10 de janeiro de 2012
Por Gustavo CunhaEra uma quinta-feira de julho de 2011 quando a jornalista Consuelo Dieguez escutou a frase que não esperava. Inflamado pelo discurso feito, horas antes, em homenagem aos 80 anos de Fernando Henrique Cardoso, e irritado com uma conversa que tivera, em seguida, com o senador Fernando Collor, o então ministro da Defesa, Nelson Jobim, disparou críticas à ministra das Relações Institucionais e à da Casa Civil: “a Ideli (Salvatti) é muito fraquinha e Gleisi (Hoffmann) nem sequer conhece Brasília”.
Repórter da revista Piauí, Consuelo Dieguez se assustou com as palavras de Jobim. Sabia que o ministro – naquele momento exaltado – queria falar, mas não esperava uma afirmação daquele porte. Almoçavam no próprio ministério antes de se dirigirem ao gabinete para uma entrevista mais formal. Há algum tempo, Consuelo acompanhava a agenda de Jobim. Coletava informações para um perfil do político, que seria publicado em agosto, na edição 59 de Piauí.
A matéria tinha como objetivo principal discutir questões relacionadas ao Ministério da Defesa e expor como Nelson Jobim conseguia se manter, em cargos diferentes, em tantos governos – no caso, Fernando Henrique, Lula e Dilma. “Queríamos falar como ele conseguia se segurar. E acabou que ele não conseguiu, né? Foi até uma ironia, porque a matéria era para isso e ele caiu”, comentou Consuelo, referindo-se à exoneração de Jobim após a publicação do texto na Piauí.
No ponto alto da entrevista, a jornalista não utilizava gravador nem anotava: apenas escutava. Jobim chegou a negar publicamente o que dissera à repórter, mas o assessor de imprensa do ministro, que o acompanhava nas entrevistas, confirmou posteriormente todas as declarações. “Nas entrevistas, acontecem coisas que a gente não prevê”. Hoje, somente quando o entrevistado não autoriza a gravação, ela abre mão do aparelho. “Quando a pessoa não deixa nem anotar, na hora em que acaba a entrevista eu começo a escrever”.
Para a repórter, que desde 1998 trabalha em revistas – passando pela Veja e pela Exame até chegar, em 2006, na Piauí –, a vantagem de se fazer um perfil é justamente ter mais tempo para obter informações e trabalhá-las com mais folga.
A sorte do acaso
Em muitos momentos, não é o gravador ou a dupla caneta-papel que vão fazer a diferença na hora da apuração. Quando foi entrevistar Evo Morales, Consuelo teve a sorte de o acompanhar em uma viagem de avião. Dias antes, estava tensa e receosa se conseguiria, com o assessor de imprensa do presidente boliviano, a autorização para uma entrevista. Foi pega de surpresa ao receber a notícia de que poderia viajar com ele. Mas ainda não sabia que também embarcariam o embaixador do Irã na Venezuela e o embaixador da Venezuela na Bolívia. “Foi uma situação daquelas maravilhosas. Tudo que se espera na vida!”, exclamou. Única jornalista a bordo, Consuelo presenciou todo o diálogo entre as autoridades, que transacionavam pactos bélicos e políticos, frisando, entre outras coisas, o “combate” aos Estados Unidos.
Para a matéria, a situação – inesperada – foi mais importante do que a própria entrevista com o presidente. “O diálogo, no sobe-e-desce do avião, foi inacreditável”. Mais uma vez, Consuelo Dieguez não gravava e não anotava: teve de se arranjar apenas com a atenção de olhos, ouvidos e cérebro apurados.
Saber ouvir
Desde que passou a fazer perfis para a Piauí, Consuelo adota como principal técnica não interromper em demasia o entrevistado, “a não ser que ele esteja fugindo muito do assunto”. Na opinião da repórter, o trabalho dos jornalistas se assemelha muito à ocupação dos terapeutas. “No caso do perfil, que você tem que conhecer a personalidade daquela pessoa, quanto menos você interromper, melhor. Como tem uma pessoa ali para o ouvir, o entrevistado começa a falar de uma história que vai puxando várias outras histórias. E aí entra quase em um processo de análise mesmo. E de repente, você tem uma grande história – porque essa pessoa se abriu totalmente com você”. A jornalista ainda complementa: “se você interrompe a toda hora, o entrevistado precisa ficar muito atento. E quando você está muito atento, você perde a naturalidade, passa a racionalizar demais o que vai falar. E aí, não deixa vir o que é espontâneo, natural – aquilo que é realmente importante”.
Saber observar
Para Consuelo, para além de estar preparado para o inesperado e para a fuga do script, o jornalista deve estar atento a todos os elementos que compõem uma entrevista. “Para se fazer um bom perfil, tudo conta. Você precisa prestar muita atenção não só ao que é falado”. Muitas vezes, os elementos não-verbais são até mais importantes do que, propriamente, uma frase ou declaração.
“Uma coisa que eu acho fundamental é muita observação, muita atenção com gestos, com os jeitos como a pessoa trata os outros... perceber como a pessoa trata os subalternos, os superiores, ou como ele trata os iguais. Isso tudo conta na hora de montar o perfil”. Para fazer a matéria sobre o ex-ministro Nelson Jobim, Consuelo conseguiu apenas uma tarde para entrevista. O resto do tempo, ela o acompanhou, mas sem chegar muito perto. “Eu ficava atrás observando. Via como ele tratava os militares, a dar as ordens. E isso só em um trabalho de observação”.
Sensibilidade para os dramas humanos
“Modéstia à parte, acho que fiz uma grande matéria – que é uma das que eu mais gosto na minha carreira”. Estamos em uma sala de reuniões na redação da Piauí, no Rio. As 62 capas da revista, estampadas em quadros de igual tamanho, dão cor às paredes brancas do recinto. Consuelo aponta para a capa da edição número 56. Refere-se à matéria que fez sobre a chuva, trágica, que assolou a cidade serrana fluminense de Nova Friburgo, no início de 2011. Ao acaso, a repórter entrevistou nove pessoas que viveram a situação de horror. “Mas não era uma matéria sobre denúncia, a não ser sobre o descaso. Era sobre os dramas humanos”. O propósito da reportagem era dar voz às pessoas para que elas contassem o que passaram naquela noite.
Ao fazer referência à matéria, Consuelo revela um incômodo em relação ao jornalismo atual, propagado nos meios dominantes: expor apenas o superficial, sem se aprofundar nas complexas questões que envolvem uma notícia. A jornalista teme as consequências do fenômeno que define como denuncismo: “o meu medo é das pessoas se acostumarem e isso tudo se banalizar. ‘Ah, é mais um caso daqueles...!’. Não sabemos nem mais o que, de fato, está acontecendo.”
Para a repórter, o maior deleite do jornalismo está em contar uma boa história – verdadeira – “que vá ficar, e que anos depois as pessoas irão ler, sabendo que aquilo era aquilo mesmo”. É isso que a faz ter orgulho da profissão: “descobrir uma ótima história e, ao mesmo tempo, ver alguém se desvendar na sua frente”.
No começo da carreira, uma experiência marcante
Um homem está sentado, segurado por um policial, em uma delegacia no Rio de Janeiro. Cumprirá pena por falsidade ideológica. Em uma pequena cidade no Mato Grosso, exerceu ilegalmente a medicina. Dezenas de jornalistas o circundam. Reclamam, agressivamente, por informações. O criminoso não pronuncia nenhuma palavra.
Ainda estudante, Consuelo Dieguez estagiava no jornal O Globo quando presenciou essa cena. Acompanhava o repórter na apuração da matéria. Ficou assustada com o comportamento desatinado de seus futuros pares. Um grande número de jornalistas atirava, em berros, perguntas ao falso médico, acuado. Não havia diálogo, pois apenas os repórteres se manifestavam. Consuelo – “uma garota, no meio daquele monte de cobra criada” – foi a única que conseguiu estabelecer uma relação dialógica. Aproximou-se do homem e, com a voz calma, argumentou: “olha, eu acho que o senhor deveria falar, dar a sua versão da história, dizer o que aconteceu – por quê o senhor resolveu clinicar sem ter diploma, que tipo de tratamento o senhor deu, se alguém morreu...”.
Inesperadamente, o criminoso respondeu. E, com uma série de questionamentos, a novata descobriu uma grande história. “Falei com ele muito tranquilamente. Comecei a ficar, até mesmo, com um pouco de pena daquele sujeito”. Consuelo escreveu a matéria. Descobriu que o homem era o único “médico” – na verdade, uma espécie de curandeiro – da cidade mato-grossense. Não o defendeu, mas também não o crucificou: “contei a história dele sem fazer uma defesa, mas dizendo que, em um país sem médico para todos, esse tipo de coisa poderia acontecer”.
Desde então, Consuelo tomou como uma decisão de vida: jamais se comportar como um policial na frente de um entrevistado. Achou de todo estapafúrdia a cena na delegacia. “O entrevistado dá a entrevista, se ele quiser. Seja qual for o crime que tenha cometido, ele tem todo o direito de não dar entrevista se não quiser falar”. Para a repórter, a arte da entrevista está em convencer uma pessoa de que pode ser interessante dar declarações.
Quebrando o gelo
Consuelo considera que ir direto às perguntas principais pode representar a perda da oportunidade de uma boa entrevista. Como em todas as relações, sempre é preciso fazer um jogo de aproximação. “Por exemplo, você já não vai perguntando coisas íntimas da vida de uma pessoa que ainda está conhecendo, não é mesmo?”. Para a jornalista, a primeira coisa que faz uma entrevista ser bem sucedida é a empatia e a confiança que o entrevistado deposita no entrevistador.
Deixar o entrevistado à vontade também é essencial nessa arte. “É preciso usar o bom senso para saber como deixar uma pessoa mais relaxada”, comenta. Muitas vezes, Consuelo recorre a outros assuntos – que inicialmente não faziam parte do roteiro de entrevista – para quebrar o clima de tensão preambular. “Quando percebo que o entrevistado está muito nervoso, falo do tempo, da cidade, de outras coisas... Temos que entender o fato de que o entrevistado pode ficar tenso”. Por isso, criar um clima tranquilizante é indispensável: “normalmente, a pessoa fala muito mais quando está relaxada”.
Consuelo acredita, no entanto, que em determinados tipos de entrevista seja necessário ir direto ao ponto fundamental. “Em entrevistas coletivas, é óbvio que não se tem tempo para fazer grandes elucubrações ou deixar a pessoa mais à vontade”. Quando não se tem tempo para muitos questionamentos, é preciso ser objetivo. “Para cada situação de entrevista, existe uma postura”.
Na contramão do “tempo real”
Há alguns anos, a repórter não participa de uma entrevista coletiva. Na Piauí, muitas vezes leva dois a quatro meses para fazer uma matéria. Sobre as entrevistas pela internet, a jornalista é firme ao dizer que “nada substitui o contato cara a cara”. Para Consuelo, não existe espontaneidade no mundo virtual: “ao escrever, o entrevistado pensa e repensa muito o que vai colocar. Não é a alma dele que vai estar ali”.
A experiência na revista Veja, de 1998 a 2001, foi muito positiva para a carreira de Consuelo Dieguez. “Eles têm uma preocupação muito grande com a apuração. Todas as vezes, eu aprendi muito técnica de apuração – de ligar para várias pessoas, de checar e rechecar a informação para ver se está correta”. Apesar de não concordar com determinadas práticas da Veja – não acha, por exemplo, que o jornalismo tenha que ser ideológico –, a jornalista confessa que jamais teve grandes problemas em fazer matérias para a revista: “nunca aconteceu nada de alguém dizer ‘vai lá e faz essa matéria desse jeito’”.
Contar boas histórias
Consuelo se orgulha de fazer parte da Piauí. “Acho que aqui não estamos comprometidos com nenhuma causa. Não temos linha ideológica. Apenas contamos boas histórias. Normalmente, as histórias contadas aqui são definitivas, porque são muito esmiuçadas, bem contadas”.
Há um certo prestígio em ter um perfil publicado na Piauí. “As pessoas gostam muito de falar para a revista”. Consuelo atribui isso ao fato de que há sempre uma inquietação, entre os repórteres, em retratar com a maior fidelidade possível um entrevistado. “As pessoas sabem que elas não vão ser descritas como grandes heróis. Não existe nenhum perfil oba-oba. Mas eu acho que elas sentem que não estão sendo injustiçadas”.
Em relação aos perfis, a revista não se preocupa em tachar uma pessoa, e sim em descobri-la: “na verdade, todo mundo tem seu lado ‘bom’ e seu lado ‘mau’. Então, você não pode esperar que, no seu perfil, você vá ser o bacana, o genial, o incrível e o inteligente. Não! Você vai ter um monte de contradições. E o interessante do perfil é justamente isso. No final das contas, as pessoas gostam porque se reconhecem! Aqui, nós procuramos trabalhar muito com essas contradições, que é o que torna o perfil mais humano mesmo”.
Perguntada se existe algum entrevistador que lhe sirva de bom exemplo, a repórter da Piauí fica pensativa. Cala-se durante alguns segundos. Em seguida, responde, sem nenhuma dúvida: “para ser sincera, admiro muito todos os entrevistadores aqui da Piauí”.
Formada pela PUC-Rio, Consuelo Dieguez trabalhou por nove anos nas sucursais do Jornal do Brasil e de O Globo em Brasília, onde se especializou em jornalismo econômico. Em 1996, em O Globo, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo pela reconstituição da história da guerrilha no Araguaia. De 1998 a 2001, trabalhou como repórter para a revista Veja. Ainda atuou na revista Exame antes de entrar para a equipe de Piauí em 2006, onde trabalha até hoje. É coautora de Cuidado! Seu Príncipe Pode Ser uma Cinderela, da editora Best Seller, e de Vultos da República, da Companhia das Letras, seleção de alguns dos melhores perfis publicados na Piauí.
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