18 de outubro de 2013

A pauta da desmilitarização da PM em meio às manifestações populares

Camilla Pacheco e Leonardo Bigio

Acostumada aos “caveirões” e policiais armados na porta de casa, a estudante de Engenharia Civil da UFRJ Amanda Azevedo, moradora da Penha, não acreditou no que viu na noite do último dia 20 de junho. Em frente à Prefeitura do Rio de Janeiro, centenas de agentes de segurança – com seus cachorros e cavalos – protegiam o prédio da multidão de manifestantes que se aproximava com cartazes, gritando palavras de ordem. Ela, que havia saído da concentração que seguiria em passeata do Largo de São Francisco, no Centro, à Cidade Nova, não conseguiu alcançar seu destino. Bombas de gás lacrimogêneo e pessoas correndo por todos os lados tumultuaram a situação, e Amanda seguiu em direção à Lapa. Lá, longe dos mais de 100 mil manifestantes, dos policiais e da confusão, encontrou cenário parecido. De dentro de um bar, a portas trancadas, ouviu gritos, barulho de motores, bombas e tiros. Ao se aventurar para um cigarro do lado de fora, foi surpreendida por um projétil de gás lacrimogêneo batendo em seu pé, lançado por um policial na garupa de uma das três motos que subiram a rua onde ela estava. Segundo Amanda, a ação foi injustificável e descabida. Essas são as principais denúncias contra a Polícia Militar (PM) desde o início das manifestações em junho: truculência e abusos. Outros relatos denunciam a força excessiva da tropa e a infiltração de policiais entre os manifestantes.

“Esses excessos não partiram do comando da corporação. Pelo contrário, tentamos evitá-los ao máximo. Nenhum policial militar foi incentivado a agredir alguém”, comenta o major da PM Rafael Freire, do Comando de Operações Especiais (COE). “Ocorreu um enorme esforço de planejamento e mobilização de tropas para evitar qualquer tipo de problema”.

A truculência policial, para ele, foi consequência de agressões iniciadas pelos participantes dos atos. “Ao estabelecer bloqueios com força de choque, impedindo que manifestantes de bem não ultrapassassem os mesmos, indivíduos organizados a fazer o mal começaram a agredir os policiais. Houve revide para se defender e tentar acabar com aquele tumulto”, conta.

O major acha que os eventuais erros devem ser corrigidos pela própria instituição com a ajuda da sociedade. A Corregedoria da PM, segundo ele, está apurando todos os desvios de conduta apresentados pelo Ministério Público, Polícia Civil e ouvidorias. Os prazos de conclusão das investigações dependem de cada caso.

Freire avalia que a atuação policial foi positiva. Ele explica que o COE é responsável direto pelo Batalhão de Choque, Batalhão de Operações Especiais (Bope), Batalhão de Ações com Cães (BAC) e Grupamento Aéreo e Marítimo (GAM), que trabalharam em conjunto durantes as manifestações. Foram criados centros de comando onde havia monitoramento das tropas e do andamento dos protestos, através de imagens em tempo real de helicópteros.

Policiais infiltrados

O major comenta ainda a veiculação na imprensa e nas redes sociais informando que policiais sem farda estariam infiltrados nos protestos lançando coquetéis Molotov contra outros policiais fardados, o que ele considera sem fundamento. “Nem as próprias imagens e fotos divulgadas comprovaram algo. Houve até perícia das imagens, que não constatavam nada do que foi divulgado”, rebate. “Existem serviços reservados, que todo mundo conhece como P/2, que são policiais militares que não trabalham fardados, justamente para arrecadar informações para repassar para a tropa fardada”, explica. Segundo ele, esses agentes “poderiam muito bem ser utilizados para deter ou até mesmo prender elementos que tivesse algum potencial lesivo para população ou policiais. Em nenhum momento estariam contra a lei”.

O vereador Renato Cinco (PSOL) cita, no entanto, que os vídeos divulgados mostram policiais tirando a farda perto da Cinelândia e pessoas arremessando bombas caseiras após atravessar a barreira da polícia ao se identificar. “Há indícios de que boa parte da suposta violência das manifestações partiu, na verdade, de policiais infiltrados”, afirma o parlamentar.


Manifestantes reivindicam o fim da PM no ato contra o governador Sério Cabral, no dia 26 de julho. foto: Mídia Ninja

Desmilitarização da polícia

Renato Cinco, sociólogo formado pela UFRJ,  afirma que historicamente a PM sempre agiu com muita violência. Ele cita exemplos como a repressão contra os  movimentos abolicionista e republicano, ainda nos tempos do Império, no final do século XIX. “Já durante a Ditadura Militar, a polícia foi reestruturada e tomou a forma que tem atualmente”, comenta. “Acho um equívoco a polícia ser militar. Acho que a natureza das atividades dos militares é diferente da natureza da atividade policial. O militar existe para defender o país em caso de guerra. O treinamento deles é para combater um inimigo. A polícia deveria ser treinada para defender o cidadão e as leis.”

Nesse sentido, o vereador se posiciona a favor da desmilitarização da PM – uma das principais reivindicações nos protestos que continuam acontecendo. Ele explica que a divisão das polícias foi definida na Constituição. O processo de desmilitarização, portanto, tem que ser feito através de uma emenda constitucional aprovada pelo Congresso Nacional. 


Renato Cinco entende que, para o policial, é melhor que exista apenas uma polícia, a civil, já que considera necessária a mobilização para exigências de melhorias na profissão, como o aumento de salário. “Na própria estrutura da polícia tem uma hierarquia militar. Os policiais são proibidos até de se expressar livremente sobre problemas que acontecem dentro da corporação”, comenta. “Acho que a desmilitarização é o caminho para a gente construir uma polícia que respeite mais os direitos da população e os direitos dos próprios policiais.”

Em recente entrevista, o secretário estadual de Segurança Pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, declarou considerar a opção da desmilitarização da PM válida, se for bem esclarecida. Já o major Rafael Freire se diz a favor da criação de uma polícia unificada estadual. No entanto, o major destaca que é necessário um período longo de ajustes, pois apenas desmilitarizar a PM não resolveria os problemas atuais.

Freire ressalta a carga histórica negativa que a instituição carrega por conta da Ditadura Militar. Para ele, a falta de preparo e a manipulação política realizada pelo Estado enfraquecem as polícias militares. Ele exemplificou citandos os protestos: “(os protestos) não têm nada a ver com as polícias militares e sim contra os governos corruptos, mas a única instituição que está nas ruas é a PM. Parece que a culpa por tudo é dela”.

Repórter NINJA entrevista policial militar sobre as ações de violência nas manifestações, no dia 5 de julho. foto: Mídia Ninja

Arbitrariedade e gás de pimenta

Wesley Prado, estudante de Jornalismo da UFF, participou de todos os protestos antes de ser preso no último dia 17 de junho, em frente a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). Ele trabalha com conteúdo audiovisual e conta que foi preso por não comprovar vínculo empregatício com empresa jornalística ao ser abordado pela polícia. “O policial do Choque, ao me ver na área de atuação deles com uma câmera pequena e sem identificação clara, perguntou se eu era da imprensa. Respondi que sim. Pediu crachá e eu disse que não tinha”, conta Wesley. “Depois disso, ele simplesmente me deu voz de prisão e foi me arrastando agressivamente para dentro do ônibus.”



O estudante afirma que os policiais foram truculentos. “Gritavam e xingavam a gente. Arrebentaram minha mochila e tentaram quebrar minha câmera enquanto eu tentava filmar o rosto deles. Dentro do ônibus, eles ameaçaram fechar tudo e jogar bomba de gás caso a gente não ficasse quieto”, comenta. “Cercearam-nos o direito de falar, sob esse tipo de ameaça absurda. Durante o percurso da Alerj até a 5ª Delegacia de Polícia (DP), sentimos que eles davam leves toques no spray de pimenta.”

Para ele, a atuação da PM foi reveladora. “A polícia democratizou o gás de pimenta e a arbitrariedade. Atingiu os olhos de seus filhos, prendeu estudantes universitários, mendigos, chegando ao cúmulo de acusar um cadeirante.” Perguntado se achava que essa violência resultava de despreparo policial, Wesley Prado afirma que pensa o contrário: “são inúmeros os indícios de ataque à liberdade e ao direito de ir e vir que apontam problemas sérios no que tange à formação e treinamento desses policiais”.

Em julho último, o Ministério Público iniciou investigações depois de receber denúncias de que a Polícia Militar do Rio de Janeiro adquirira bombas de gás lacrimogêneo mais fortes do que o permitido pelas normas brasileiras. A compra foi feita em caráter emergencial no dia 19 de junho, dois dias depois do episódio da prisão do estudante de Jornalismo da UFF, porque o estoque da PM ficou praticamente zerado. 

O major da PM Rafael Freire explica que todos os policias são treinados para utilizar qualquer tipo de material não lesivo. Diversos cursos são ministrados aos agentes para prepará-los, inclusive pelo fabricante dos materiais (aqui no Rio, a empresa Condor). No entanto, o número de denúncias comunicadas ao MP fez com que fosse recomendada a restrição do uso dessas armas não letais.

Mídia alternativa e os papéis das redes sociais

A Internet teve papel primordial na série de manifestações que tomaram os noticiários nos últimos meses. Grupos como o Movimento Passe Livre (MPL), que liderou os primeiros atos pela redução da tarifa dos ônibus no Rio, utilizaram as redes sociais para organizar e divulgar os protestos. As mídias alternativas (ou contra-hegemônicas) também divulgavam e compartilhavam informações e denúncias em tempo real, através das redes sociais. 

O coletivo de jornalistas Mídia Ninja (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação) é um exemplo de imprensa alternativa que tem como diferencial a transmissão de fluxo de vídeo em tempo real. Em uma entrevista por e-mail, integrantes da Ninja, que não se identificaram, comentaram sobre a funcionalidade do equipamento que usam durante os protestos. “O smartphone consegue reunir aplicativos que permitem a transmissão ao vivo e móvel em ambientes de acesso mais difícil com câmeras profissionais”.  Dessa forma, explicam que há um envolvimento maior do jornalista com a cobertura, já que ele pode caminhar livremente e conversar com as pessoas que participam do evento sem intimidação.

Segundo eles, ainda que os jornalistas do coletivo trabalhem sem equipe, não há muita vulnerabilidade no trabalho, porque milhares de espectadores pela Internet acompanham e repercutem instantaneamente o que acontece. “A não existência da equipe é circunstancial, e só traz ônus operacionais, não pesando tanto na segurança dos midialivristas que estão em campo”, completam.

Diferente da mídia tradicional, eles dizem tentar espaço de interlocução dentro dos protestos. “A Mídia Ninja mostra o que vê nas ruas, sem cortes e sem edição, e a grande imprensa tenta dizer a versão oficial dos fatos, sem entender que a verdade é muito mais complexa e tem que ser buscada no corpo a corpo, nas ruas”, explicam.

Quanto a PM, eles acreditam que o caráter repressivo nas manifestações seja fruto da origem da instituição. “O problema é que a Polícia Militar nasceu da necessidade de se tratar manifestantes como inimigos”, afirmam. “Acreditamos que isso esteja na raiz da repressão. O restante das flutuações de comportamento vem de decisões políticas, mas boa parte do que acontece está fora do controle, porque é da natureza da PM.”

Amanda Azevedo, a estudante vítima da violência apresentada no começo dessa reportagem, também utilizou as redes sociais para denunciar o que presenciou. “Fiquei tão assustada com o que aconteceu que não acreditei que alguma denúncia formal surtiria efeito”, afirma. Para ela, a polícia militar estava muito coordenada. “Não acredito que toda essa violência deva ficar sob responsabilidade de cada policial individualmente. O responsável por isso é o sistema que os controla.”

Busca Cadernos

Loading

Quem somos

Minha foto
Cadernos de Reportagem é um projeto editorial do Curso de Comunicação Social da UFF lançado em 3 de outubro de 2010.
 
▲ TOPO ▲
© 2014 | Cadernos de Reportagem | IACS