As ruas e a democracia da voz

14 de novembro de 2013


João Pedro Soares e Rebeca Letieri

Durante as recentes manifestações que tomaram as ruas de todo o Brasil no mês de junho/julho, as redes sociais mostraram, pela primeira vez no país, o potencial de mobilização que possuem. Utilizadas para a convocação dos manifestantes, por meio de eventos no Facebook, tornaram-se também espaços de debates e denúncias, principalmente, de abusos policiais muitas vezes omitidos pela grande mídia. 

Nesse contexto, as mídias alternativas ganharam força, pois mostravam à sociedade a ineficiência da cobertura hegemônica. Não tardou para que se espalhasse a ideia de que somente elas seriam capazes de transmitir a verdade, enquanto os jornais hegemônicos apenas transmitiriam o olhar do capital atendendo aos interesses de quem os financiava. No entanto, junto com a maior visibilidade e responsabilidade, evidenciou-se o despreparo de alguns grupos alternativos em diversas ocasiões. Então, surgiu o questionamento: afinal, os grandes veículos de comunicação são ou não são ainda importantes na era digital? Impulsionada por esse debate, a necessidade de regulamentar a comunicação voltou à tona. Em algumas cidades, inclusive, foram realizados protestos em que a democratização da comunicação era a pauta exclusiva.

“A mídia independente teve essa repercussão porque, pelo menos no inicio, a grande imprensa estava claramente contrária às manifestações, inclusive pedindo repressão”, afirmou a professora de Jornalismo do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense, Sylvia Moretzsohn. “Quando houve repressão, acho que a mais violenta por parte da polícia, no dia 13 de junho, em São Paulo, o barco começou a virar: a mídia começou a tentar esvaziar o objetivo inicial do protesto pelo passe livre e diversificou as pautas, tornando-as muito genéricas e contraditórias”, avaliou.

Força contra-hegemônica

Para a professora da UFF, uma parcela da juventude que está nas ruas, e da própria imprensa alternativa, comete o equívoco de pensar que, pela primeira vez, questiona-se a manipulação dos grupos de comunicação hegemônicos. Além disso, destaca a importância de os grupos alternativos não terem a ambição de ocupar o lugar da grande imprensa, pois, além de não possuírem condições técnicas para tal, esse objetivo desvirtuaria a essência desses coletivos, que é apresentar uma alternativa aos grandes jornais. 

O impedimento da cobertura da grande imprensa por parte de manifestantes é considerado um erro estratégico para Sylvia, pois “não apenas representa uma inaceitável tentativa de silenciamento, mas é, sobretudo, uma incoerência: quem protesta exige que a mídia ‘fale a verdade’, mas ao mesmo tempo proíbe os jornalistas de exercer o seu trabalho”. Como exemplo, ela cita a cobertura da campanha de Lula em 1989: “Em 89, na não eleição do Lula, a Globo teve papel proeminente, fazendo de tudo para o Collor ser eleito. Entretanto, o Ricardo Kotscho, assessor do Lula, dizia que era a repórter da sucursal de O Globo de São Paulo quem cobria melhor o candidato, mesmo sabendo que elas não seriam publicadas, pois poderiam sair em outros veículos”. 

Algumas passeatas tiveram como alvo o oligopólio midiático, chamando a atenção para o debate sobre a função social do jornalista. Filipe Galvão, estudante de jornalismo da UFF e coordenador de audiovisual de uma das mídias independentes que nasceu durante as manifestações no Rio de Janeiro, Rede Alternativa; reafirma que o repúdio criado pelo povo não surgiu de uma hora para outra: “Vejo com muita ressalva essa questão de as pessoas rechaçarem a mídia assim com muita violência, e isso não é bom porque você impede uma pessoa de realizar o seu trabalho. O que a polícia faz com a mídia alternativa, impedindo que ela atue de diversas formas, o povo em resposta, ou parte do movimento, está fazendo com a mídia corporativa”. Porém, para o estudante “há uma disputa clara: enquanto a mídia alternativa está defendendo os interesses dessa massa injustiçada e inconformada, a mídia corporativa está defendendo, sim, os interesses da polícia. Então, não é à toa que há esse rechaço por parte das manifestações. É ruim de alguma maneira, mas é compreensível, porque eles estão colhendo o que plantaram”.

Apesar da grande pluralidade de veículos alternativos que realizaram a cobertura dos protestos, a mídia NINJA (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação) recebeu destaque, com o diferencial de ter transmitido a cobertura ao vivo pela internet. Para Rafael Vilela, integrante do grupo, “quem ataca é a própria grande mídia quando vai contra o povo que está nas ruas. Ela deixou muito clara sua incapacidade. Não é uma questão técnica, é quase política”, ressaltou. “Enquanto os repórteres da grande mídia cobrem as manifestações do helicóptero, afastados do calor do chão, ela se torna incapaz de fazer uma leitura dos movimentos nas ruas. Existe mesmo uma crise de representatividade”, concluiu. Galvão reitera que “não é uma reação extrema, é uma reação que vem de um processo histórico. Essas mídias não representam a população”. 

A mídia alternativa se propõe a gerar um conteúdo que está em consonância com o que as pessoas protestam nas ruas, ao contrário dos que têm demonstrado o “oposto”. Por conta disso, o jornalismo das empresas de comunicação tradicionais recebeu críticas incisivas pela cobertura das manifestações recentes. “A grande imprensa falha nessa suposta imparcialidade, fingi não defender um lado, mas fica evidente seu posicionamento”, ressaltou Vilela. 

Já o repórter Daniel Braga, de O Globo, incumbido de cobrir alguns dos atos durante o mês de junho, enfatizou diversas vezes que “a imprensa estava tentando entender o movimento e não tomar um lado para si. E aí, em determinado momento, surgiram as críticas contra a grande mídia, que prefere mostrar uma ‘minoria’ à maioria que está exercendo os seus direitos de forma pacífica”. Para o repórter, de 30 anos, quando a linha editorial começa a fazer essa abordagem, a empresa está pensando nos profissionais em campo, que, segundo ele, precisam ser resguardados. “Erros? Todo mundo comete. Sempre vão existir. Não só na grande mídia, mas na pequena mídia também. A diferença é que quando a pequena mídia comete um erro, devido à menor visibilidade, talvez você tenha uma responsabilidade menor também”, completou.

Filipe Galvão declara, entretanto, que “se existe o erro, existe o acerto. Acho que o grande problema da comunicação hoje é que esse acerto é algo indefinido. Óbvio que errar é humano, mas insistir no erro é burrice. E insistir no erro depois que esse erro é exposto, deixa de ser burrice e passa a ser cinismo”, ressaltou. “Então, a questão é onde está o acerto, e se esse acerto pode ser exercido ou não, dentro da mídia corporativa”, concluiu.

Desafios da mídia alternativa

O impacto da internet na comunicação vem ocorrendo de forma muito intensa. Portanto, é difícil, para quem trabalha e estuda na área há anos, assimilar e entender tudo o que está acontecendo. Paula Máiran,  presidente do Sindicato dos Jornalistas no Rio de Janeiro, enaltece essas transformações. Ela aponta, todavia, que alguns aspectos negativos do jornalismo tradicional permanecem: “todo esse poder de concentração de audiência dos conglomerados de monopólio da mídia migra para as redes sociais. Então, você acaba reproduzindo a mesma lógica de conteúdo que existe na mídia controlada por meia dúzia de empresários do país nas redes sociais”. Ainda assim, Paula Máiran demonstra esperança: “quando você está falando da mídia comercial o problema está muito mais no recorte que se dá às coberturas do que propriamente nos recursos que são utilizados para fazê-las. Acho que se a gente se apropriar do que funciona bem lá e trouxer para cá, para a mídia alternativa, daremos um salto”. 

Junto com o crescimento, surgem novos desafios para a mídia alternativa. Paula avalia que um dos principais é o alcance do público que se informa por meio dos veículos hegemônicos: “Acabamos falando para nós mesmos, produzimos e lemos. Ainda não conseguimos atravessar a fronteira dos leitores alternativos, porque praticamente a mídia alternativa atinge leitores alternativos”. 

Outra grande barreira enfrentada pelos que desejam utilizar novos meios de se fazer jornalismo são os custos da atividade. Historicamente, veículos alternativos que tinham a qualidade como marca registrada no Brasil – como O Pasquim e, mais recentemente, a revista Caros Amigos (que recentemente demitiu um grande grupo de funcionários que entrou em greve) – tiveram o empecilho econômico como principal dificuldade de sobrevivência. Com a internet, estratégias de financiamento coletivo surgem como possibilidades, porém, ainda muito embrionárias. 

Recentemente, circulou na grande imprensa a notícia de que a Mídia NINJA teria a intenção de receber verbas governamentais para continuar funcionando. No entanto, o grupo nega essa informação: “Nós nos sustentamos a partir da estrutura física e cognitiva que o grupo Fora do Eixo, coletivo com 10 anos de articulação política publica artístico-cultural, oferece”. Somente cerca de 5 a 7% do orçamento do grupo vem de editais públicos. Para a presidenta do Sindicato dos Jornalistas, “pouquíssimo recurso público é investido em mídia alternativa, em pontos de mídia livre”.

Regulação da mídia: velha bandeira reerguida

Um ponto peculiar e comum a todos eles – estudantes, representantes da mídia alternativa e da grande mídia, acadêmicos e sindicalistas – é a importância da pluralidade de vozes, a fim de que seja criada uma paridade discursiva, na tentativa de equilibrar o jogo narrativo dentro da sociedade.

“A questão é que existe um lado da história que é hipernarrado, e o nosso papel é narrar o lado que não é narrado”, ressaltou Galvão. A intenção da mídia independente agora é criar ferramentas de tecnologia para capacitar as pessoas que fazem comunicação independente na disputa pelo debate da democratização. Ambos os representantes da mídia independente argumentam que é por meio do acesso à tecnologia de comunicação que será possível fomentar o debate de regulamentação da comunicação. 

A discussão sobre a necessidade de regular os meios de comunicação gera controvérsias em todo o continente: de um lado, movimentos sociais desejam estabelecer novas regras de funcionamento no setor; de outro, as empresas que atuam nesse mercado classificam essas medidas como um retorno à censura. As primeiras legislações sobre meios de comunicação na América do Sul foram criadas entre os anos 1930 e 1960 e tinham como pressupostos básicos a definição do espectro radioelétrico como espaço público (que funcionaria em regime de concessão à iniciativa privada) e a não permissão para tornar estrangeiros proprietários de empresas ou meios. Na Venezuela (2000), na Argentina (2009) e na Bolívia (2011) foram aprovadas normas para regulamentar a atividade de comunicação. No Equador, em 2011, a Assembleia Nacional discutia novas regras para o setor. Já o México possui uma legislação aprovada em 1995, que sequer impõe restrições ao capital externo. No Brasil, o debate sobre uma nova legislação faz parte da demanda de diversos setores sociais, mas ainda não entrou na pauta político-institucional do país.

“Acho que a luta pela democratização da comunicação teve muitos avanços a partir de todos esses debates capilarizados, no Brasil inteiro, envolvendo os movimentos sociais para efeito da Conferência Nacional, que ocorreu em 2009”, disse Paula Máiran, que defende a causa. “Os debates resultaram em um caderno de propostas, não só para o marco regulatório que existe hoje, mas também para políticas públicas na área da comunicação. As nossas principais propostas foram aprovadas, como o fim do oligopólio da mídia e o fim da propriedade cruzada. Porém, com a troca presidencial, todas as propostas que tinham promessa de cumprimento pelo governo federal foram deixadas de lado”. Contudo, a nova presidente da chapa vitoriosa “Sindicato é pra lutar” promete não desanimar: “Isso não nos faz retroceder a ponto de acabar com os debates e a conscientização dos jornalistas a respeito dessa luta”.

O repórter de O Globo Daniel Braga também levantou a bandeira: “Em termos de informação, acredito que quanto maior a pluralidade melhor. Avançamos nesse sentido. Precisamos avançar mais? Sem dúvida. Aonde vamos chegar? Não sei. Isso aí cabe justamente à geração que vem fervilhando com esse conhecimento”. 

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