Olho no olho com Míriam Leitão

03 de janeiro de 2012
Por Lara Vieira de Faria e
Letícia Bandeira


“De quanto tempo vocês precisam para fazer a entrevista?”, perguntou Daniela, a secretária de Míriam Leitão. Diante de vinte e duas perguntas minuciosamente escolhidas, talvez fosse necessária uma hora de conversa, pelo menos. “Vocês têm 25 minutos”, disse por fim. OK. Rapidamente foi feita uma seleção das perguntas mais relevantes no meio de um pequeno hall que abrigava uma estante com vários exemplares de O Globo, Valor Econômico, Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo.

O escritório da jornalista fica no bairro da Gávea, cercado pelo verde, e funciona como uma extensão de sua casa. Depois de encaminhadas para a sala de reuniões, onde seria feita a entrevista, a espera foi de pouco mais que cinco minutos. A sala mais parecia uma biblioteca, rodeada por estantes com milhares de livros e revistas. Sobre a mesa de mármore de seis lugares estava um livro sobre o Jornal do Brasil com várias marcações de post-it rosa. O que mais chamava atenção na sala, porém, era o grande quadro escolar branco pendurado em uma das estantes e todas as histórias que aquele quadro já devia ter contado.


Interrompendo os devaneios, Míriam Leitão surge pela porta e, depois das apresentações iniciais, a conversa simplesmente flui. De uma Míriam simpática e sempre muito precisa em suas ponderações surgem conselhos sobre como pesquisar muito antes de realizar uma entrevista, confissões como a de que não suporta entrevista via e-mail – “nada substitui a entrevista olho no olho” – e muitas histórias, como a da vez em que pensou que o então deputado Anthony Garotinho fosse atacá-la. Míriam Leitão também afirmou não existir alguém em especial que gostaria de entrevistar. “Meu sonho não é entrevistar uma personalidade, eu quero estar onde a notícia está”, disse. Assim, sem perceber, a entrevista que estava prevista para durar apenas vinte e cinco minutos levou uma hora e quinze.

Hoje, a maioria das fontes passa por treinamentos para aprender a se relacionar com a mídia e se comportar diante das câmeras (media training). O que fazer diante de entrevistados assim preparados? Como é possível conseguir driblar essa espécie de blindagem que muitos entrevistados exibem?


Míriam: Você tem que se preparar também. Existem várias formas. Entrevista é uma arte que depende de muita coisa. Depende do veículo, do que você quer, de quem você vai entrevistar, do momento. Um poeta você entrevista diferente de um político, que é diferente de uma pessoa comum, um cidadão.
Cada pessoa tem um jeito, às vezes você precisa ser suave para que a pessoa diga o que pensa, às vezes você tem que ser firme para que a pessoa realmente responda sua pergunta. Entrevistar candidatos a cargos públicos requer uma técnica específica, eu me preparo com muito cuidado.Já entrevistei vários candidatos a presidente, geralmente o que eu faço é estudar muito o que ele costuma dizer, os assunto em que é fraco ou forte e ver que tipo de resposta ele dá diante dessas questões. Aí você prepara uma abordagem que já elimine parte da resposta pré-preparada: “levando-se em conta que o Brasil avançou muito nos últimos tempos, qual o próximo avanço?”. Você já tem que matar um pouco a resposta que ele decorou.

Como funciona?


Míriam: Eu preparo as perguntas com antecedência. O mais importante numa entrevista é a segunda pergunta, não a primeira. Quando você faz uma pergunta, o entrevistado pode responder de diversas maneiras, você tem que estar preparado para a pergunta seguinte de acordo com o que ele falar, você tem que preparar o bote, uma forma para desarmá-lo. Outra coisa importante é não abandonar a sua pergunta. Eu me lembro de uma entrevista que eu fiz com o (Paulo) Maluf, que nunca respondia o que o entrevistador perguntava, em que decidi não abandonar a minha pergunta . Insisti, e na quarta vez em que perguntei a mesma coisa ele me olhou com raiva e o câmera fechou no rosto dele. O Maluf ficou perplexo porque eu não tirava o microfone, ele ficou 45 segundos em silêncio olhando para mim – o que na televisão é um tempo enorme. Eu trabalhava em uma TV experimental da Editora Abril. A gente botou no ar “o silêncio de Maluf” e aquilo rendeu até um prêmio, uma menção honrosa no Museu da Imagem e do Som.

Alguns entrevistadores acham que se deve evitar a discussão com o entrevistado a todo custo. Qual é a sua opinião a respeito? Às vezes vale a pena confrontar um entrevistado?


Míriam: Imagina que o candidato tem uma dificuldade natural. Você não pode pegar tão pesado, tem que calibrar as perguntas. Ao mesmo tempo, deve tratar todos igualmente, uma vez que você foi duro com um, tem que ser com o outro. Com alguns candidatos, se você pegar muito pesado o telespectador vai pensar que você é o vilão da história. Eu tive que perguntar para a Marina (Silva) sobre a saúde dela, mas ela é toda fofa, toda calma, toda pequena e eu não podia perguntar: “Vem cá, você não acha que você está doente demais pra ser presidente, não?”. Então eu disse: “o Brasil admira sua força, sua capacidade de superação e você já enfrentou vários problemas de saúde na sua vida. Ser presidente é um cargo muito pesado, será que a senhora está, no ponto de vista médico, preparada para presidir o Brasil?” Primeiro eu cerquei o terreno, não pode parecer rude, senão o eleitorado nem escuta a resposta e pensa, “que absurdo!”.

É mesmo delicada a posição do entrevistador.


Míriam: Você não pode fazer com que a entrevista vire um bate-boca, não vale a pena entrar em confronto, mas você tem que firmar sua posição e deixar claro, quando o candidato foge à pergunta, o que você queria saber e ele não disse. Você tem que estar sempre preparado para uma acusação implícita. Uma vez eu estava entrevistando a Heloísa Helena (candidata à presidência pelo PSOL), fiz uma pergunta e ela me disse: “Essa é a técnica do Goebbels, uma mentira repetida muitas vezes vira uma verdade”. Goebbels, como vocês sabem, é um nazista, ministro da Comunicação do Hitler. Então eu perguntei a ela: “Você está me chamando de Goebbels?”. E ela respondeu: “Não, não, não estou falando com você”, entende? Você também não pode se deixar atacar, tem que ser sutil e curta. Tem pessoas que te surpreendem. O Lula uma vez me surpreendeu. Eu perguntei a ele: “O senhor disse que R$ 40 mil de propina é troco, então quer dizer que para o senhor corrupção se mede pelo valor da propina?”, e ele deu a seguinte resposta: “Eu errei, eu não podia ter falado isso. R$ 1 é corrupção”. Quando isso acontece você não pode ser aquela chata que continua atacando e pedindo explicações. Perdeu, playboy, parte pra outra pergunta.

Lemos em um site que você cursou a faculdade de jornalismo depois de já exercer a profissão por vários anos, isso é verdade? Qual é, na sua opinião, o papel da universidade na formação do jornalista?


Míriam: Eu entrei na faculdade de História na cidade onde eu morava, em Vitória, no Espírito Santo, porque na cidade não tinha faculdade de Jornalismo, mas comecei a trabalhar imediatamente em um jornal e me apaixonei pelo jornalismo. Logo depois, fui presa pela ditadura, e quando voltei eu não quis mais continuar em História, estavam abrindo a faculdade de Comunicação e fui direto para lá.
Eu acho importante estudar, há muitas formas de formar jornalista, mas eu não conheço nenhuma que não seja estudando. O jornalista devia passar por outras áreas, pois ele vai precisar disso, de bagagem para sua profissão. A faculdade de jornalismo não vai te ensinar tudo, todas as técnicas, mas você aprende o básico, então eu sou a favor do curso, que ele seja repensado, acrescido, aperfeiçoado.

Você acha que uma entrevista por e-mail pode render bem, ou o contato pessoal faz muita diferença?


Míriam: Eu odeio entrevista por e-mail. O entrevistado tem controle total sobre o produto final, ela vai trabalhar pra você e você não faz nada, corta, cola e publica. Às vezes não tem outro jeito, é a única forma de chegar perto da pessoa, mas sempre prefira o contato pessoal. E muitas vezes se for uma pessoa conhecida você vai publicar uma entrevista com o assessor dela, vai publicar uma mentira. Acho que os jornalistas jovens estão se esquecendo da força da presença. Presente você lê a linguagem corporal, você tem outras ideias, o “olho no olho” vai te dizer muitas coisas durante a entrevista.

Como você pensa a entrevista depois do advento da internet? Muita coisa mudou?


Míriam: O telefone já tinha dominado a redação por causa da logística do trânsito da cidade, a demora e a distância. Eu passei por isso com a minha geração, e agora vem a internet. Eu continuo achando que nada substitui o contato “olho no olho”. Às vezes quando você está saindo da entrevista, o entrevistado te dá uma informação que é o lead da sua matéria, muda completamente o que você tinha pensado, enfim, é muito melhor.

Existe alguém em especial que você ainda gostaria de entrevistar e não teve oportunidade? E alguém que você tentou entrevistar e não conseguiu?


Míriam: Quero entrevistar tanta gente... Hoje eu gostaria de estar na Rocinha, por exemplo. Meu sonho não é entrevistar uma personalidade, eu tenho desejo de estar onde a notícia está, onde tudo acontece.

Você já passou por alguma situação constrangedora? Por exemplo, o entrevistado encerrar abruptamente a entrevista, retirar-se da sala, ou demonstrar indignação ou contrariedade, a ponto de isso inviabilizar a continuação da entrevista?


Míriam: Aconteceu, por exemplo, numa entrevista que fiz junto como o Renato Machado com o Garotinho, quando ele era candidato (a presidente da República). O Renato perguntou: “O senhor disse que vai colocar na economia R$ 300 bilhões, de onde você vai tirar esse dinheiro?”. Na época, era mais que o orçamento, e ele respondeu: “É mentira da Míriam. Ela publicou isso, eu até falei que não era verdade, mas ela não quis tirar o que tinha publicado”. Não tinha acontecido nada disso, ele queria me desestabilizar antes que eu começasse com as perguntas difíceis. Por sorte, eu tinha levado alguns poucos papéis, dentre os milhares que tinha lido para me preparar para o debate, e ali havia uma entrevista que o Garotinho tinha dado para o jornal Valor Econômico em que citava os mesmo R$ 300 bilhões. Então esperei ele falar tudo que tinha para falar, me chamar de mentirosa, e depois disse: “Candidato, o senhor disse sim, nós estávamos no aeroporto, o senhor jamais pediu para eu não publicar, tanto disse como deu a mesma declaração para o Valor Econômico no dia tal”, e mostrei para ele a reportagem. Garotinho reagiu falando que não tinha ido ali bater boca comigo e respondi como uma lady: “Nem eu quero, candidato. Eu só quero dizer que o senhor realmente disse isso”. Depois só escutei meu chefe dizer através do ponto eletrônico: Pa-ra-béns!

Como você se prepara para uma entrevista nos diferentes veículos de comunicação? No rádio e na TV, por exemplo, por ser ao vivo, a pressão na hora de entrevistar é maior?


Míriam: Para uma entrevista ao vivo, na televisão, você tem que se preparar muito mais do que uma que você vai fazer pra jornal impresso, já que nessa você pode ligar pra tirar dúvidas depois. Não é que você tenha que estudar menos, só é mais difícil na TV. Em geral você tem sempre que saber o que você quer dessa entrevista, você não
está indo lá para tirar suas dúvidas ou imprimir sua raiva, sua paixão, você esta indo lá como veículo da informação. Eu adoro isso, eu tenho quase quarenta anos de jornalismo e nunca tive um minuto de dúvida sobre o que eu queria fazer, acho que é uma profissão interessantíssima, ainda mais agora que passa por uma revolução. O jornalismo vai continuar mudando nos próximos anos, mas os fundamentos continuam os mesmos. Uma boa história só se faz se você tiver capacidade de ver e ouvir.

Você acha difícil “tirar o coração” da entrevista? Deixar sua opinião de lado?


Míriam: Ninguém tirará completamente. Por exemplo, eu sou contra a mudança no Código Florestal, mas isso não me impede de fazer um debate e tentar ser o mais imparcial possível. Se os dois lados estão sendo representados, farei perguntas pertinentes e ouvirei ambos os lados embora todo mundo conheça minha posição. Mas se eu for entrevistar separadamente o desmatador eu vou ser dura, muito dura.

É como se você interpretasse vários papéis, não é?


Míriam: O jornalista faz isso, várias vezes você vai mudar de papel. É isso que torna o jornalismo tão interessante, aqui ninguém morre de tédio. Eu lembro que saí recentemente para entrevistar o Sebastião Salgado, mas eu tinha ficado sabendo que a Vale do Rio Doce tinha desviado um rio ali perto de onde seria nosso encontro, então eu dei uma passada lá para ver como estava. Eu sentei na beirada do rio seco que eles tinham desviado, dei um pulo e fui lá embaixo para o leito do rio. O meu fotógrafo disse: “Cara, não estou acreditando, você é a Míriam Leitão! Como você dá um pulo, pula o muro e vai parar dentro do rio?”. Eu falei assim: “Presta atenção, Fábio! Aquilo ali é um personagem, eu sou jornalista, eu gosto de informação e aqui tem informação. Só uso salto alto porque tem que usar salto alto lá (no estúdio). Mas se for para ir para uma favela eu vou de tênis. Eu uso o sapato que for necessário para chegar na notícia”.


Míriam Azevedo de Almeida Leitão é uma referência no jornalismo de economia e negócios e tem quase 40 anos de carreira. Já trabalhou na editoria de Brasil da Veja e foi editora de Economia e colunista no Jornal do Brasil. Atualmente, escreve uma coluna diária para O Globo, onde trabalha desde 1991, mantém um blog no site do jornal, é comentarista da rádio CBN e do programa Bom Dia Brasil, e tem um programa de entrevistas na Globonews. É autora dos livros Convém Sonhar, de 2010, e Saga Brasileira. A longa luta de um povo por sua moeda, publicado neste ano.


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