Nos muros da cidade, a arte de quebrar estereótipos

21 de fevereiro de 2012
Ilustrações de Ildo Nascimento

A diferença que separa pichação de grafite é a mesma que vai dos rabiscos nervosos em muros e paredes à pintura colorida de cenas da vida urbana. Mas, se é fácil distinguir uma coisa da outra, o preconceito contra os grafiteiros persiste, embora sua atividade venha conquistando cada vez mais reconhecimento no mundo artístico. O movimento teve início na década de 1970, em Nova Iorque, como forma de expressar a realidade das ruas e a opressão vivida pelas camadas mais baixas da população. No Brasil, a primeira manifestação de grafite aconteceu em São Paulo, na mesma década. Os textos a seguir mostram a experiência recente dos artistas do Santa Crew e Nami, do Rio de Janeiro, e de Lya Alves e Daniel Goaboy, de Niterói, que buscam nas questões sociais inspiração para o seu trabalho.


A lei muda, o preconceito continua



Apesar da elaboração dos traços e da técnica que diferencia o grafite da pichação, ainda existe preconceito contra a pintura dos muros. Em geral, a visão negativa vem da errada crença de que os dois estilos são iguais. Os primeiros passos para a mudança deste pensamento já começaram a ser dados pela aprovação de uma emenda ao projeto de Lei Federal n°176, em abril de 2011, que diferencia pichação de grafitagem e proíbe a venda de latinhas de spray aos menores de idade. Pela nova regra, o grafite não é mais considerado crime se for “realizado com o objetivo de valorizar o patrimônio público e privado mediante manifestação artística, com consentimento de seus proprietários”. Pela lei anterior, tanto pichar quanto grafitar eram crimes, com pena de detenção de três meses a um ano.


No Morro dos Prazeres, um muro colorido com esperança

Por Lara Vieira, Luiza Cunha e Mariana Pitasse

Para quem passava pelo Morro dos Prazeres, em Santa Teresa, e via a movimentação de vários grafiteiros, o motivo da reunião parecia bem simples: um enorme muro branco, pronto para ser desenhado. Era um dos encontros do grupo de intervenção urbana Santa Crew que contou com a presença de seus integrantes e artistas plásticos de outros estados do Brasil. A razão principal, no entanto, era maior que essa. Para promover a marca de tintas australianas Ironlak, o integrante do Santa, Márcio SWK, havia sido convidado para realizar uma intervenção urbana. A escolha do local, assim como a dos demais participantes, ficaria ao seu critério, mas Márcio não teve dúvidas. O artista resolveu trazer àquele enorme muro branco um “alívio para a memória dos moradores”, modificando a imagem triste que o paredão passou a ter para eles após o deslizamento da encosta, ocorrido em abril de 2010.

A tragédia aconteceu em consequência às fortes chuvas e deixou 35 pessoas mortas. Para a população, o muro construído no local ainda é muito marcado pela lembrança do acidente, o que tornou o espaço conhecido como “o muro do deslizamento”. O projeto de remoção completo feito pela prefeitura do Rio só ficou no papel. Na época, o então secretário de Habitação, Jorge Bittar, negou a necessidade de acabar com a comunidade, baseado em um estudo da Fundação GeoRio, que ainda estava em execução. Segundo a entidade, foram investidos R$ 5,4 milhões para obras emergenciais de contenção e melhorias na localidade, que supostamente resolveriam todo o problema. O que não foi suficiente, segundo os moradores. Eles afirmam que a prefeitura teria somente construído contenção para encostas e demolido parcialmente algumas casas atingidas pelos deslizamentos, deixando até hoje os escombros que representam riscos à comunidade no local.

Suavizar o peso da tragédia

O Santa Crew decidiu tentar amenizar a situação. O grupo, que usa o nome do bairro para assinar as paredes que ilustra, buscou retratar figuras da favela em homenagem aos moradores. Promovendo paredes mais coloridas, Santa Crew é famoso pela atuação em Santa Teresa e busca ir além da arte pela arte encontrando na causa social forte motivação para seu trabalho. Dois de seus integrantes, Marcelo Joe e Dune, têm histórias bem parecidas. Após participarem de oficinas realizadas no Morro dos Prazeres, os dois acabaram se apaixonando pelo grafite e entraram para o grupo. Como moradores, durante a intervenção, puderam sentir como é estar dos dois lados: o de trazer mais alegria para o local e também o de aliviar o peso negativo que o lugar carregava.

Além deles, Bigode, grafiteiro baiano, também veio ao Rio para participar do encontro. O artista destacou que a prefeitura de Salvador tem projetos ligados à arte urbana e investe para que pichadores se transformem em artistas urbanos. João Paulo, outro integrante, também apontou algumas das diferenças que existem dentro do grafite. Ele afirma que, diferente do que acontece na capital baiana, a arte urbana carioca não conta com o apoio financeiro do governo ou ONGs. Por outro lado, o grafite do Rio é destacado por João Paulo com a marca que ele julga ser a principal: a união que existe entre as pessoas que participam do movimento.

Arte contra a marginalização

Forte característica do grafite, a influência social que ele pode exercer é bem exemplificada pelo grafiteiro Alexandre Alfa. Morador do Complexo do Alemão, o artista valoriza a escolha pelo caminho das artes como fundamental para ele escapar da criminalidade. Alexandre também trabalha para a oficina da banda O Rappa, que privilegia a arte de rua nos seus CDs e clipes. Atualmente, Alexandre vive do grafite e dos projetos que a atividade promove, o que o coloca em um embate. Segundo ele, o grafite perde sua essência quando exposto em uma galeria de arte, já que é uma forma de expressão diretamente ligada às ruas.

Por outro lado, o grafiteiro Marcelo Ment mostra o caráter artístico que o grafite pode assumir. Como artista plástico reconhecido mundialmente, expôs telas com temas da arte de rua em Amsterdam e em galerias no Canadá e França. Atualmente trabalha com artistas do mundo inteiro, sendo sempre reconhecido pelos seus grafites que remetem a figuras características do Brasil, como artistas do samba e crianças da favela. Assim como Ment, o grafiteiro Acme também teve portas abertas a partir do mundo da arte urbana. Suas verdadeiras telas que estão expostas pelos muros da cidade lhe trouxeram oportunidades para trabalhar com cartoons.


O grafite veste o salto alto

Fernanda Costantino e Letícia Bandeira

Quem pensa que fazer grafite é sinônimo de andar de bermuda larga e boné virado ao contrário se surpreende ao descobrir os rostos por trás da arte espalhada pelas ruas cariocas e assinada pelo grupo Nami. De cabelos longos e loiros, sempre de salto alto e muito bem maquiada, a fundadora da rede feminista, Panmela Castro, lidera um grupo de cerca de 30 mulheres que percorrem a cidade fazendo grafites em prol da causa feminina. No dia 25 de novembro, a Nami se reuniu para grafitar um painel com imagens do cotidiano feminino nos muros da Pedra do Sal, no bairro da Saúde, como forma de homenagear o Dia Internacional Contra a Violência Doméstica.

A rede feminista de arte urbana surgiu em maio de 2010, incentivada pela ONG Caramundo e motivada na luta pelos direitos da mulher. “Apesar de termos igualdade na nossa constituição, culturalmente ainda tem muito para ser conquistado”, garantiu Panmela. A intenção do grupo é inserir a mulher na cena masculina e até machista do grafite. Apesar de uma série de exemplos em contrário, como as camelôs que tantas vezes enfrentam a guarda civil, ou as mães e irmãs que ficam na linha de frente diante da polícia em incursões nas favelas, Panmela ainda acredita que a mulher é um objeto frágil nas ruas e que isso dificulta o seu trabalho.

Em defesa da mulher

Defensoras assíduas do lema: “A arte de mulheres para mudar o mundo”, a Nami projetou seu nome como uma brincadeira com a gíria “mina”, cujas sílabas foram invertidas e deram origem à Nami. A rede é composta por mulheres das mais diversas áreas profissionais, desde artistas plásticas e fotógrafas, até psicólogas e chefes de cozinha. Além da luta contra a violência doméstica, a Nami também contribui na denúncia de casos de estupro e prostituição infantil, trata da dificuldade de inserção da mulher nos espaços públicos de poder e em profissões tidas como atividades masculinas. O próximo passo do grupo é registrar a Nami como uma ONG independente, sem fins lucrativos.

As integrantes se conheceram no mundo do grafite e costumam se reunir em datas comemorativas, além de realizar trabalhos encomendados em casas particulares ou eventos. A Nami também oferece uma oficina gratuita do grafite para mulheres, com o objetivo de formar uma nova geração de artistas urbanas. Além das aulas práticas, a rede promove debates coletivos sobre a causa feminina e o conhecimento em artes. Para conhecer melhor a agenda e o trabalho da Nami, basta entrar no site www.redenami.com.


Entre Pincéis e Sprays

Priscila Motta e Ronaldo Rodrigues

Não há pedestre, por menos curioso que seja, que não pare e observe atentamente um muro grafitado. Muito menos os curiosos olhos de uma criança, como os do pequeno Gustavo, de 6 anos. O menino que esperava com a mãe, Maria Aparecida do Rosário, de 34 anos, num ponto de ônibus na Avenida Feliciano Sodré, no Centro de Niterói, não se conteve ao ver o painel onde pinguins colorem o muro.

“Outro dia nós perdemos o ônibus, pois ele (Gustavo) estava encantado com os desenhos. Queria tocar nas pinturas para ver se era real”, conta Maria Aparecida. A mãe contou ainda que Gustavo não é o único a admirar o trabalho dos artistas do grafite: “Eu acho um trabalho lindo. Eles são muito talentosos e criativos. É uma pena que não sejam valorizados como deveriam ser”.

Não são mesmo. Tanto que, vez por outra, são alvos de desaforos ou reclamações. Foi o que ocorreu com Lya Alves, que ouviu um rabugento “tá sujando o muro” enquanto fazia seu mais novo trabalho em um paredão de cinco metros de comprimento e três de altura.

A grafiteira começou a pintar ainda criança por influência da família, em especial do tio que, na década de 80, já deixava sua marca nas ruas da cidade. Autodidata, a artista trabalhou inicialmente com artes plásticas para depois seguir o caminho do grafite. Mesmo assim, ela se diz acostumada com reações negativas. “Apesar de maior aceitação do público, sempre tem alguém que passa de ônibus ou de carro e grita alguma coisa assim”.

Em seu trabalho, Lya traz figuras realistas, misturando o uso do spray ao do pincel. “Pelo fato de o material aqui ser muito caro, usamos essa técnica mista, o que se tornou uma marca do grafite brasileiro”. Os artistas apresentam grandes inovações levando os problemas das cidades para as paredes. No entanto, cidades menores como Niterói, ainda não contam com uma formação para profissionais da área e projetos capazes de influenciar os pichadores a seguir no grafite.

Falta de apoio oficial

O músico Marcos Sabino, presidente da Fundação de Artes Niteroiense (FAN), afirma que não há, por parte do Poder Público, interesse em projetos ligados ao grafite. Segundo ele, falta maior interação entre a Prefeitura de Niterói e os artistas. Sabino enfatiza que a Secretaria de Cultura está aberta a auxiliar os artistas, mas que, para isso, seria preciso que, primeiro, os grafiteiros a procurassem.

A FAN, que trabalha em conjunto com a Secretaria de Cultura da cidade executando ações culturais, já desenvolveu projetos com alguns grafiteiros em 2009. Um deles foi um trabalho de composição de painéis. Durante as comemorações do aniversário da cidade, o palco onde a companhia de balé da coreografa Débora Colker se apresentou, foi enfeitado com grafites. Porém, tratou-se de um caso isolado, já que nenhuma política foi desenvolvida depois. “Talvez, a gente tenha que ter uma iniciativa. Mas para que isso ocorra tem que haver um link entre as partes”, afirma Sabino, embora reconheça falta de recursos e estrutura.

As afirmações do músico contrastam com o histórico apresentado por Lya. Durante o ano de 2008, a grafiteira lutou por apoio ao projeto Philosoffiti, uma iniciativa para formar crianças e jovens na arte do grafite. O programa, no entanto, não teve continuidade. “Nós criamos projetos, mas não conseguimos patrocínio nem apoio, e eles praticamente não saíram do papel. Fizemos o que deu. Era tudo por amor, pois não havia quem apoiasse”, revela a grafiteira. Ela se lembra com tristeza do desperdício de talento e potencial de seus alunos, que chegaram a receber menção honrosa em trabalhos entregues na Associação Fluminense de Belas Artes.

Necessidade de projetos para auxiliar na formação de profissionais, programa de incentivo à arte na cidade ou falta de maior diálogo entre governo e artistas. São essas as questões importantes, segundo as fontes, para o desenvolvimento dessa nova forma de expressão artística. Elas criticam principalmente a falta de debate sobre os rumos a serem dados a esta arte sem que se retire dela suas principais características: ser uma arte urbana, livre e espontânea.


Daniel Goaboy:


Com 14 anos, muitos meninos querem apenas jogar bola, mas foi com essa idade que Daniel Goaboy começou a fazer seus primeiros traços nos muros da cidade. Antes mesmo de ter sua primeira namorada, o rapaz já empunhava uma lata de spray. O que começou como uma forma de irritar os pais cresceu e hoje se tornou uma forma de se expressar, uma paixão, um estilo de vida. No entanto, até o rapaz se firmar no mundo do grafite foi uma longa caminhada.

“Eu comecei como pichador. Queria ter fama, ser reconhecido no mundo da pichação. Como muitos outros pichadores, já estava acostumado a levar safanão de policial, mas um dia fui preso. Passei duas noites na cadeia por invasão. Saí depois de pagar fiança, mas vi que aquilo não era pra mim”. Depois de pagar a fiança e ganhar a liberdade, motivado também pela gravidez da esposa, Goaboy decidiu se afastar do piche e seguir no grafite. Uniu-se então a um grupo de grafiteiros, formando a Máfia 44.

Apelo contra as drogas

Não há quem não passe pelo Centro de Niterói e não pare para observar o painel que traz a seguinte frase: “Você é um Craque na vida, ou sua vida é craque?”. O grafite, feito pelo Máfia 44, chama a atenção pela qualidade artística e pela mensagem referente ao uso das drogas. Este é apenas mais um dos trabalhos da equipe que Goaboy define como “um grupo de arte urbana. Além de grandes amigos, muito mais que um grupo de grafiteiros”.

A explicação para esta definição vem do fato de, além do grafite, eles também produzirem música e fotografia. Tendo como marca registrada do trabalho a preocupação com temas sociais e urbanos, eles transformam a rua numa grande galeria de artes aberta, opção para aqueles que não têm a oportunidade de frequentar os museus.

Apesar da paixão declarada pela arte, Goaboy concilia a pratica com a profissão de web design, da qual retira o sustento de sua família. Ele trabalha como gerente de produção visual de uma agência de turismo em Icaraí, bairro nobre de Niterói. “Eu faço isso por amor, porque infelizmente o grafite não coloca comida no prato de ninguém. E ainda tem gente que acha que grafiteiro é vagabundo. Todo mundo da Máfia e a maior parte dos caras independentes que a gente conhece estuda ou trabalha e faz grafite quando dá, quando tem tempo”, argumenta o rapaz.

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