Ouro Preto: entre o céu e o inferno

18 de julho de 2012 
Por Vinícius Damazio
Ilustrações de Ildo Nascimento

Fotos de Douglas Nascimento, Filipe Galvão e Alexandre Strachan


A senhora ressabiada pergunta enquanto abre a porta de casa. “Explorando a cidade, dando uma volta”, respondo. “É de fora, é? Do Rio?”, o sotaque e os muitos agasalhos devem ter entregado. Balanço a cabeça em afirmativa e ela se apressa em dar o recado: “Vai ver coisa bonita. Pobre é tudo igual”. 

Pobre pode ser tudo igual, mas o contraste com a riqueza – cultural, se não outra – fica mais evidente em cidades turísticas e históricas como Ouro Preto.

Com pouco mais de 70 mil habitantes, escondida num vale de noites geladas nas montanhas mineiras, a cerca de 100 km de Belo Horizonte, a cidade setecentista seria invadida naquela quinta-feira, 28 de junho, por estudantes universitários de todo o Sudeste.

O passeio para quem vinha para o Intercom Sudeste, congresso regional de Comunicação Social, incluía o traçado obrigatório para qualquer um que vá encarar o sobe-e-desce das ladeiras de Ouro Preto: a viagem no tempo a bordo das igrejas e museus espalhados pela região, o artesanato em pedra-sabão, a Mina do Chico Rei e o passeio de Maria Fumaça. O tipo de diversão que minha conta bancária mirrada e carteira vazia não permitiam, já que cada porta de igreja, casario e museu cobra ingresso.

Foto: Douglas Nascimento

Check in feito, a saída é andar sem rumo pela cidade que foi palco da Guerra dos Emboabas, confronto sangrento entre paulistas, portugueses e baianos entre 1707 e 1709, classificado como “agitação isolada” nas minhas apostilas de Ensino Médio que narravam a história desse Brasil cordial e pacífico, como se o ódio não tivesse lugar no país.

Bastaram alguns minutos caminhando a esmo em uma quinta-feira de sol para desmistificar o fast food do “tour city”, como anunciava a jaqueta de um guia turístico local. O anacronismo prometido pelo site oficial de turismo de Ouro Preto vai cansando nas subidas das longas escadarias e morre pelo caminho. São joalherias, cozinhas chiques e escritórios de advocacia para todo lado. Desviando duma grande turma de adolescentes que se espremia pelas calçadinhas, dei de cara com um totem de uma empresa de celular.

Foto: Douglas Nascimento

Os restaurantes tradicionais, salvo o feijão claro e uma suave lembrança de banha de porco, são tão mineiros quanto os de shopping centers. Os pães de queijo tão gostosos quanto os das casas de mate. Para ver a cidade como querem os turistas, só achando que “Ouro Preto está acima do bem e do mal”, como diz o portal de turismo. Para eles, “quem não pensa assim não aproveita bem a cidade”. Como não devem aproveitar os moradores de lá.

As vielas apertadas, não tão longe do centro, abrigam casas aos pedaços e becos insalubres, escondidos pelas igrejas folheadas a ouro. Um severo contraste urbano. Gente miserável ao lado de tanta riqueza. 

O clima está meio cinzento, nublado, e venta. Mas um grupo de moleques não se abala. Batem bola num chão de terra, ao lado de um valão fétido. A primeira impressão é que este poderia ser um canto qualquer de São Gonçalo ou uma daquelas comunidades esquecidas da Zona Norte carioca.

Foto: Filipe Galvão

Tenho algum tempo até o início dos eventos na Universidade Federal de Ouro Preto. Arrisco. Rua Olímpia Scott, Rua Mecânico José Português, Rua Henrique Adeodato, Rua Gabriel Santos. Durante a caminhada, passo por alguns dos caminhos mais tortuosos de Ouro Preto: moradias simples, algumas casas muito pobres, ruas mal cuidadas e moradores muito desconfiados.

A cada parada a mochila pesa mais. A fome e o cansaço me vencem. Entro num bar, peço um hambúrguer e um café (as duas opções mais baratas escritas num cartaz ao lado de um monte de cachaças empoeiradas), sento diante do balcão e sou recebido com troça pelos pedreiros que trabalham na casa ao lado. “É do Rio, é? Tá com frio? Bicha!”, diz o mais sacana. Ossos do ofício. Se falasse francês, a obra nunca ficaria pronta.

Foto: Douglas Nascimento

Muitas das casas são daquelas que ficam anos para que todos os cômodos sejam erguidos. E que, posteriormente, terão seus quintais e corredores ocupados por membros futuros da família. Algumas, embora precárias, com paredes de tijolos à vista, exibem antenas de TV a cabo em seus telhados de Brasilit. Para o visitante mais ingênuo, deve ser decepcionante se espremer por aqueles becos repletos de construções frágeis, com chão de cimento grosso e matagal alto.

Tudo bem que o que se vê não seja assim tão novo para os brasileiros: a miséria da cidade histórica não é nenhuma novidade para quem habita debaixo da linha do Equador, mas a oposição do ouro ofuscante da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar, a segunda mais rica igreja em ouro do Brasil, e os portões de bambu das casas sem janela, separados por algumas subidas escorregadias é chocante. E, claro, quanto mais se dissipa a muvuca e os flashes das câmeras digitais, mais alarmante a situação é.

Foto: Alexandre Strachan

No município, há treze distritos: Amarantina, Antônio Pereira, Cachoeira do Campo, Engenheiro Correia, Glaura, Lavras Novas, Miguel Burnier, Santa Rita, Santo Antônio do Leite, Santo Antônio do Salto, São Bartolomeu e Rodrigo Silva, além da sede.

Para o IBGE, Ouro Preto possui 28,54% de cidadãos sob incidência de pobreza. Já os indicadores de pobreza e assistência do Ministério do Desenvolvimento Social estimam que 16,92% da população vive com renda abaixo de meio salário mínimo.

A atividade mineradora na região tem histórico de registros de trabalho infantil na grande imprensa e relatos de poluição ambiental por moradores. Retratos da cidade real que ficam de fora dos folders de empresas de turismo.


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