‘O corpo é um lugar de resistência muito poderoso’

18 de agosto de 2013

Luis Pedro Ribeiro e Rafael Bolsoni Bastos

Numa entrevista-aula, a professora do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense (UFF) Ana Lucia Enne abordou o momento cultural da cidade, a relação entre mídia e cultura e a importância política da demarcação de níveis de cultura (central e periférico). Confira:

Cenário cultural da cidade hoje
“A gente vive um momento muito especial na história cultural do Rio de Janeiro. Graças a uma lógica de rede – rede presencial e rede virtual –, a gente está tomando conhecimento de muitas formas culturais. Mas para cada hip hop, samba, rap que as pessoas criam na periferia tem milhões de não-movimentos que chegaram a nascer e não se solidificaram. A cultura é o flexível da vida; é uma espuma. Você não consegue segurá-la. Em algum momento, esse flexível ganha rigidez. É quando ele vira um costume, toma uma forma, vira uma manifestação coletiva”.

Cultura superior e cultura inferior
“A diferença entre uma cultura superior e uma cultura inferior, entre uma cultura erudita e uma cultura popular, faz parte de um sistema de classificação construído historicamente com o movimento da separação da aristocracia da burguesia. É uma valoração aleatória. Centro e periferia, não. Como condições geográficas, ao se tomar um centro de referência, vai haver uma produção que estará fora deste centro. Só que o simbólico em torno disso é que é o problema. Associar essa cultura periférica a mais um termo para se referir à cultura inferior, à cultura popular, é cair no senso comum. Não há nada demais em falar que há uma cultura periférica e uma cultura central. Inclusive é importante politicamente o reconhecimento da demarcação desses lugares. Não que eles sejam, mas isso nos ajuda a entender que certas regiões, como Jacarepaguá, acabaram ocupando um lugar periférico na história do Rio de Janeiro. Nos ajuda a pensar que há circuitos que são privilegiados e outros não – embora ambos sejam riquíssimos”. 

Cultura veiculada na grande mídia
“A mídia não está circulando a chamada cultura erudita. Ela está trabalhando com um parâmetro que veicula a cultura pop, como raras vezes se viu. Por isso, tanto os movimentos ditos eruditos quantos os populares estão tentando ir por fora dessa grande mídia. Eles ficaram sem lugar”. 

Incorporação de parte da cultura periférica (bailes funk, charme e o “passinho”) em novelas e programas de TV
“Para muita gente, isso é positivo, porque você está dando visibilidade a sujeitos que sempre praticaram sua criatividade e não eram vistos. Para outros, isso é uma apropriação que vai, inclusive, enfraquecer a criatividade, o movimento. Acaba havendo uma fagocitação dos movimentos genuínos. Há uma terceira corrente para a qual isso seria pior do que o tráfico, por exemplo. Seria um atravessamento de práticas culturais, de coisas muito ligadas ao empreendedorismo, à competição, ao sucesso. Eu, Anna, acho muito bom – há problemas, é claro. Tem-se a questão dos movimentos pensados politicamente, como forma de ver o mundo, resistência. E isso é um problema mesmo quando vai parar na grande mídia. Mas tem outro problema que é a questão da subjetividade. O cara se sente invisível. A autoestima dele é muito baixa porque há muito estigma sobre essas pessoas. Vendo por esse lado, a positivação do estigma desses sujeitos é muito importante. Se a classe média dá muita importância para a projeção do self, por que o cara da periferia também não pode dar? É injusto querer que eles enxerguem o problema somente pelo viés da resistência econômica. Para eles, é muito importante sair num jornal, por exemplo. A mãe mostra para todos e diz: ‘viu, meu filho não é bandido’”. 

Por que o “passinho”, o funk, e não o teatro produzido na favela, os saraus de poesia, os encontros de rap? 
“Para uma ideia de resistência política e econômica stricto sensu, o teatro, a poesia e o rap são mais resistentes. Mas, para mim, resistir também é manifestar formas de expressão que tenham a ver com as suas condições materiais. E, nesse sentido, o corpo é um lugar de resistência muito poderoso. Eu acho que parte do problema da Globo e das outras emissoras em apenas darem, de certa maneira, espaço para o charme e para o passinho não está nisso em si. Está no senso comum que não enxerga potencial perigoso na dança, no riso ou na festa. Eu acho que eles são explosivos. Não dá para dizer que a dança é mais alienante que o teatro e o hip-hop e ponto. Em nossa sociedade, sim, porque colocamos a questão do corpo de forma muito sexualizada. Mas ela também tem um potencial revolucionário que não sabemos aproveitar. Aí a Globo se aproveita disso e pega o passinho, que é importante pois nega um determinado tipo de corpo masculino, e transforma numa ‘gracinha’ dos pobres. O que não se sabe é que muito do preconceito homofóbico quebrado na favela tem a ver com o passinho”.

Preconceito dos próprios moradores da periferia em relação à cultura produzida em sua região
“As formas culturais são atravessadas, muitas vezes, por desejos de deslocamento da posição de classe. Muitas pessoas da favela não se reconhecem naquele modelo da periferia porque se identificam com modelos hegemônicos, com a ideia de ascensão cultural. Há também fatores mais fortes que a mídia que influenciam a forma de fruição cultural. Tem as igrejas, tem as lógicas locais, tem os eixos de formação. Por isso, as produções culturais da periferia não vão ‘falar’ com todas as pessoas dali. Um evento de poesia numa favela, onde moram dois milhões de pessoas, com a presença de 30 pessoas, não significa pouco. As pessoas medem a fruição e o sucesso da fruição por parâmetros irreais. Elas imaginam que os moradores vão se engajar nessa suposta ‘arte verdadeira’. E se eles não acharem que é verdadeira?”

Participação do Estado na distribuição da cultura
“O Estado tradicionalmente financia aquilo que lhe interessa, dentro da estrutura do sistema capitalista burguês. Mas, nos últimos anos, as políticas de cultura do governo federal se ampliaram. Apesar disso, toda a política de Estado vai ser rígida e hegemônica. Se fosse haver uma verdadeira democratização do financiamento, eu, na posição do Estado, também teria que apoiar a Valeska Popozuda, por exemplo”.  

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