhar masculino em detrimento do feminino é observável na história da pornografia. Materiais eróticos foram publicados pela primeira vez por meio da literatura, no século XIX, como crítica política. Os livros tinham como narrador uma prostituta e se valiam da posição social da personagem para criticar instituições, como o Estado e a Igreja. Desde o primeiro momento, o conteúdo pornográfico já era restrito apenas aos círculos sociais masculinos. “O eu-lírico desses livros era uma mulher prostituta. Só que essas obras não podiam circular no universo feminino. A mulher não tinha acesso a essa literatura”, diz Nayara Matos. O papel social da mulher era tão amplamente controlado que existiam diversos manuais de conduta, como o Livro das Donas e Donzelas, de 1906.

A partir da primeira onda do feminismo, que começou no século XIX e avançou pelo XX, as mulheres tiveram acesso à pornografia, mas apenas a partir da década de 50 que a discussão sobre o prazer passou a ser inserida no debate. Antes disso, não existia qualquer material de entretenimento sexual midiático com público alvo feminino. 

O fato de a pornografia ser produzida sob ótica masculina é o ponto chave para que o produto final dê menos importância ao prazer e interesse femininos. O olhar dessa indústria começou a mudar quando uma mulher assumiu o posto de dirigir filmes pornôs. Candida Royalle foi a primeira mulher a fazer isso. Seus filmes ainda são baseados nas tendências mainstream da indústria, mas sua influência no futuro desse tipo de conteúdo é inegável. Quando a ex-atriz pornô produziu seu primeiro filme (Three Daugthers, 1986), ela entrou para a história ao assumir esse papel que sempre foi visto como “masculino”.

O pós-pornô 

“Se não gostas da pornografia que existe, faz pornografia tu mesmo. Reinventa”. Considerada por muitos como a mãe do pós-pornô, Annie Sprinkle, um dos principais nomes dessa vertente pornográfica e dona da frase acima, deixou de ser atriz pornô para dirigir e produzir filmes que tentam incluir o ponto de vista feminino tanto cis (pessoa que reconhece que seu gênero é compatível com seu corpo, e que se veste, se comporta e aparenta ser aquilo que a sociedade define próprios de seu sexo) quanto trans (indivíduo que acredita não ser compatível entre gênero e corpo, reconhecendo que, apesar de seu corpo ser de um sexo, seu gênero é outro). Annie também se preocupa em causar uma reflexão sobre temas ligados ao mundo da sexualidade, como a questão da intimidade, do prazer feminino e de formas alternativas de sentir prazer, como o BDSM (sigla que une os termos Bondage and Discipline (BD), Dominance and Submission (DS) e Sadism and Masochism (SM). 

A pós-pornografia é uma vertente pornográfica que não tem como principal objetivo satisfazer seu espectador num nível erótico, e sim provocar uma reflexão sócio-sexual e política. O Coletivo Coyote, grupo que se utiliza do pornoterrorismo (tipo de expressão pós-pornográfica) é um exemplo de definição do que vem a ser o pós-pornô. Com apresentações performáticas como o Xereca Satânik e a performance na Jornada Mundial da Juventude, o coletivo problematiza questões como a liberdade sexual da mulher, tanto no caso do ventre livre quanto sobre como a religião tende a cercear o prazer feminino.

A estudante de Comunicação Social da UFF Isabella Oliveira acredita que, apesar da motivação feminista, a pós-pornografia deve ser problematizada. “Entendo as questões em torno da pós-pornografia, dentre elas a libertação da mulher, do empoderamento, mas, pelo menos segundo os filmes, debates e literatura aos quais tive acesso, acho que ela é muito pautada no empoderamento pela dor. Não vejo o quanto você consegue empoderar a mulher pela dor. Preferiria que fosse uma coisa mais naturalizada, mais identificável. Outra das minhas criticas é o envolvimento da pós-pornografia com a imagem sacra. Ela faz esse envolvimento da religião com o sexo e eu acho que essa é uma das questões que acaba tornando esse um debate pouco agregador.” Apesar de sua crítica, ela não anula a iniciativa. “Acho que toda forma de empoderamento, toda forma de luta feminista, é válida, apesar de não concordar com o método de algumas delas”, diz.
  

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