Entrevista: Francisco Ferraz

4 de outubro de 2010

Professor discute as razões para o esvaziamento da militância apaixonada

Por Mariana Pitasse Fragoso




É possível dizer que nos últimos anos as campanhas eleitorais vêm sendo marcadas pela presença de cabos eleitorais pagos e a militância de antes passa a ficar restrita aos pequenos partidos de esquerda?


Bom, o cabo eleitoral pago sempre houve no Brasil, depende do tipo de partido. Os partidos tradicionais sempre tiveram uma militância mercenária, paga. No interior, na época de Getúlio, e mesmo depois, com Juscelino, Jango. E você tem os partidos tradicionais com militâncias urbanas pagas, ou ligadas ao aparelho do Estado, funcionários mais modestos, envolvidos na campanha por uma relação de compadrio, de clientela política dentro do aparelho do Estado e, no interior, ligada ao coronelismo, ao poder local, onde as campanhas também eram marcadas pelo uso de capangas, de homens que trabalham para o fulano de tal, fazendeiro, fazendo uma relação de clientela, política de dependência socioeconômica deles.

Que hoje ainda existe?


É, ainda existe em alguns redutos, isso tem diminuído muito, até porque os votos, para você ter uma idéia, na época do Getúlio, vou te dar um número grosseiro, em torno de 75% da população era rural. Hoje é exatamente o contrário, 75%, quase 80% da população é urbana. Quer dizer, a população pode não estar nas grandes cidades, mas nas cidades médias e nas cidades satélite, em volta das grandes metrópoles: o ABC paulista, São Gonçalo, Niterói, Nova Iguaçu, isso dá quase a população do estado, sem contar as cidades de tamanho médio: Macaé, Campos. É exatamente inversa a situação. Então, o peso da campanha política urbana é hoje muito maior do que foi no passado. E os partidos políticos nanicos, ou melhor, ideológicos – não nanicos, porque nanicos tem de vários tipos, mas a maior parte dos nanicos hoje que aparecem com candidaturas majoritárias são partidos ideológicos como o PSTU, PSOL, ou mesmo os que fazem alianças, como o PCdoB –, esses partidos, que têm uma marca ideológica clara, ainda têm militância nas ruas. Não muitos, porque não são tantos filiados, mas nas universidades você ainda vê. O PV tem militância, é um partido nanico que quer tornar-se partido médio.

Mas, na medida em que esses partidos pequenos crescem, tendem a se burocratizar também?


Sim, e eu creio que o interesse por esse tema tenha a ver com o que ocorreu com o PT. Nas primeiras campanhas do PT, você vê aquela militância ardorosa. À medida que o partido vai crescendo, cria-se uma estrutura comum a qualquer outra grande associação do sistema capitalista: a burocracia. Lula simbolizava uma alternativa da esquerda, com forte componente ideológico. Nas três eleições que ele perdeu, o PT teve uma campanha mobilizada emocionalmente pela linha de uma postura ideológica. Não vou nem discutir se o Lula é socialista mesmo, acho que não é, nunca foi, é um militante sindical com algumas aproximações à esquerda num certo sentido, mas não alguém que tivesse uma visão socialista no sentido marxista, não acho que ele tenha, nem nunca tenha tido. Embora o PT tenha de tudo lá dentro: marxistas, leninistas, até trotskistas. Depois houve aquele racha, uns ficaram fazendo a luta interna, outros saíram e fundaram outros partidos que a gente chama de nanicos, que ainda têm um forte apelo ideológico sobre suas pequenas bases e ainda fazem militância política, motivadas pela carga emocional que o apelo de suas ideologias traz. O apelo aparentemente lógico dessas crenças ideológicas leva a pessoa à luta, a ir para as ruas e fazer acontecer, sem uma remuneração. Mas com os partidos maiores – e o PT hoje se transformou num partido maior – ocorre simplesmente o que acontece com todos os partidos que crescem: se burocratizam e há um distanciamento das elites em relação às bases partidárias.

Há um estudo clássico do Robert Michels sobre sindicatos e partidos social-democratas no começo do século XX. Ele quis pesquisar justamente aqueles partidos e setores que considerava mais democráticos. Então esses partidos e sindicatos inicialmente funcionavam da seguinte forma: as chefias nunca tomavam decisões sem consultar as suas bases, diante de um fato novo eles consultavam as assembléias para dar sua opinião sobre o fato político novo. Evidentemente, nesses partidos, os chefes não mandam, os chefes são meros porta-vozes, são aqueles que falam, são bem articulados e por isso são enviados como representantes daquela massa. O poder, a base do poder continua no coletivo. Ele observa, no decorrer da pesquisa, que quando há o crescimento desses partidos e sindicatos, vários movimentos vão ocorrendo. Para conseguir fazer o enfrentamento político eles têm que se organizar, se organizar implica ter unidade de ação, unidade de ação vai implicar uma burocracia com a centralidade das informações, o chefe do partido tem de estar a par de todas as informações políticas. Por mais que todos os partidos tenham um forte componente ideológico e democrático, à medida que ele cresce ele vai tendo que se organizar e, consequentemente, se burocratizar. E ele vai sofrendo uma penetração de membros de outras camadas sociais: a classe média, intelectuais, administradores; há a formação de um sistema jurídico; contribuição de seus filiados para manter os gastos (viagens, ações políticas, propaganda). As necessidades são as mesmas de qualquer outro partido grande, acontece uma mudança no formato que os torna iguais a qualquer associação grande de uma sociedade capitalista: burocracia. Isso acaba levando a uma cisão entre os interesses da elite do partido e os interesses da base, começa a surgir uma contradição. Essa elite dirigente pode ter o mesmo ideário, a mesma verborragia, mas ela própria já tem subideais dentro. Esse partido agora já tem o que perder: capital eleitoral, capital político, poder político. A base, que antes se sentia amparada, representada nos seus interesses, que ia para as ruas militar a favor do partido, agora se sente desmotivada. Mais do que isso: agora até sua militância é guiada.  Aparece nesse contexto a elite partidária, a crescente formação da pirâmide na estrutura do partido, que controla as informações partidárias, começa a ter a voz de comando, as massas começam a perder a sensação de pertinência àquele mesmo partido. O vetor se inverte: se o poder antes era da base partidária para o porta-voz, agora é a chefia do partido que controla as bases, em nome da eficácia política. Claro isso tem uma dinâmica, não se pode supor que as bases são completamente inertes e incompetentes e que essa direção possa fazer o que ela quiser.

Desse modo, eu acho que essa sensação de que a campanha eleitoral se despolitizou, no sentido de se tornar mercenária, reflete um fenômeno mais típico dessa oligarquização que o PT sofreu. É o partido em voga no cenário político, que tinha uma grande carga ideológica e que hoje está vivenciando essa burocracia partidária, em razão do próprio crescimento, e se distanciando daquele apelo ideológico, da militância “espontânea”, do desejo de mudança de outrora. Esses se deslocaram para outros grupos, que foram privilegiados com os programas assistencialistas do Lula, mas que são adventícios, não são grupos da esquerda tradicional. Eram grupos que viviam na beirada da sociedade e agora conseguem entrar. Podem ter uma certa idolatria pelo Lula, aquela figura de pai, devido à relação paternalista estabelecida com essas bases. A exemplo do Nordeste, lá há uma defesa fervorosa do Lula, de caráter “espontâneo”.  Porém, não são pessoas com o ideário politicamente constituído, são pessoas que estão entrando para a cidadania agora.

O que motivava as pessoas a aderir às campanhas nos períodos anteriores – Getúlio, JK, Jango e depois, durante a ditadura? Pode-se fazer uma comparação desses períodos com os dias de hoje?


Há um contraponto importante com período anterior à ditadura, guardadas as devidas proporções, é o papel realizado hoje pelo PT em comparação com o PTB da época do Getúlio, com seu caráter nacionalista e suas políticas paternalistas, e o PSDB em relação à UDN como oposição, só que o PSDB não tem o Carlos Lacerda, por sorte, senão o Lula já estaria deposto. Nessa época, há movimentos de direita com adesão de massas contra Getúlio, após o episódio da Rua Tonelero, que vira radicalmente ao contrário depois do suicídio de Getúlio. Depois foi eleito o JK, pelo PSD (partido das grandes oligarquias rurais) em aliança com o PTB (partido de vocação urbana e trabalhista), ambos partidos criados por Getúlio. Enquanto houve aliança entre esses partidos existia estabilidade política. Quando esses partidos romperam é que há a crise, com golpes da UDN, que antes não conseguia ter sucesso, pois existia o apoio de massas do PTB e a estabilização do PSD. Quando o PSD rompe, com as políticas das reformas, já no governo Jango, começa a crise. Há a organização da junta militar, com apoio de forças civis (incluindo a UDN), para o golpe de 64. O ideário desse grupo é o mesmo ideário de hoje, moralista, que fala de corrupção o tempo todo – corrupção dos outros, não a deles – e que acusa o adversário de ser populista. Vemos também, claramente, a referência do PT ao antigo PTB, reformistas não radicais, querem mudar agora, trazer melhorias para já, incorporando gente ao mercado de trabalho, criando consumidores, redistribuindo renda e dando apoio para a indústria nacional.

Qual a sua experiência de militância?


Nós estávamos envolvidos por um ideário forte, que envolvia nossas vidas. Eu sou professor de Ciência Política, passei a ditadura inteira sendo fiscalizado, entrando pessoal na minha sala de aula pra ver se eu dava presença para aluno que não estava em sala, porque poderiam ser comunistas procurados e eu estava colaborando para induzir a polícia a erro. Eu fui denunciado na UFRJ por ter dado aula de marxismo para guerrilheiros, nunca fiz isso, porque eu era contra a luta armada, eu achava que ia ser um morticínio geral e que não tinha a menor condição para ela. Quando eu fui pegar meu atestado negativo de ideologia – uma coisa que existia no Brasil –, para tomar posse como professor interino na UFF e na UFRJ, me negaram. Eu só acabei entrando como membro do quadro permanente porque chegou um momento que eles cancelaram essa exigência. Durante quase dois anos, já concursado, eu fiquei lá como contratado, eu e todo mundo que havia passado no concurso, sem homologar o concurso. Pois eles tinham que dizer o porquê de eu não poder tomar posse e o decreto que exigia esse atestado negativo da ideologia era um decreto secreto, então não se podia dizer por que o outro não tomou posse, ficou uma sinuca de bico; pelo decreto eu não podia tomar posse, mas o decreto não podia vir a público, porque não existia esse decreto, era decreto secreto, uma coisa de louco. Imagina uma pessoa que passa por uma situação dessas, ou ainda pior, e tem a oportunidade de eleger alguém que mude essa realidade: você vai à luta por um ideal, você não vai pedir dinheiro para ir lutar contra a ditadura.

Por isso essa referência comum de militância de esquerda?


Essa referência é muito forte, porém, na época da ditadura todos iam unidos pelo ideário de liberdade, pessoal de esquerda, direita, centro, até os liberais. Na época anterior à ditadura também havia manifestações de direita. O PTB conseguia movimentar massas contra os reacionários, os entreguistas. Já a UDN coordenou a “Marcha da família com Deus pela liberdade”, que foi o movimento de massa pré-legitimador do golpe de 64, essas pessoas não foram pagas pra isso, era um paixão anticomunista, o medo de o Jango transformar o Brasil numa república sindicalista.

Você considera que a campanha atual é despolitizada?


Eu não usaria esse termo, usaria assalariamento da campanha eleitoral, esvaziamento no sentido de militância espontânea. Mas hoje a campanha está extremamente politizada, embora no velho estilo, com um partido falando de moralidade e acusando o governo de todas as imoralidades do mundo. E, em termos de campanha nas ruas, essa predominância da militância mercenária, a diminuição da militância ardorosamente ideológica do PT, que tem a ver com o próprio processo de crescimento do partido. Os partidos de direita, por sua vez, sempre tiveram uma militância mercenária. Há também a cidadania brasileira, que está se constituindo agora.

Agora? Não desde a redemocratização?


Da redemocratização pra cá ela cresceu muito. Foi quando a classe média descobriu que há torturas nas delegacias, porque a ditadura prendia gente da classe média também. Só que as pessoas de classe baixa sempre viveram na ditadura, a favela, o periférico, sempre viveu uma ditadura no Estado brasileiro e esse pessoal tá sendo incorporado agora na política. Eles estão tendo emprego, estão descobrindo seus direitos, está havendo um crescimento dos direitos legislativos (delegacia da mulher, lei do idoso), também há o auxílio da mídia para informação dessa população, o que está gerando a incorporação geral das pessoas ao exercício da cidadania, ampliando o número de cidadãos e a conscientização desses.

Desse modo, você acha que há uma perspectiva de recuperação futura da militância?


Eu acho que isso depende muito de certos momentos.

Estamos acomodados?


Sim, há uma acomodação. Eu acho que no momento está havendo uma retração, no sentido de militância, porque houve uma coisa miraculosa: a melhoria da auto-estima do brasileiro. O brasileiro hoje se acha importante no contexto mundial. Hoje o Brasil tem uma grande projeção política, porque é um grande mercado consumidor e vendedor do mundo, nós produzimos para abastecer as grandes potências mundiais. Eu acho que não tá havendo perda ideológica não, há a crescente mercantilização da política, esse é um fenômeno muito pontual do PT, que virou um grande partido e está no poder hoje, há uma substituição da militância ardorosa e apaixonada de que o Lula iria mudar tudo, essa paixão não existe mais. Mas, entre universitários acho que isso não morre nunca, senão você fica muito cético aos 20 e poucos anos. A esperança tem sempre que existir.

Busca Cadernos

Loading

Quem somos

Minha foto
Cadernos de Reportagem é um projeto editorial do Curso de Comunicação Social da UFF lançado em 3 de outubro de 2010.
 
▲ TOPO ▲
© 2014 | Cadernos de Reportagem | IACS